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3. DO LÚDICO AO MAKER: DAS REFERÊNCIAS AOS REFERENCIAIS DESTE

3.8 A Cultura Maker na educação: é possível?

A Cultura Maker, ainda relativamente nova no contexto da educação brasileira, tem sido saudada, fora do ambiente escolar, como uma Nova Revolução Industrial (ANDERSON, 2012). Porém, se as características desse movimento forem mais bem observadas, é possível se lançar a ideia de que a Cultura Maker possa se constituir numa retomada - ou aprimoramento/expansão conceitual - do modo de produção artesanal que fora praticamente sepultado pela Revolução Industrial.

Assim, caso admitida a discussão, não se trata, a priori, de uma mudança de referencial no modo de produção da economia atual – o surgimento de um novo paradigma industrial -

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Fablab é uma abreviação para “laboratório de fabricação” em inglês, um espaço em que pessoas de diversas áreas se reúnem para realizar projetos de fabricação digital de forma colaborativa. (Fonte: Wikipédia).

71 São 12 unidades dispostas na cidade que oferecem mais de 30 tipos de cursos e oficinas, como os de modelagem 3D, eletrônica e fabricação de projetos, e dispõem de equipamentos avançados, como impressoras 3D, fresadoras e cortadoras a laser . Maiores informações em: https://bit.ly/2JllSUT

mas um acréscimo sofisticado e tecnologizado ao contexto originado na Primeira Revolução Industrial de uma prática suplantada em decorrência do aparecimento de tecnologias refinadas, inacessíveis e não compartilháveis à época de seu surgimento, o Século XVIII.

Em decorrência da massificação de produtos gerados a partir desse próprio modo de produção industrial, pode-se chegar, nos dias atuais, à possibilidade de se estabelecer um novíssimo modo de produção artesanal com foco nas ferramentas e instrumentos digitais, na criatividade, na autonomia, no compartilhamento e no hedonismo.

O modo de produção artesanal não hegemônico resistiu até os dias atuais, utilizando- se de ferramentas e instrumentos compatíveis com aqueles anteriores a Revolução Industrial, ou adotando ferramentas e instrumentos derivados ou excretados pelo novo modo de produção hegemônico surgido no Século XVIII, incorporados, assim, nas atividades dos artesãos de calçados, roupas, bolsas, utensílios domésticos ou de escritórios, materiais de limpeza ou até mesmo de produtos que exigem um alto grau de investimento financeiro e domínio de técnicas específicas, como a fabricação de automóveis ou instrumentos musicais sob medida.

A diferença que consubstancia pensar em revolução – para quem pensa nesse conceito - está calcada no uso de técnicas e tecnologias acessíveis e compartilháveis para o exercício de ações que antes se encontravam restritas aos iniciados nos conhecimentos da produção personalizada, e não industrial o que ressalta o caráter ativo e protagonista das pessoas comuns na edificação da sua própria cultura (JENKINS, 2008).

Assim, a Cultura Maker culmina por fazer com que a lógica da produção industrial e do consumo dos bens materiais – e também dos conteúdos culturais - de um para muitos, específica da Revolução Industrial, seja gradativamente modificada para uma nova lógica, de muitos para/com muitos, de caráter multidirecional e virtualmente mais aberta e prazerosa. Em outras palavras, ao invés de uma grande fábrica de brinquedos ou uma estação de televisão se incumbir de produzir para milhões consumirem seus produtos (um para muitos), a Cultura Maker se ancora na perspectiva dessa produção de brinquedos ou conteúdo audiovisual ser horizontalizada pela produção individual, cooperada e compartilhada.

Neste contexto, a educação escolar, de modo intensivo o professor são convocados a corresponder às vicissitudes desse universo, de interação e troca, que emerge e se incorpora, doravante, com feições que se querem definitivas na cultura humana.

Interação e troca entre sujeitos. Interação e troca entre produtos culturais. Recombinagem. Remixagem. Nova produção e diálogo permanente com o

instituído, produzindo-se, a partir daí, novos produtos, novas culturas e novos conhecimentos. Tudo no plural. Com isso, temos a possibilidade de retomar o papel de liderança acadêmica do professor, que, em conjunto com os alunos, no coletivo e individualmente, passam a interagir de forma intensa com esse labirinto de possibilidades. (PRETO, 2010, p. 314).

Incentivar a Cultura Maker nas escolas e universidades e, especialmente, na formação de professores, é também propugnar para que os estudantes tenham acesso a oportunidades em que possam vivenciar a ampliação de seus processos criativos, o desenvolvimento da afetividade e da socialização, para que essas vivências coletivas possam inspirá-los a inventar, tecer, construir, reconstruir e, estabelecendo um contexto de troca e compartilhamento, contribuir para um ambiente propício para o potencial criativo e lúdico ser ampliado. É também reencontrar o elo perdido entre a aprendizagem e o prazer em aprender, entre o conhecimento e a ludicidade que, nas palavras de Nogueira et al (2017), perdem-se com o fim da primeira etapa do ensino.

A experiência mão na massa, tão prazerosa e lúdica, perde espaço para a transmissão de conteúdo à medida que a primeira etapa de ensino é superada, e provavelmente suas principais lembranças da escola são de aulas teóricas, seguidas de provas, que muitas vezes pareciam desconectadas da realidade. Uma das principais tendências na educação hoje, que procura tornar o aprendizado mais significativo para os alunos, propõe um retorno ao fazer, esquecido no jardim da infância. Em escolas do mundo inteiro, ganha força um movimento que valoriza a prática e a experimentação. (NOGUEIRA et al, 2017, p. 01).

Os Espaços Makers, ambiente mais representativo da Cultura Maker, já existem em algumas escolas é há referências sobre eles como aporte à criatividade e ao compartilhamento:

O Movimento Maker invadiu a mente das escolas nos últimos anos. Para algumas, ele serve como sinal de alerta de que jovens que fazem muitas provas e que convivem com um calendário pesado não se tornarão criativos e apaixonados pela leitura como todos esperamos. Para outras, trata-se de uma reconexão com nossos impulsos coletivos e mais profundos para criar, inventar e transformar o mundo. Espaços Maker, design thinking e outros modelos servem para dar vida a essas ideias em salas de aula, bibliotecas, museus e centros comunitários. (MARTINEZ, 2015, p. 01)

Um exemplo de Espaço Maker é o Laboratório de Inovação Tecnológica na Educação (LITE), da Universidade do Vale do Itajaí (Univali, no Estado de Santa Catarina), que integra pesquisa, desenvolvimento de produtos e processos tecnológicos voltados a atividades educacionais, através da incorporação do modus operandi da Cultura Maker à sua proposta, com o objetivo de oportunizar a seus integrantes desenvolverem o potencial criativo e aprimorarem o conhecimento científico. De acordo com o seu site, o Laboratório:

Busca apoiar e fomentar a cultura Maker aos projetos de seus participantes. O LITE foi criado a partir de um reforma no laboratório que se chamava L2S (Lab Soluções de Software). Fizemos a transformação usando os móveis que estavam no próprio Laboratório e com algum esforço de marcenaria e criatividade transformamos um ambiente voltado ao desenvolvimento de software com cada estação de trabalho virada para parede em um ambiente voltado ao trabalho em grupo e colaboração. O Lab continuará em transformação para incluir novos equipamentos que potencializem a prototipação rápida e que auxiliem nos projetos de pesquisa e os projetos de interesse pessoal em andamento. Mais do que um ambiente dotado de equipamentos, ferramentas e materiais para potencializar a inovação, a invenção e a criatividade, buscamos debater a aprender muito sobre os processos que preparam melhor os envolvidos a explorarem seus potenciais. (LITE, 2017, p. 02).

Fazer você mesmo, com a oportunidade de vivenciar e compartilhar a sua experiência, num fluxo contínuo de atitudes colaborativas e com probabilidades de serem lúdicas é a proposta principal da Cultura Maker e na qual se fundamentará parte deste trabalho de pesquisa. Heloísa Neves sintetiza o que define a atitude Maker:

A Atitude Maker segue a própria filosofia do “Faça Você Mesmo” e tem como essência a criatividade, curiosidade e a inovação. E é aí que o Movimento Maker tem tanta importância para a educação. O “aprender” nunca deveria ter se dissociado do prazer e do brincar. Isso acontece quando a educação passa a dar mais ênfase ao aluno passivo que recebe as informações necessárias do professor de uma maneira séria e rigorosa, muito diferente do que é natural à criança, que é o aprender pela curiosidade e pela diversão. Dentro de um Espaço Maker acredita-se que se você pode imaginar, é capaz de produzir alguma coisa para interagir com o mundo ao seu redor e, consequentemente, aprender. (NEVES, 2015, p. 01).

Essa concepção se coaduna com a ideia de brincar tratada ao longo desse texto. O brincar possui uma relação direta com o meio físico e social do brincante, encerrando um significado implícito como meio de expressão e de aprendizado prazeroso. Além disso, desperta a criatividade, a curiosidade e a compreensão, estabelece ou reforça vínculos e princípios de relacionamento social, como também aprimora as atividades motoras. Organizado de maneira significativa, estimula a interação entre os participantes da brincadeira, sejam eles crianças, adolescentes, adultos ou idosos, possibilitando o seu desenvolvimento e aprimoramento motor, cognitivo, afetivo e social (KISHIMOTO, 2005; SANTOS, 2008; VIGOTSKY, 2008).

Nas palavras de Gordinho (2009, p. 39 apud MASSA, 2015, p. 126 ) “existe muito mais complexidade no ato de brincar do que pode parecer ao observador desavisado”. O autor ainda ressalta que

Quando brincam, nomeadamente, as crianças estimulam os sentidos; aprendem a usar a musculatura ampla e fina; adquirem domínio voluntário sobre os seus corpos; coordenam o que ouvem e o que vêem com o que fazem; direcionam os seus pensamentos e lidam com as suas emoções; exploram o mundo e a si mesmas; reelaboram as suas representações mentais; adquirem novas habilidades; tornam-se proficientes na língua, exercitam a criatividade; exploram diferentes papéis e, ao reencenarem situações da vida real, aprendem a gerir a complexidade de seu papel

histórico e a fazer decisões com confiança e autoestima. (GORDINHO, 2009, p. 39

apud MASSA, 2015, p. 125-126).

A Cultura Maker ainda parece se perfilar com as ideias de “entrega total” de Gadamer e “plenitude” de Luckesi, quando se apresenta ancorada na chamada ética hacker. Um dos sete pilares da ética Hacker, descritos pelo filósofo finlandês Pekka Himanen, em A Ética

Hacker (2001), é a paixão72. Segundo ele, um hacker desenvolve seu trabalho com paixão, numa busca intrínseca e plena da energia de se fazer alguma coisa com alegria e também com liberdade. Uma forma de organizar a vida como um fluxo dinâmico entre o trabalho criativo e outras paixões de suas vidas.

Discutindo a partir das ideias apresentadas no prólogo do livro, escrito por Linus Trovalds sobre aquela que ficou conhecida como Lei de Linus, Himanem (2001) discute as três características que podem explicar a ética hacker em termos de motivação humana: a sobrevivência, que estaria atrelada à dimensão dos recursos materiais e financeiros; a vida

social, que estaria vinculada à dimensão de pertencimento (a um grupo ou a uma

comunidade), de reconhecimento e de amor; e a diversão, que estaria relacionada com a dimensão da paixão, ou seja, a uma condição de ser motivado por algo intrinsecamente interessante, estimulante e alegre (HIMANEN, 2001).

Trata-se, pois, daquela “entrega total” que guarda similitudes importantes com a ideia

gadameriana de jogo, segundo a qual quem joga sabe que o jogo não é mais que jogo e este

só cumpre o objetivo que lhe é próprio quando o jogador se entrega inteiramente (GADAMER, 2007). Da mesma forma, a paixão da experiência hacker evoca o conceito

luckesiano de ludicidade, compreendido como um estado de consciência derivado das

atividades praticadas com plenitude, leveza e prazer, que vai além das experiências observáveis (LUCKESI apud MASSA, 2015).

Neste sentido é possível afirmar que a Cultura Maker, na sua interação com o universo educacional, apresenta-se como uma busca por uma condição de ser humano que aglutine as características do homo sapiens (aquele que possui cogniscência para aprender e apreender a realidade), do homo faber (aquele que fabrica objetos e coisas) e do homo ludens (aquele que é capaz de entregar-se a atividades lúdicas). Se essa condição de fato se fará emergente, a história o dirá.

72 Os demais são: liberdade, valor social (abertura),nética(ética da rede), atividade, participação responsável e criatividade. (HIMANEN, 2001, p. 125-127).