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Após Simon ter proposto um primeiro modelo de inserção da atividade de projetos no campo das ciências, Cross reconheceu a existência de um terceiro capítulo na história da relação entre projeto e ciência, propondo uma inversão de precedências. Philippe Boudon (1941–), francês, arquiteto e professor de projeto, é um pesquisador dessa relação e seus trabalhos têm o modelo proposto por Simon como ponto de partida. Seu trabalho visa sistematizar o conhecimento da concepção arquitetônica, para que essa seja passível de ensino e transmissão.

Como modo de pavimentar o caminho que proporá em seguida, Boudon procede a uma diferenciação entre o que entende por criação e por concepção. Para ele, a criação pertence ao universo insondável da grande arte e da estética, nas quais apenas o tempo tem autoridade para discernir o que permanece do que cai no esquecimento. Afastando o envolvimento com quaisquer pressupostos metafísicos, Boudon não se ocupa da criação, e faz da concepção a matéria de seu trabalho. Essa é vista como uma atividade comunicável e, por conseguinte, passível de ser objeto de ensino, uma vez que se constitui de um conjunto de operações identificáveis.

Precisando os conceitos empregados, Boudon delimita posturas diversas diante da elaboração de projetos. Após delimitar os conceitos acima expostos, ele critica o que compreende como “processo” e propõe, em contrapartida, o conceito de “operações de concepção”. Para ele, “processo”, tal como utilizado pela literatura do design research, é um conceito inadequado, pois não dá conta das operações que ocorrem na atividade criativa.

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Sem dúvida é importante efetuar o deslocamento da sincronia do estado final da obra em direção à diacronia genealógica, em direção ao processo. [...] Mas não é suficiente ver o trabalho do artista como processo para ter acesso ao conhecimento da concepção. (BOUDON, 2004, p. 28).

A crítica de Boudon ao processo como conceito útil ao estudo da concepção se deve ao fato de que os chamados estudos de processo (dentre os quais se incluem a vertente tradicional da crítica genética, já comentada neste trabalho) pesquisam esse tema para, através dele, obterem uma chave para a revelação de supostas verdades acerca da concepção. Criticando os metodólogos da segunda fase da relação entre ciência e projeto35, Boudon afirma que subjaz a esse conceito a crença na existência de um processo geral para a produção de projetos, raciocínio que reproduz os caminhos trilhados pelas ciências da natureza.

Sendo independentes do processo, as operações ali inseridas o conformam e, não, o contrário. Assim, não existe nenhum processo a ser conhecido, mas apenas seqüências de operações.

Entre processo de criação e operação de concepção se coloca uma diferença epistemológica notória: de um lado a singularidade de um processo, de outra a generalidade de uma operação partilhada. (BOUDON, 2004, p. 37).

Como opção ao estudo de processos, e também ao estudo das origens (proveniências) da criação, ele propõe a identificação do que denomina “operações de concepção”. Para tanto, Boudon inicia seu livro Conception (2004) com um exemplo no qual analisa duas figuras, tendo sido uma desenhada por Picasso (FIG 15a) e outra por um certo Jastrow (FIG. 15b e c).

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a) b) c)

FIGURA 15– Desenhos de Picasso (15a) e Jastrow (15b e c) analisados por Boudon Fonte: BOUDON, 2004, p. 10-11.

Segundo ele, ainda que essas figuras não sejam equivalentes quanto a seu valor artístico, é possível identificar nelas uma operação de concepção comum: a operação de superposição de duas imagens.

Qualquer que venha a ser a distância artística que separe os dois desenhos, deve-se reconhecer que, de um ponto de vista que poderia ser o de suas concepções, elas têm algo em comum que diz respeito à superposição de duas imagens. (BOUDON, 2004, p. 21).

O conceito de operação nasceu do interesse no estudo das transformações às quais uma obra está sujeita, mais do que na observação da seqüência de etapas de sua produção. Porém, ainda que mais inclinado à apreensão do devir do que do ser, ou dos seres intermediários pelos quais poderia ser tomada cada uma das etapas citadas, Boudon constata que algo de pontual, mais do que fluido, ocorre nas transformações às quais está sujeito o objeto nascente, e a essa coisa pontual ele denomina “operação”. Identificando-as, Boudon abre um campo de estudos que viabiliza o diálogo a respeito da concepção arquitetônica, distinto do campo que propõe especulações estéticas sobre o que chama de “criação” e os atributos supostamente divinos ali inerentes. A Simon, que escreve que qualquer um que busca transformar uma situação existente em outra, preferida, é um criador (concepteur), Boudon acrescenta que é necessário considerar as operações inscritas nesse processo de transformação, uma vez que elas o produzem.

Em defesa de Venturi, que afirma serem a complexidade e a contradição intrínsecas à atividade de conformação, Boudon defende que uma operação, a de conjunção, é emblemática de toda atividade de concepção. Diferentemente da atividade de

disjunção, ou análise, o autor sustenta que um projeto se faz por meio de conjunções, ou sínteses. Não se trata de conformar através da tradicional divisão cartesiana de um problema em suas menores partes identificáveis para, em seguida, juntar as pequenas soluções em uma solução final, como propôs Alexander, pois esse procedimento não resolve o problema da conformação de sínteses. Concordando com Simon, Boudon afirma que esse problema não tem como ser solucionado por meio dos procedimentos empregados pelas ciências da natureza, e também que a atividade de síntese é um diferencial fundamental entre o trabalho daquele que cria, por um lado, e o trabalho de uma ciência voltada à descoberta de uma realidade suposta, de antemão, como dada.

Insatisfeito com a prefiguração da idéia como estratégia de concepção, Boudon demonstra que Picasso não iniciava seu trabalho a partir de uma representação do estado desejado36. Esse poderia ser o caso na pintura clássica, onde um esboço guia o restante dos trabalhos de pintura. Porém, não ocorrendo no caso de Picasso, a idealização não poderia arrogar-se direito à universalidade, no que concerne o ato criativo. Para Boudon,

a situação normal de um criador é fazer existir algo que não existe ainda. Colocar a solução no início dos trabalhos pode ser um modo de se esquivar da problemática da concepção. (BOUDON, 2004, p. 64).

Raciocinando desse modo, Boudon mostra-se tributário da inflexão sofrida pela atividade criativa no início do século XX, quando essa passa de figurativa a abstrata, ou seja, deixa de ser atividade de representação de uma realidade que lhe é exterior, e passa a investigar suas próprias possibilidades criativas.

Para Simon e Lawson, projeto é solução de problema, e problemas de projeto possuem uma suposta natureza verdadeira e intrínseca, que os distingue de problemas de outras áreas. Criticando as buscas dos autores citados pela suposta natureza dos problemas de projeto, Boudon cita um exemplo no qual um projeto foi

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Para essa demonstração, Boudon se utiliza de uma análise que fez do filme O mistério de Picasso, 2003.

edificado em um terreno distinto daquele para o qual fora projetado e, assim, a solução antecedeu ao problema. Segundo ele, ali ocorreu uma solução, mas não uma resolução, pois, ainda que adequada, não foi concebida para o caso em questão. Nesse, uma escola de dança foi projetada para um terreno bastante íngreme, sendo esse condicionante responsável pela geração de um partido compacto. No novo terreno, plano, o partido compacto sugeria o enclausuramento e intimidade necessários à atividade ali desenvolvida. O projeto adequava-se a ambos os casos, ainda que devido a motivações distintas. Diz o autor: “a concepção não é uma atividade de resolução de problema, mas de produção de algo que possa ser apresentado como solução do problema” (BOUDON, 2004, p. 72). Compreendendo a projetação como atividade de produção de transformações através de operações de concepção, ele desobriga o arquiteto de ter um “problema” perfeitamente delineado sob seus olhos, quando do início de seus trabalhos. E sugere que a insistência na concepção do projeto como solução de problema obstrui a compreensão das atividades criativas. Boudon considera que, em projeto, os problemas são múltiplos, mutáveis e vinculados uns aos outros, lembrando a noção de wicked problem proposta por Rittel e Webber (1984).

Sobre a relação entre concepção e conhecimento, o autor se pergunta: “a concepção pode ser conhecimento de si própria, ou uma distinção deve ser feita entre concepção como ação e concepção como objeto de conhecimento?” (BOUDON, 2004, p. 56). Boudon considera que deve ser feita a distinção entre essas instâncias, pois se a concepção junta e funde em forma, o conhecimento da concepção separa. Para designar o conhecimento da concepção arquitetônico (BOUDON, 2004, p. 56) e distingui-lo da concepção, ele cunhou o termo “arquiteturologia”, significando algo como uma ciência da concepção. Pode-se notar uma divergência entre sua posição acerca da relação entre concepção e conhecimento, e aquela defendida por Fogel, para quem “conhecer” significa nascer junto com a coisa que está sendo feita37.

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Boudon distingue a concepção acerca do projeto que parte de uma visão do objetivo a ser alcançado (o que chamo de prefiguração da idéia) daquela que se dá a partir das operações de concepção que visam a atingir aquele objetivo. Assim como pretendo mostrar neste trabalho, trata-se, de um lado, da criação compreendida como idealização e, de outro, da concepção compreendida como conjunto de operações à qual o objeto nascente é submetido.

No documento Sobre fazer projeto e aprender a fazer projeto (páginas 117-122)