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Renascimento, maneirismo e neoclassicismo

2.1 Nietzsche, comentadores e afiliações

2.2.4 Renascimento, maneirismo e neoclassicismo

No Renascimento, a arte assume como missão imitar a natureza, e os pintores passam a colocar-se em frente a modelos a serem representados. Uma incipiente teoria da arte busca na antiguidade os fundamentos da criação, ignorados tanto pelo neoplatonismo antigo quanto pela a Idade Média e sua concepção acerca da “idéia”, compreendida como lógica do pensamento divino e veiculada pelos artistas. A teoria renascentista propõe que se busque a fidelidade da representação em relação ao original representado. Porém, essa noção naturalista acerca da criação desenvolve- se em outra, idealista: se, de acordo com a primeira noção, a arte deve pesquisar a natureza para, imitando-a, extrair suas leis universais, a segunda vai mais adiante: copiando a natureza, a arte deverá triunfar sobre essa, no sentido em que, mais tarde, se entenderá o conceito de “ideal”.

Como pretendo, aqui, explorar a transformação de “idéia” em “ideal” proposta por Panofsky e que, segundo creio, organiza certa concepção presente até hoje acerca da criação, cabe também elucidar o que se compreende por “ideal”, substantivo de origem setecentista. Abbagnano, baseando-se em Kant, compreende o “ideal” como a noção da encarnação acabada, mas não real, da perfeição em determinado campo. Assim como a idéia dita a regra, o ideal serve de modelo. Embora não possuam realidade objetiva, os ideais não são meras quimeras: oferecem critérios à razão e essa precisa do conceito do que é perfeito em seu gênero para, tomando-o como medida, avaliar e estimar o grau e a falta da perfeição (ABBAGNANO, 1998, p. 522).

A teoria da arte pressupunha a existência de um sistema de leis universais e válidas incondicionalmente, do qual as regras da arte seriam deduzidas. Assim, a obra de arte deveria se apoiar nas leis fundamentais da matemática e da música (PANOFSKY, 2000, p. 50–51). A teoria se dirige a sujeitos e objetos observáveis, existentes sobre a face da terra, com o objetivo de se destilar, a partir do existente, aquelas supostas leis. Para os teóricos da arte, ainda que fosse metafísica a crença na existência da ordem da natureza, não o era a crença na idéia como arquétipo. Alberti (1404 – 1472) opôs à interpretação metafísica da beleza a interpretação puramente fenomênica da Grécia clássica: a essência da beleza se baseava na

harmonia de proporções e cores, lei absoluta e soberana da natureza (PANOFSKY, 2000, p. 53). Aqui “idéia” significa a representação que se tem, a partir da natureza, de uma beleza que a supera, antecipando o conceito de “ideal”. Vasari (1511 – 1574), por sua vez, considera que a idéia recebe sua origem da experiência. Para ele, a idéia não existe a priori no espírito do artista, nem preexiste à experiência. Deixando de ser considerada como conteúdo dado a ser representado, e ainda como objeto transcendente ao conhecimento, a idéia passa a ser compreendida como produto desse conhecimento (PANOFSKY, 2000, p. 62). Em Vasari, “idéia” é a representação de uma imagem que independe da natureza e possui a mesma significação que “pensamento” ou “conceito”.

Além dessas concepções acerca do termo, o neoplatonismo, revisitado, propõe uma outra, antagônica em relação à teoria da arte, no que se refere ao processo criativo: enquanto essa última procura a legitimação da arte de fora para dentro, isto é, do particular observável para o universal, ele procura a legitimação de dentro para fora, ou seja, do espírito que engendra idéias a partir de si próprio, para o mundo, esse conformado a partir das idéias. Ainda que ambos, teoria da arte e neoplatonismo, se diferenciem na argumentação acerca da dos processos criativos, eles são concordantes na afirmação de um substrato metafísico que aposta em uma ordem subjacente ao mundo. Marcílio Ficino (1433 – 1499), neoplatônico, ora define a beleza estritamente de acordo com o neoplatonismo antigo, como uma “semelhança evidente dos corpos com as idéias”, ou ainda “triunfo da razão divina sobre a matéria”, ora a caracteriza, aproximando-se do neoplatonismo cristão, como um “raio emanado da face de Deus”. A consciência humana só pode chegar a um conhecimento porque as “impressões” das idéias preexistem em nossa alma como centelhas divinas (PANOFSKY, 2000, p. 53–55).

Observa-se que, durante o Renascimento, se por um lado Vasari adota uma concepção acerca da idéia que pode ser considerada como precursora daquela que, mais tarde, será desenvolvida pelos empiristas, por outro ocorre um crescente desvirtuamento em relação aos pressupostos iniciais da teoria da arte, quando a noção albertiana acerca da “idéia” inicia sua transformação em direção àquela de “ideal”, e a teoria das idéias se torna algo como semelhante a uma teoria da inspiração. Juntamente com a concepção neoplatônica, que considera o artista

como emissário de Deus, caminha-se em direção à construção da concepção do artista como gênio criativo.

Ao final do período, a concepção de idéia identifica, mais uma vez, o mundo das idéias com um mundo de realidades superiores, abrindo-se, assim, o caminho para o maneirismo (PANOFSKY, 2000, p. 65). Durante esse período, o artista se desvencilha das regras transcendentais ditadas pela teoria da arte renascentista. Não submisso a regras, ele tem o direito e dever de atingir, com suas próprias forças, esse “conhecimento perfeito do objeto inteligível” (PANOFSKY, 2000, p. 68). Amadurecem as figuras do gênio e do ideal, numa inversão de valores: se durante o Renascimento os artistas deveriam imitar a natureza ou suplantar suas regras, aqui Giordano Bruno, por exemplo, afirma que só existem verdadeiras regras se existem verdadeiros artistas, numa concepção onde as regras passam a ser ditadas pelos artistas. Se, durante o Renascimento, buscou-se legitimar concepções acerca da criação que se vinculassem à antiguidade greco-romana, durante o maneirismo essa legitimação será buscada na Idade Média. Zuccari (1784 –1817) defende a arte como manifestação de uma idéia interior que se formou no espírito do artista. O “desenho interior”, ou a “idéia”, precede a execução da obra e é totalmente independente dela, devendo-se isso ao fato de que Deus deu ao homem a faculdade de prefigurar, permitindo a esse criar um mundo inteligível. Disegno significa, para o Zuccari, segno di Dio in noi (signo de Deus em nós), isto é, ao homem que participa da faculdade divina de criar as idéias (PANOFSKY, 2000, p. 84-86) é dada a prerrogativa da interpretação pessoal. Essa é noção distinta daquela outra, que julgava que a percepção sensível está na origem da formação das idéias. Enquanto na teoria da arte renascentista a necessidade metafísica de legitimar o sentido e o valor da beleza estava vinculada ao caráter impessoal da ordem suposta no mundo, agora ela se vincula, mais uma vez, a considerações de ordem teológica e à interpretação pessoal acerca dessa ordem.

Em seguida, a teoria neoclássica da arte atua contra duas frentes: por um lado, volta-se contra o empirismo da teoria da arte renascentista, que atribuía à arte o papel de mera “reprodução” da natureza, enquanto, por outro lado, volta-se também contra os “amaneirados” do período imediatamente anterior, que buscavam, na estilização, sua legitimação. Os primeiros “são condenáveis por não formarem neles

próprios absolutamente nenhuma idéia” (PANOFSKY, 2000, p. 103). Os maneiristas, ao contrário, por não saíram do reino da “idéia”. O equilíbrio, para os neoclássicos, encontrava-se mais uma vez na arte da antiguidade, mais “natural” que “naturalista”. Para Panofsky, o conceito de “idéia” encontra na teoria neoclássica sua última e definitiva formulação, em um meio-termo entre imitação da natureza e superação dela (PANOFSKY, 2000, p. 101–102). A idéia artística provém da intuição sensível, enquanto essa intuição confere-lhe uma forma mais pura e sublime. Assim como ocorreu com a evolução do conceito de “idéia” durante o Renascimento, a teoria neoclássica sustenta que a idéia é uma intuição da natureza, “purificada” pelo nosso espírito. A única diferença é que agora ela se encontra expressamente formulada em um sistema (PANOFSKY, 2000, p. 105–106). Idealizando-se a natureza, cria-se uma estética idealista e consuma-se a transformação da idéia em ideal.