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Alguns autores apresentados até aqui se perguntam pelos fundamentos da atividade de projeto. Justificação, autorização, fundamentação, legitimação: desde a revolução científica dos séculos XVII e XVIII, esses são temas que vêm se tornando cada vez mais presentes. Durand procurava na ciência positiva de então a legitimação dada pelo procedimento objetivo, isento de demandas que não as de um funcionalismo incipiente. O primeiro Alexander seguiu o caminho da lógica para a obtenção de um método de projeto que fosse imune a considerações subjetivas. Em seguida, abandona as ciências exatas e fundamenta sua atividade na busca de um tempo perdido, quando uma simplicidade idealizada, supostamente inerente ao ser humano, não encontrava barreiras para sua expressão. Simon abre um novo campo a ser explorado por autores que o seguiram, ao reconhecer a precariedade da fundamentação dada pela ciência positiva, para quem faz projeto.

Na esteira de Nietzsche, que se perguntava pela utilidade dos fundamentos, Latour é de opinião que

apenas uma mente colocada na estranha posição de contemplar o mundo de dentro para fora e ligada ao exterior unicamente pela tênue conexão do olhar se agitaria no medo constante de perder a realidade; apenas esse observador sem corpo ansiaria por um kit de equipamentos de sobrevivência absoluto. (LATOUR, 2001, p. 16–17).

Fundamento, para esses dois autores, é mecanismo metafísico para disfarçar, em vontade de verdade, a presença da vontade de poder. Nessa vertente, incluo o trabalho de Wolfgang Jonas (1953–), arquiteto naval alemão, consultor da indústria automobilística e professor universitário de “process design”, isto é, desenho/projeto do processo.

Jonas diz categoricamente que projeto não tem fundamento, uma vez que é, ele próprio, “fundante”, ou seja, inaugurador de fundamentos. Fundamento, aqui, é qualquer coisa colocada como causa, origem, justificação, desvelamento de

supostas verdades fundamentais etc., ou seja, qualquer coisa ou doutrina tomada como base necessária à atividade de quem projeta. Para Jonas, não existe nenhum corpo conceitual que se encaixe nesse papel, seja ele advindo dos conhecimentos discursivos (história, teoria), seja dos conhecimentos demonstrativos (matemática, física). Ao considerar que projeto é a atividade humana básica, Jonas (2003) se coloca ao lado de Nigel Cross e sua inversão de precedências, segundo a qual os fundamentos e procedimentos científicos seriam subordinados aos procedimentos criativos, um tipo desses últimos. Construtivista, Jonas argumenta em círculos, lançando hipóteses de um possível que se vai solidificando paulatina e reciprocamente. Seu objetivo é a construção de uma possibilidade. Nesse tipo de processo, o modo como se argumenta não tem como ser destacado da própria coisa a ser apresentada. Cessa, então, toda e qualquer pretensão a uma diferenciação entre forma e conteúdo. O que é proposto só tem como sê-lo a partir de uma forma específica de argumentação. Em outras palavras, para fazer existir a hipótese sobre a qual se trabalha, essa tem que ser construída, pois essa hipótese não existe, em algum lugar, de modo independente de alguém que a criou. O modo como a coisa se dá, como também seu processo de formação, são a própria coisa.

Longe de significar uma deficiência, a ausência de fundamento seria a força da atividade do arquiteto, uma vez que ele pode se dar ao direito de buscar, aqui e ali (muddle through), modos, idéias e métodos para solucionar as questões que lhe são propostas. Distante do universo do especialista, o arquiteto é aquele que inventa seu método e a forma resultante, a partir de dados sempre cambiantes. Distante da ciência como ideal, como busca de verdades últimas ou ainda modo exclusivo de acesso legítimo à realidade, o projeto se avizinha da ciência em ação de Bruno Latour. “Ciência” é mais o que dela é feito nos laboratórios do que seu leque ideal de aspirações. O mesmo pode ser dito da atividade de projeto. Os aspectos contingentes, mais que os supostamente necessários, se não têm dado o nome, dão corpo e sentido à constituição das coisas não só na ciência, mas, também, no projeto.

Projeto e progresso não coexistem na mesma esfera. Progresso, termo que nos faz lembrar a flecha do tempo positivista, em que cada passo significa avanço em relação ao estado anterior, obtenção de fundamentos mais sólidos, e em que o

objetivo é quase sempre o alcance de uma situação ideal pré-concebida de antemão, é um conceito que não se aplica no caso do projeto, a não ser como avanço técnico. Se o ideal da ciência é a melhoria da qualidade de vida (concepção hoje discutível), não se pode dizer o mesmo acerca do projeto. Não tem sentido dizer que, na história da arquitetura, as formas de hoje representam um progresso sobre aquelas do período neoclássico, por exemplo. Projeto, aqui, em contraposição, vai significar ajuste (ou, como escreve Jonas, interface) entre contexto e artefato: uma ponte entre ambos.

Nenhum método pode ser definido de antemão para a atividade do projeto. A busca pelo método, aqui, soa como a busca de essências em uma atividade que prescinde disso. Como escreveu Feyerabend, tudo vale (1974, p. 22). Na página inicial do site que organiza39, Jonas pergunta-se acerca do fundamento e do método do projeto: descobrimos o campo de trabalho ou projetamo-lo? O fundamento da atividade do projeto deve ser descoberto, como quer Alexander em suas várias tentativas cartesianas, ou para existir tem que ser, justamente, projetado? Segundo Jonas, o fundamento do projeto é justamente a ausência dele, em uma frase que ecoa Nietzsche. Esse argumento surge no momento em que, segundo o autor, vivemos uma situação em que outras disciplinas também se apercebem do caráter frágil e fluido de seus respectivos embasamentos (JONAS, 2003). Em todas as áreas de conhecimento, vem tomando corpo a noção de que seus princípios generativos são, sobretudo, princípios gerados. Quanto mais “verdadeiros” os fundamentos da atividade do projeto procuram ser, tanto mais enrijecidos e contraproducentes se tornam. A evolução das metodologias de projeto nos mostra isso.

Diferente do pensamento empírico que busca por evidências, Jonas sugere que nada é evidente. Isso pode ser pensado a partir do instante em que nos apercebemos que não há instrumento autorizado a verificar a adequação entre uma suposta realidade externa e a percepção que dela temos. Uma vez que a realidade não é mais prefigurada como dada, o trabalho do arquiteto é inventar hipóteses de realidade, descobrindo o potencial de dissolução e recombinação, aqui e ali. O

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HOCHSCHULE FÜR KÜNSTE BREMEN, The basic paradox. 2002. Disponível em http://paradox.verhaag.net.

arquiteto é aquele que inventa, e assim atribui sentido não a partir de uma lista laboratorial, biunívoca e dada de significantes e significados, mas, justamente, através da experimentação.

Nenhuma obrigação de caráter ético ou moral informa, de antemão, a atividade de projeto, a partir do instante em que o humanismo abandona seu caráter prescritivo, moral, e passa a dizer respeito, apenas, a tudo o que é humano e, assim, a tudo o que o homem faz, fez ou fará, desvelando recalques de uma posição idealista. Os processos de inovação existem em uma esfera imune aos valores sobre os quais se supunha, até então, que repousavam. Inimaginável seria, por exemplo, supor, há vinte anos, que a arte dos grafiteiros poderia vir a ser elevada ao status de grande arte. Essa desobrigação também é, a partir de Cross e Lawson, a tônica da relação entre conhecimento e projeto. Deixa-se de falar de design científico ou de ciência do projeto, para se enfocar o conhecimento possível acerca do projeto, sem que julgamentos de valor moral venham a propor delimitações de campo.

Projeto sempre foi uma disciplina que trabalhou com o conceito de não-saber. Ao invés de expandir as ilhas de uma aparente racionalidade científica, o arquiteto cruza, a todo tempo, as fronteiras entre o conhecido e o desconhecido. Aceitar o fato de não se conhecer o final das atividades de um determinado projeto pode ser uma alternativa promissora para se obter o novo – justamente, o desconhecido. Assim como, segundo Nietzsche e sua vontade de potência, não há conhecimento “puro”, ou “desinteressado”, mas apenas conhecimento de, isto é, assim como o conhecimento liga aquele suposto sujeito ao seu suposto objeto, tornando-os mutuamente dependentes, assim também não se pode conceber a atividade criativa arquitetônica como a reprodução, no papel e na obra, de uma idéia “pura”, previamente “desenhada” na mente. A projetação nos permite, ao mesmo tempo, negociar e ver como negociamos os limites daquilo que compreendemos como sendo o real, o que não procede, quando pensamos uma atividade fundada em qualquer coisa na qual se acredita, e da qual se espera algo. Em projeto,

compreendemos os processos pelos quais os limites do real são continuamente formados e reformados (DILNOT40, citado por JONAS, 2002).

Isso é implícito no modo de conhecer específico da atividade de projeto, já visto em Cross e Lawson. Jonas adiciona, a esse raciocínio, o fato de que tal modo não deve se envergonhar de suas origens pré-racionais. Há muitos aspectos misteriosos envolvendo a projetação, qualquer que seja o nome que possamos dar a eles: intuição, criatividade, insight ou, como Jonas prefere dizer, sorte. Afinal, racionalizar sempre foi uma atividade exercida em uma segunda etapa, e nunca numa primeira etapa da atividade humana, como o projeto o é.

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DILNOT, Clive. The science of uncertainty: the potential contribution of design to knowledge. In: PROCEEDINGS OF THE OHIO CONFERENCE, 1998, Pittsburgh: Carnegie Mellon University, p. 65–97.

4 RELATO DO PROJETO

Afastando temporariamente a abordagem teórica sobre o tema desta tese, neste capítulo entro em uma etapa onde descrevo meu contato com um grupo de arquitetos durante a elaboração de um projeto. Nos capítulos que se seguem, será proposta uma aproximação gradual entre as duas abordagens, teórica e prática.

Entre os dias 5 de setembro e 19 de dezembro de 2006, acompanhei os trabalhos de projeto de uma residência a ser edificada em Nova Lima - MG. Sempre que a equipe de arquitetos se dispunha a trabalhar no projeto, eu era chamado para que ficasse ao lado deles vendo-os trabalhar, sem interferir diretamente no projeto que estava sendo elaborado.

Durante todo o processo, eu indexei e fotografei todos os documentos produzidos, para que pudesse, em um segundo momento, reconstituir o percurso do projeto. A maioria dos documentos era constituída por folhas de papel-manteiga desenhadas a lápis. Além disso, foram produzidos desenhos à mão livre com vários tipos de lápis e canetas, sobre papéis variados, e também desenhos elaborados com o auxílio do computador - CAD, utilizando-se de programas gráficos, e depois impressos. Quando o projeto estava preparado para sua primeira apresentação, foi elaborada uma maquete física.

Como material adicional destinado à apreensão do processo de projeto, foram gravadas uma série de entrevistas com a equipe, nas quais eles eram convidados a discorrer a respeito do processo de criação do projeto em questão. Além desses recursos, eu fiz uma série de anotações em uma caderneta de campo, onde registrei dados relativos ao percurso de projeto, como também outros dados que eu acreditava serem relevantes. Esse conjunto, a saber, fotos, gravações e anotações, constitui o material do qual eu dispunha para elaborar este relato do processo de projeto da equipe, naquele caso específico.

Uma pergunta se impôs: uma vez que é impossível representar, nestas folhas de papel, a globalidade da realidade acompanhada durante aqueles meses, qual deveria ser o recorte a ser feito? Uma vez passada uma realidade bruta, dela

restariam dados, e uma vez reunidos esses dados, o que deles deveria ser redigido e transformado no relato? Para me guiar nesse campo, me ative às hipóteses delineadas nesta tese.

Esteve em jogo, assim, o questionamento concernente ao acesso a uma realidade que se apresentava múltipla. Pode-se dizer que aquele processo que acompanhei era a realidade de primeira ordem. Os dados dela extraídos (papéis, fotos, gravações) eram fantasmas de uma realidade que se foi. Porém, deles pode também ser dito que consistiam uma outra realidade, de segunda ordem. O período de tempo durante o qual o projeto foi acompanhado se fora, e o que existia, para a elaboração do relato, era o conjunto de registros. A mesma transposição de patamares pode ser dito acerca deste relato: se o conjunto dos registros é uma realidade de segunda ordem, este relato é uma realidade de terceira ordem.

Não tenho a pretensão de elaborar um relato que procure ser tradução transparente (uma vez constatada a impossibilidade de tal procedimento) daquelas realidades de primeira ou segunda ordem: a cada patamar, a realidade tem sua própria autonomia. Ao redigir, seleciono, interligo, teço uma nova teia, do mesmo modo como procuro demonstrar o que pode acontecer no processo de criação de um objeto arquitetônico. A observação, seleção e transformação do material destinado a elaborar este relato, afastada a pretensão de terem sido feitos a partir de um ponto de vista isento, foram responsáveis por fazerem surgir fatos e conexões novos e significativos para o andamento desta tese.

O objeto de estudo descrito aqui foi o processo de conformação de uma casa. Sendo assim, não se tratou de um objeto estável no tempo e no espaço. Pelo contrário, o objeto analisado esteve entre o ser e o não ser. Se não era estável, também não era estático, isto é, ele se movimentou: sofreu deflexões ao longo de sua criação, uma vez sujeito aos vários condicionantes impostos, paulatinamente considerados pelos arquitetos envolvidos. Observar as deflexões ou movimentos do objeto ao longo de sua criação: eis o que pretendeu esse relato.

Com poucas exceções, as imagens presentes a partir deste ponto foram tomadas por mim, através de fotografias e escaneamentos em formato JPG, ou pela própria

equipe, através de desenhos assistidos pelo computador, em formato DWG, JPG ou PDF. Para que pudesse integrar este trabalho, isto é, para elaborar este relato, esse material foi processado. Porém, ao processar o material, ele perdeu parte da delicadeza do traço presente nos documentos originais, e cuja observação é importante para este trabalho. Por exemplo, o simples fato de ter que definir uma resolução qualquer para a impressão de uma imagem já separava duas realidades: o desenho feito pelo arquiteto, de um lado, e, de outro, a imagem apresentada aqui.

No documento Sobre fazer projeto e aprender a fazer projeto (páginas 124-131)