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A crítica genética - CG é um campo de atuação que propõe estudar os manuscritos, rascunhos e demais documentos produzidos ao longo da criação literária de uma obra, no intuito de conhecer alguma coisa acerca de sua concepção. Ao invés de estudar a obra pronta, o objetivo da CG é estudar seu processo criativo. Para tanto, os documentos produzidos ao longo do processo criativo são considerados como rastros deixados pelo artista em sua atividade produtiva. A partir de um início dedicado às atividades literárias, a CG ampliou seu campo de atuação, para abranger o estudo de processos criativos de outras áreas, incluindo-se aí a arquitetura. Pierre-Marc de Biasi define assim o trabalho feito pela CG: "a interpretação da obra através de seus croquis ou de seus documentos preparatórios leva, há trinta anos, o nome de crítica genética” (DE BIASI, 2000, p. 17). Sobre o mesmo assunto, Cecília Salles (2000, p. 35) diz que “os documentos de processo são [...] registros materiais do processo criador”.

Para a CG, a criação não pode ser compreendida através das categorias tradicionais de “gênio”, “inspiração” ou outras, que hoje mais servem para revelar o sistema de valores de onde provieram do que para descrever o trabalho concreto do artista com seus materiais. Lidando com materiais e descrições, e ainda objetivando abrir as supostas caixas-pretas da criação, a CG se situa em consonância com as pesquisas de Lawson, que descreve mais que prescreve, e também com a genealogia de Latour, que considera a criação como produto da interação de vários actantes33. A atividade do escritor é equiparada à prática de todo homem que produz: a criação deixa de ser insondável, quando considerada em seu processo, isto é, quando

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considerada como atividade vinculada às contingências, das quais emerge. Segundo Cláudia Pino,

a criação artística sempre esteve ligada a um certo mistério, pelo menos na cultura ocidental. Para escrever, o poeta devia ter uma iluminação mística – a inspiração – ou ser tocado por uma espécie de deusa – a musa. Quem ousasse descrever de outra maneira esse momento poderia ser tratado como herege. Surgia assim a crítica genética, disciplina que propunha refletir sobre o processo de criação através do estudo de manuscritos. (PINO. In: ZULAR, 2002, contracapa e orelhas).

Na CG, os procedimentos analíticos são diferentes em cada abordagem, uma vez que dependem, essencialmente, do material de percurso produzido, bem como do tipo de acesso do pesquisador a esse material.

A vertente mais tradicional e filológica da crítica genética busca conhecer algo como a revelação da obra, numa busca de suas essências ou origens. Julga-se que, se por detrás da obra pronta estão seus rascunhos, neles se esconde algo como uma chave para sua revelação. Outra vertente, menos pretensiosa, considera os documentos de processo não como relíquias que podem vir a desvelar alguma suposta verdade acerca da obra, mas como flashes que cristalizam algo acerca da evolução da própria coisa que está sendo feita. Porém, mais importante do que a percepção dos documentos de processo como momentos de cristalização (ainda que sabidamente prematuros) da obra, é sua percepção como índices do movimento criativo que deu origem à obra.

Ela [a CG] não tinha pretensão de “explicar” a criação, nem dar as chaves para a genialidade desse ou daquele autor. Seu objetivo era transformar o processo em um valor. (PINO. In: ZULAR, 2002, contracapa e orelhas).

A observação dos documentos que deram origem a uma obra permite a reconstrução do percurso criativo, através da visualização das transformações que possibilitaram a forma final. O foco das atenções está no movimento da própria coisa in statu nascendi, e esse enfoque distingue a CG das análises literárias que têm como objeto o produto final. Mais que encarados como representações de fenômenos ausentes, os documentos são vistos em sua concretude: a CG, mais que

com representações, trabalha com as coisas propriamente ditas. Para esse tipo de análise, são importantes tanto quanto os conteúdos efetivamente expressos quanto o modo e a forma como esses estão dispostos. O tipo de suporte, a escrita à mão, à máquina ou no computador, a incidência de revisões, a quantidade delas, tudo isso pode levar à reconstrução da criação da obra e, assim, a um conhecimento do processo que lhe deu origem.

A abordagem proposta pela CG é possibilitada por uma compreensão construtivista da realidade que, por sua vez, é tributária de uma imagem de mundo onde esse é constituído por transformações, mais que por coisas ou fatos. As transformações sofridas pela obra em sua gestação impedem que ela seja considerada como “coisa” ou objeto. De modo semelhante, se o autor coloca a obra em processo, o inverso pode também ser dito: essa mesma obra, uma vez considerada em seu movimento, é uma fonte de experiências para o autor, modificando-o também. Assim, sujeitos e objetos são concebidos como interdependentes, e o olhar do pesquisador passa a ter uma especificidade: ele considera autor e obra, ambos em movimento, como videntes e visíveis, em processo constante de conformação mútua, em gênese perpétua, de acordo com as palavras de H. Zerner (2004, p. 21–25). Aqui se observa, também, a validade da proposição de Foucault, quando propõe que origem, mais que proveniência, pode ser considerado como brotamento, e essa é a principal diferença entre as abordagens da CG que objetivam uma suposta revelação, e as subseqüentes, que objetivam conceber a criação como processo, numa identificação entre esses termos, mais do que como fruto de prefigurações quaisquer.

Um ponto de tangência, em especial, fez com que o estudo da CG fosse visto como campo de saber próximo àquele proposto por esta tese: ambos debruçam-se sobre o processo de trabalho daquele que gera a forma, ou seja, ambos procuram obter alguma intimidade com seus processos de criação através da reconstrução das transformações às quais o trabalho foi submetido. Enquanto esta tese utiliza de ferramentas semelhantes aos de Latour para conhecer processos, como a observação in loco e a genealogia, a contribuição do estudo da CG para este trabalho se encontra no fato de propor um método em aberto, sem prescrições: a coerência do percurso criativo será obtida a partir da codificação imprevisível de dados também imprevisíveis. Não sabendo o que encontrará em campo, o

pesquisador da CG lida a partir da observação de dados para uma posterior construção de sentido, numa atitude semelhante à proposta por Hume e pela grounded theory34 para a obtenção do conhecimento.

No documento Sobre fazer projeto e aprender a fazer projeto (páginas 114-117)