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Bruno Latour e a ciência em ação

No documento Sobre fazer projeto e aprender a fazer projeto (páginas 107-114)

Bruno Latour (1947–) é um filósofo francês cujo trabalho não pode ser delimitado à filosofia, dado seu interesse vasto por outros campos do saber, notadamente a antropologia. Em Ciência e Ação, Latour compara duas concepções acerca da ciência positiva. Ele denomina “ciência pronta” à imagem que o público leigo tem acerca da ciência e dos cientistas. Essa imagem desconhece os meandros da produção científica, e só leva em consideração os resultados dessa produção.

Idealizados, ciência e cientistas são vistos, nessa concepção, como racionais, desinteressados e voltados exclusivamente para o desvelamento de uma suposta realidade dada. A outra concepção, chamada por ele de “ciência em ação”, se refere à realidade que tem lugar dentro dos laboratórios e centros de pesquisa. Observando o trabalho dos cientistas, Latour constata que esse é bem diferente daquele suposto através da concepção anterior. Assim procedendo, Latour constata o jogo de interesses presente nos que defendem a concepção da ciência pronta, na qual a realidade é imaginada como dada, e propõe, a partir da observação da ciência em ação, outra concepção acerca da realidade, afeta às epistemologias construtivistas.

Ciência e perspectiva

Os cientistas propõem métodos para que seus objetivos sejam atingidos, e, tanto esses métodos quanto as próprias pesquisas, para serem considerados legítimos, devem ser impessoais, comunicáveis e desinteressados. Segundo eles, o principal inimigo do conhecimento é a crença: enquanto eles têm conhecimento, a população em geral tem crenças, ou seja, enquanto o conhecimento dos cientistas seria objetivo, isto é, diria mais a respeito do objeto estudado do que a respeito do sujeito pesquisador, a crença seria subjetiva, ou seja, diria mais a respeito de quem fala, em detrimento do objeto. Inventou-se assim, de um só golpe, os conceitos “racional” e “irracional”: para sua sobrevivência, a existência de um conceito depende da do outro. Segundo os cientistas, todos deveriam ter seguido o caminho do conhecimento reto e racional, e, se dele alguns se desviaram, isso se deve a forças especiais, tais como preconceitos, diferenças culturais ou simples burrice (LATOUR, 2000, p. 300), já que os motivos disso precisariam ser explicados, ao passo que os motivos de suas próprias atuações não. Segundo eles, o caminho reto, o do conhecimento racional, não precisa explicação alguma para sua legitimação: algumas mentes descobrem o que é a realidade, enquanto a maioria das pessoas tem idéias irracionais, prisioneiras que são dos fatores citados acima. Assim, Latour critica uma perspectiva que desconhece o fato de ser uma perspectiva e se toma como visão de uma suposta realidade “em si”.

Caixa-preta, imagem e estamento

A expressão caixa-preta é usada em cibernética sempre que uma máquina ou conjunto de comandos se revela complexo demais. Em seu lugar, é desenhada uma caixinha preta, a respeito da qual não é preciso saber nada, senão o que nela entra e o que dela sai. (LATOUR, 2000, p. 14).

A ciência positiva estabelece que o único modo legítimo de se obter conhecimento é aquele baseado em pressupostos racionais, evidências e métodos lineares claramente estabelecidos. Para abrigar tudo aquilo que, na produção laboratorial, não se produz de acordo com tais diretrizes, desenvolveu-se o conceito de caixa- preta. Entrando nos laboratórios e observando o conhecimento ali produzido, Latour tem contato com o que acontece dentro das caixas-pretas, e constata que o conhecimento produzido pela ciência está, em grande parte, vinculado a elas. Em outras palavras, a ciência positiva não se utiliza apenas de procedimentos lineares e racionais na construção de conhecimento, mas o que ocorre de modo diverso é cuidadosamente embalado em caixas-pretas.

Mantendo as caixas-pretas fechadas e distantes dos olhos do público, os cientistas salvaguardam a imagem de uma ciência coerente e racional, bem como a imagem pública do cientista objetivo, impessoal e desinteressado, atento exclusivamente aos “fatos”. Em sua pesquisa, Latour constata que tais imagens também não correspondem à realidade da azáfama que tem lugar nos laboratórios. A ciência em ação, segundo ele, é moldada por relações entre pessoas, e, também, entre essas, aparelhos, instrumentos e todo o contexto no qual essa ciência é produzida. Essas relações são estabelecidas por interesses variados e diversos daqueles relacionados com os ideais da ciência positiva.

Preservar a legitimidade atribuída à ciência é salvaguardar uma imagem ascética e asséptica. Para tanto, é necessário que as caixas-pretas se mantenham fechadas: o que se passa no interior dessas caixas não é divulgado, mais devido a interesses dos agentes envolvidos nos processos produtivos, do que pelo fato de que o que ali acontece seja inacessível à razão. A imagem ascética e asséptica não corresponde àquilo que, de fato, ocorre dentro dos laboratórios, com suas burocracias, políticas acadêmicas e demais contingências, imprevisíveis.

Realidade, conhecimento e crença

Para caracterizar as concepções de realidade em ambas as perspectivas sobre a ciência, apresento um resumo da comparação feita por Latour entre a ciência pronta e a ciência em ação (QUADRO 1):

QUADRO 1

Comparação feita por Latour entre a ciência pronta e a ciência em ação

ciência pronta ciência em ação

Acate os fatos sem discutir! Descarte os fatos inúteis. Fique sempre com a máquina mais

eficiente.

Decida o que é eficiência. Quando a máquina funcionar, todos se

convencerão.

A máquina vai funcionar quando as pessoas interessadas estiverem convencidas.

O que é verdade sempre se sustenta. Quando as coisas se sustentam, elas começam a ser transformar em verdade.

A ciência não se dobra a um monte de opiniões.

Como ser mais forte que um monte de opiniões?

Fonte: LATOUR, 2000, p. 21–57, passim.

Latour chega a cada par de proposições disposto acima após a análise detalhada de um conjunto de dados empíricos. Ainda que o percurso que o levou a cada uma dessas proposições esteja fora do escopo deste trabalho, a comparação entre as duas colunas aponta para duas concepções distintas acerca das constituições da realidade e do conhecimento. Acatar os fatos sem discutir significa concordar com a afirmação de que eles são dados apriorísticos, enquanto descartar fatos inúteis é o mesmo que tirar a esses o nome de “fatos”, isto é, construir uma realidade feita pelo que se deliberou nomear; o mesmo pode ser dito da concepção que subjaz, em cada coluna, ao conceito de “eficiência”; quando uma máquina me apresentar dados que não sejam úteis aos rumos que um cientista dá para sua pesquisa, esse pode considerar que a máquina não está funcionando. As concepções acerca de realidade e conhecimento derivadas dessa análise encontram-se no QUADRO 2.

QUADRO 2

Concepções de realidade e conhecimento da ciência pronta e da ciência em ação

ciência pronta ciência em ação

A realidade está aí, como dado anterior e indiferente à entrada do pesquisador em cena

Realidade e conhecimento são construções interessadas, feitas a partir do jogo da vontade de potência nietzschiana

Conhecimento é adequação desinteressada das representações mentais com a realidade dada

A genealogia proposta por Latour desmonta as concepções situadas à esquerda do QUADRO 2. Para ele, o conceito de realidade, ao provir do latim res, significa tão- somente aquilo que resiste a todos os esforços de modificação (LATOUR, 2000, p. 294). Assim, os fatos são mais produzidos do que descobertos, e se tornam fatos uma vez que resistem a “um monte de opiniões”.

Utilizando o desdobramento que Foucault fez com o termo “origem”, é possível dizer que a ciência pronta está para a interpretação desse termo como “proveniência”, assim como a ciência em ação está para “brotamento”. Se a realidade, para a primeira, antecede ao observador, isto é, se ela está, também, pronta, petrificada, o trabalho de criatividade não tem como ser visto senão pelo viés da proveniência: se a realidade está dada, pronta, a realidade é estéril. Porém, tendo sido criada, sua criação emana de origens desconhecidas. A ciência em ação, por sua vez, comporta uma realidade múltipla e imprevisível, na qual brotamentos ocorrem a todo tempo. Ao invés de situar a criatividade no desconhecido, uma genealogia da ciência em ação vê a criação acontecendo, ininterruptamente, diante dos olhos do observador.

Realidade e rede

Segundo Latour, mais do que um trabalho de descoberta de uma realidade supostamente dada, o trabalho feito pelos cientistas é o de invenção de uma rede, à qual atribuem o nome “realidade”. O acesso dos cientistas à suposta realidade dada é sempre mediado por instrumentos de observação e medições, e os dados que esses instrumentos produzem, constituem nós nessa rede. Para Latour, o que se convencionou chamar de “realidade baseada em evidências” nasce a partir do estabelecimento dessa rede de conexões, onde os atores concordam entre si a

respeito da constatação da existência dessa mesma rede, uma vez que a identificam com a realidade dada. Quanto maior a rede, mais chance tem de ser bem sucedida a tarefa em transformá-la na realidade. Para Latour, o trabalho dos cientistas é como aquele dos que construíram o mapa que Borges propôs em sua História universal da infâmia (BORGES, 1989, p. 71): tão detalhado era o mapa, que tinha a mesma escala da realidade que representava, acabando por perder qualquer utilidade. Através do desvelamento dos interesses dos participantes da rede, Latour abala a pretensão a um conhecimento desinteressado, e desvela a presença da vontade de poder nietzschiana. Na busca do controle do que se compreende como realidade, ou da própria realidade,

Os centros acabam por controlar o espaço e o tempo: desenham redes que se interligam nuns poucos pontos de passagem obrigatória. Uma vez que todos os traçados tenham não só sido escritos no papel, mas reescritos de forma geométrica e re-reescritos na forma de equação, não é de admirar que quem controla a geometria e a matemática seja capaz de intervir em quase todos os lugares. (LATOUR, 2000, p. 399).

O poder da representação em substituir a realidade é, por fim, criticado:

Acreditar mais no formulário de enésima ordem do que no senso comum é próprio dos astrônomos, economistas, banqueiros, em suma de todos os que, nas centrais, tratam com fenômenos ausentes por definição. (p. 415).

Ciência pronta vs. ciência em ação, arquitetura vs. projeto

Enquanto Latour confronta a ciência pronta com a ciência em ação, esta tese propõe uma distinção entre o conhecimento acerca da arquitetura, uma vez edificada e tornada pública, e aquele acerca da execução de um projeto de arquitetura. Assim como Latour fez no caso dos cientistas, em também procedi, in loco, à observação do trabalho de arquitetos. Ambos propomos genealogias como modo de se afastar preconceitos específicos aos campos de atuação. Ainda assim, é possível constatar semelhanças entre eles. Este trabalho já discutiu a inversão de posições entre a ciência e o trabalho criativo, proposta por Cross (seção 3.4), e também a concepção da realidade como invenção, proposto pelo pensamento construtivista (subseção 2.1.3). Ambos concebem tanto o projeto quanto a ciência como atividades que lidam

com criatividade e produção de conhecimento. Latour concorda com essa convergência entre ciência e criação.

Examinando as hipóteses desta tese, também se pode constatar convergências entre elas e o trabalho de Latour. Ambos propõem que as atividades criativas da ciência e do projeto sejam mais frutos de seus processos contingentes do que de prefigurações; tanto a ciência quanto o projeto, considerados em sua produção, são produtores, mais que consumidores, de realidades; tanto um quanto outro são produzidos, mais que por figuras mitificadas em gênios criadores, pelo confronto entre os actantes32 (nesta tese denominados condicionantes da forma).

Partindo-se da paridade entre a atividade criativa da ciência e do projeto, é possível propor não apenas caixas-pretas também nos discursos acerca do projeto, mas também que a manutenção delas, como no caso da ciência, se deve à manutenção do status autoral e do estamento arquitetônico. A mitificação da figura do cientista serve à manutenção de prerrogativas acerca do estatuto da realidade, tolhendo-se, assim, posturas criativas. Se certa perspectiva atribui ao cientista, e também ao arquiteto, o status de gênio, isso em nada contribui para a emergência da criatividade, compreendida em moldes diversos do que propõe que criação é atributo do gênio.

Será que os arquitetos trabalham com fenômenos ausentes por definição, e, com isto, constroem redes nas centrais que controlam a verdade sobre o tempo e o espaço (usando a terminologia de Latour) com o objetivo de reserva de mercado? Se se entende que o material sobre o qual o arquiteto trabalha é uma representação de uma outra coisa, como um desenho representa uma idéia, a resposta a essa pergunta pode ser positiva. Porém, se, como presente nas hipóteses desta tese, ele trabalha com a própria coisa in statu nascendi, então ele trabalha com um fenômeno que se desenrola diante de seus olhos.

32

Latour denomina os produtores da ciência como “actantes” e, não, “atores", para indicar que esses produtores não são apenas humanos, mas abrangem também instrumentos, dados e demais contingências.

A manutenção do idealismo também é criticada por Latour: “muitas das coisas que não podem ser feitas com o mundo podem ser feitas com esse mundo do papel” (LATOUR, 2000, p. 367). Aqui, válido também para os arquitetos, o refúgio na representação se vincula à manutenção do idealismo como ferramenta de projeto.

No documento Sobre fazer projeto e aprender a fazer projeto (páginas 107-114)