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Busca por cuidado e novos desafios

No documento Lúpus – “só quem tem é que sabe”. (páginas 63-70)

CAPÍTULO 1. UMA ABORDAGEM AUTOETNOGRÁFICA SOBRE LÚPUS

1.2. Corpo, experiência e doença crônica como expressão de mim mesma – o início (?)

1.2.2. Busca por cuidado e novos desafios

Em princípio, apesar de diagnosticada pela hematologista eu não compreendia de forma clara o que estava vivendo, a gravidade da doença e como meu corpo reagiria a partir dali. Na verdade eu nem entendia como minha situação tinha se tornado bastante complicada, apenas que em certos momentos sentia meu corpo exausto, por isso a única coisa em minha mente era o dever de seguir o tratamento para ficar boa, como minha mãe me solicitava. De um modo geral, eu buscava na intervenção e tratamento médicos uma tentativa de restabelecimento de meu equilíbrio perturbado (GADAMER, 2006) nessa nova trajetória de doente crônica.

Ao partir à procura por tratamento descobri que o acesso não seria tão fácil na rede pública. Havia um especialista muito conhecido, inclusive indicado para o meu caso, mas o valor de sua consulta particular estava totalmente distante de minha realidade financeira, o equivalente a R$ 700,00 hoje. Encontrei uma médica no hospital Santa Isabel, integrante do grupo de trabalho deste médico e consegui marcar uma consulta com um preço mais acessível (isto não queria dizer barato, em torno de R$ 300,00 a 400,00 atualmente).

Na realidade estes médicos atendiam na rede do Sistema Único de Saúde (SUS) neste hospital, mas a minha tentativa de marcação foi frustrada. A recepcionista encarregada pela marcação me orientou a procurar uma consulta particular com alguém da equipe, pois era assim que se dava o processo, e com o diagnóstico da doença o reumatologista daria um relatório e pedido de abertura de cadastro para acompanhamento com a equipe de especialistas em lúpus pelo SUS.

No dia de minha primeira consulta particular com a reumatologista contei sobre todo o processo de cuidado vivido durante o período de diagnóstico de anemia, sobre as terapias medicamentosas, etc. e esta ouviu atentamente exatamente tudo. Em seguida, me solicitou uma bateria de exames, além da repetição do FAN, numa clínica particular específica, onde o sangue seria mandado para São Paulo, com uma maior probabilidade de certeza do resultado. Quando o exame estivesse pronto eu deveria marcar uma nova consulta, mas enquanto isso continuaria com as indicações de tratamento feitas pela hematologista, inserindo-se o uso de difosfato de cloroquina, um medicamento

específico de tratamento para pacientes com lúpus, para melhor controle da doença, ressaltou. Com o resultado dos exames positivos para o diagnóstico de lúpus foi dado um relatório para que eu começasse o tratamento no ambulatório de reumatologia, assim como a atendente já havia me explicado.

Para Williams (1996), no curso normal dos eventos nossa relação com os nossos corpos permanece em grande medida sem problemas e é tida como certa. Nas primeiras consultas não havia uma dimensão clara para mim a respeito das diversas implicações ocorridas com o surgimento da doença, a própria noção de tratamento para “ficar boa” não tinha sido muito bem tematizada. Em primeiro lugar, seria preciso pensar em que condições eu poderia me considerar como boa tendo uma doença crônica aparentemente bastante grave? E a partir dessa nova condição, como estaria engajada ou disposta a me posicionar diante das condições encontradas para uma melhoria de meu quadro?

Essas perguntas seguiram em paralelo a uma adaptação no meu dia a dia na busca de controle da doença, com os mesmos dilemas relacionados aos efeitos colaterais do corticoide, adicionados ao surgimento de medos surgidos com a nova substância, desconhecida para mim, sabia apenas que poderia trazer algumas complicações no fundo do olho (isso foi enfatizado pela reumatologista); este era um medicamento feito em farmácia de manipulação, me causava bastante dor no estômago, muitas vezes quando a cápsula se dissolvia dentro de mim a substância chegava amarga em minha boca, uma sensação muito ruim, com a qual tive de me adaptar.

Por vezes eu me esquecia de tomar a cloroquina, indicada depois do almoço, precisava lembrar o horário de remédios diferentes, administrá-los da maneira indicada, prestando atenção nas dosagens corretas de cada um. No início algumas vezes minha mãe me perguntava se já havia tomado, outros momentos eu tinha de lembrar sozinha, esse ajuste era difícil, pois a tristeza também fazia parte de meu cotidiano. Digo que esse ajuste foi difícil porque em períodos de remissão eu costumo tomar uma dosagem menor de medicamentos, às vezes não havendo necessidade de aliar o corticoide com a cloroquina, por exemplo, causando menos efeitos colaterais. Para mim, dava tristeza por causa da doença e dos efeitos dos remédios, ter de me ajustar a isso não foi fácil.

A rotina do novo ambulatório era totalmente diferenciada do anterior, como também os novos sentimentos desdobrados desse mundo de doente crônica no qual ainda não me encaixava muito bem. No hospital Santa Isabel a mudança já começava

pelo modo de interação entre os pacientes. No HEMOBA não havia um dia específico para quem tinha anemia hemolítica, eu nunca encontrei ninguém em minhas consultas que me dissesse ter tal patologia, encontrava pacientes com leucopenia e uma grande parcela com anemia falciforme. A situação de muitos deles era delicada, algumas pessoas estavam bem frágeis, com a imunidade baixa, contavam sobre problemas diversos, mas na maioria das vezes falavam muito pouco, certas vezes em resposta a meus questionamentos. As perguntas a outros surgiam involuntariamente, e eu acabava também falando sobre mim, sobre o surgimento da doença e os problemas pelos quais estava passando.

Neste período eu não via neles a necessidade de expor seus sentimentos e vicissitudes de forma frequente, às vezes seus parentes também contavam sobre os percalços encontrados pelo fato de morarem no interior, não encontrando o suporte necessário em sua localidade e a necessidade de busca por cuidado na capital. A sala de espera tinha uma televisão, apesar de minha curiosidade frequente e dos questionamentos feitos a alguns, em grande parte da tarde eu ficava assistindo e esperando o tempo passar; o resto das pessoas fazia o mesmo.

Em outros dias, quando minhas taxas de hemoglobina e plaquetas estavam estabilizadas (e com o aval da hematologista) tinha consulta com dentista, pois havia uma possibilidade de atendimento no mesmo local, a última enfatizava ser bastante perigoso mexer nos dentes, fazer limpeza ou extração quando a taxa de plaquetas estivesse fora da normalidade, explicava haver uma espécie de sangramento interno, devendo primeiro ser controlado, pois caso houvesse uma intervenção dentária no momento de crise poderia criar um sangramento incontido gerando uma situação mais grave, desta forma todo o cuidado era necessário.

Acabava levando toda tarde no ambulatório, meu atendimento geralmente ocorria por volta das 17h. Apesar de ir às 13h, uma grande parcela chegava sempre muito antes de mim, os pacientes do interior geralmente estavam ali desde a manhã, quando os ônibus de seus municípios os deixavam. Como o atendimento se organizava por ordem de chegada estes eram sempre os primeiros a serem atendidos. Em síntese, no meu tratamento no HEMOBA ter de ir ao ambulatório nunca foi algo que me incomodou, eu sempre interagi muito bem com as pessoas no ambulatório. Apesar de

minhas vicissitudes, falar sobre minha vida e ouvir a deles não era problema, mas com o diagnóstico de lúpus as coisas foram se modificando.

Muitas vezes estar num ambulatório para problemas no sangue me colocava numa zona de conforto, apesar de todas as adversidades, para mim tudo era só uma fase e logo passaria desde que a anemia estivesse controlada. Dizer que se está com anemia a outros na sala de espera não tinha o mesmo peso de revelar uma condição de lúpica, era outro contexto, porque o lúpus é associado a algo devastador, tanto pelas complicações contadas pelos pacientes quanto pelo imaginário daqueles que pouco ou nada conhecem sobre a doença, criando um estigma em relação à mesma.

Minha intenção de não compartilhar informações no ambulatório e fora deste era regida por certa política de sigilo como estratégia e autoproteção. O gerenciamento do segredo sobre minha nova condição foi também necessário para manter o sentido de self e integridade pessoal (CHARMAZ, 1983).

Para Heidegger (1989), a relação com outros ou a intersubjetividade não acontece pelo mero lidar, mas por meio da preocupação com algo. Aqui a compreensão do mundo antecederia a interpretação e não como visto na forma usual, quando é preciso primeiro interpretar para então compreender. Nesse contexto, percebi que na minha interação com outros a preocupação com minha doença seria muito mais problemática. O caráter social da existência, o meu “ser-com” ou “estar-aí-com” vivenciava novas dinâmicas com as quais ainda não sabia manejar muito bem.

No começo da busca por cuidado muitas vezes me sentia perdida, como também certa angústia quando imaginava ter de encontrar aquelas pessoas em cadeiras de rodas, algumas delas bastante debilitadas, outras inchadas pela alta dosagem de medicamento, apesar de ter noção da necessidade de tratamento para o controle de minha doença eu me perguntava mil vezes se era realmente necessário ir até aquele ambulatório médico e passar por aquela situação aflitiva.

As consultas aconteciam às segundas-feiras, a cada trimestre, e nestas segundas eu ficava bastante mal humorada. Geralmente quando me sentava para esperar ser atendida (não era muito, porque meu horário já estava marcado, apenas solicitavam a chegada meia hora antes), os 30 minutos de espera eram suficientes para que eu fosse inserida em mundos diversos de lúpus para os quais eu não estava preparada, ouvia

relatos contados na maioria das vezes por outros pacientes, buscando uma espécie de conforto e apoio que eu não podia dar, pois ainda procurava força para mim mesma e este foi um grande desafio!

Para Gadamer (2006, p.156) é uma constituição básica do ser humano o fato de ele querer se sentir em casa junto a si, “para viver livre de qualquer angústia, afastado de toda ameaça, no confiado, no à-mão e no compreendido”. Ao falarmos da angústia dessa forma não estamos pensando nos fenômenos específicos da antropologia médica, mas numa constituição básica da vida, “a de se arremessar do estreito ao vasto” (GADAMER, 2006, p.156). Falar com outras pessoas na sala de espera me colocava numa posição que me remetia ao mundo de doença como centralidade, de uma doença que insistia em ficar, enquanto o que eu mais queria era sua partida.

Segundo Hyden (1997) uma doença aguda, na maioria dos casos, tem somente significância temporária em nossas vidas: isso constitui uma perturbação limitada e transitória; ela pode causar em nós um reexame de nossas vidas à luz de nossa própria fragilidade. Por outro lado, uma doença crônica usualmente muda a fundação profunda de nossas vidas, porque a doença cria novas e qualitativamente diferentes condições de vida.

A doença pode rever nossas ideias do que é variável e nós podemos ser forçados a mudar as premissas a partir das quais planejamos e avaliamos nossas vidas (CHARMAZ, 1983). Atividades nas quais previamente se poderia estar engajado se tornam mais difíceis e existe uma interrupção na definição do indivíduo referente ao passado, o presente e o futuro antecipado. A doença geralmente também envolve um evento crítico que pode ocasionar mudanças extensivas e penetrantes na vida da pessoa; a disrupção biográfica traz à tona questões sobre a identidade, incluindo descobrir quais os aspectos da identidade têm sido perdidos, os que permanecem e os aspectos adicionados, resultando numa redefinição de uma identidade.

Para Michael Bury (1982), qualquer doença constitui uma perturbação, uma descontinuidade da vida em curso. O aparecimento de doenças crônicas representa a perda da noção de continuidade de biografias, o que o autor denominou de “ruptura biográfica”. Bury (1988) distinguiu dois tipos de significado para tratar sobre doença crônica. Em primeiro lugar, o significado da doença reside nas suas consequências para

o indivíduo. As soluções e formas de relação entre os efeitos de sintomas e os esforços para minimizá-los passam a ser empreendidas.

Em segundo lugar, o significado da doença crônica pode ser visto em termos de sua significância. Para o autor, diferentes condições carregam consigo conotações e imagens diferentes. Estas diferenças podem ter uma profunda influência sobre a forma como os indivíduos consideram a si próprios e como pensam que os outros os veem. As condições crônicas variam muito em termos de seu significado dentro de segmentos da ordem cultural, significados que cercam a doença muitas vezes mudam, certas vezes criando como impacto certas categorias negativas nas interações sociais. Recorre-se ao uso do termo estilo, no contexto de doença crônica, referindo-se à maneira como as pessoas respondem ao seu contexto. Estas podem utilizar e incorporar certos repertórios culturais, relacionados aos processos de enfrentamento e ação estratégica, trazendo variações de foco em significados simbólicos, e práticas sociais dentro de diferentes segmentos da ordem cultural.

Um exemplo da maneira como as pessoas respondem ao seu contexto de doença foi observado ali na sala de espera. Para eles era importante desabafar, procurar ajuda de outros para lidarem com sua situação de doença crônica, por isso demandavam de mim um posicionamento e/ou fala, algumas vezes condizentes aos seus dilemas, numa tentativa de uniformidade ou certo padrão em relação à vivência da doença, o que para mim foi um grande problema, porque eu não me identificava com ninguém naquele momento. Geralmente quando os pacientes sentavam na sala de espera muito dificilmente falavam sobre as formas de superação da doença no dia a dia, aquele era o local onde se sentiam autorizados a falar de suas internações, medicamentos e efeitos, questões bem adversas, além de sinais totalmente diferentes dos vividos por mim. A cada escuta de casos, e ao ser inserida forçadamente em perspectivas tão diferentes, tentei me colocar afastada de tudo aquilo, uma das estratégias foi de fazer o exercício de não me preocupar muito com o outro, pensava apenas no meu caso, na minha vida, já difícil de lidar, para não ficar ainda mais angustiada.

Através do corpo vemos o mundo e agimos nele, mas ao fazê-lo, o corpo em grande parte “nos passa em silêncio”. Enquanto estamos conscientes do que vemos, escutamos, cheiramos, tocamos e provamos não estamos normalmente conscientes das bases corporais desses estados sensíveis. Com a doença, por exemplo, as estruturas tidas

como certas da vida cotidiana e o corpo de repente, se tornam profundamente problemáticos e incertos; nossos corpos já não falam uma “linguagem silenciosa” (MURPHY, 1987).

Ter uma determinada doença crônica pode implicar em uma série de características que o enquadra numa determinada condição de vida, é claro, mas não significa que essas mesmas características sejam vivenciadas da mesma maneira. A realidade singular na qual estão inseridos os indivíduos contribui para formas divergentes de continuidade ao curso de suas vidas, dependendo do contexto e situação em que estejam vivenciando a doença.

Neste novo contexto havia uma relação alterada com meu corpo, este já não mais “passava em silêncio”, fazendo com que eu não me sentisse mais a mesma, por isso eu teria de rever minhas demandas e prioridades naquele contexto, bem como minhas limitações. De certa forma, a angústia que sentia com as falas dos outros também decorria do fato de que estas me alertavam para essa mudança e a possibilidade de vicissitudes futuras, parecidas em maior ou menor grau com o dito por todos.

O meu corpo aparecia como uma dimensão fundamental de minha experiência, ao perceber esses problemas nos outros eu me percebia ao mesmo tempo. Essa é uma experiência significativa (SCHUTZ, 1979; GOOD, 1994) na medida em que ela representa certa interrupção no fluxo dos acontecimentos, requerendo um ato reflexivo de atenção para o corpo. Sendo assim, tanto a vida como as relações sociais adquirem novos significados, sendo interpretados e construídos em contextos específicos de ação.

A doença aparece como ameaça de vida e de bem estar. O lúpus era totalmente desconhecido para mim, no dia a dia os pacientes se calavam por falta de conhecimento e para fugir do preconceito de outros, de um perfil estereotipado, causando a estes constrangimentos e mais estresse. De certo modo o momento no ambulatório seria de expor tudo aquilo guardado no dia a dia, saindo um pouco do campo de invisibilidade cotidiano muitas vezes estratégico para diminuir os problemas na interação com outros. Importante, portanto, ressaltar que apesar de cada um ter uma vida diferenciada, sintomas diversos, para aqueles pacientes apenas as pessoas com lúpus podiam lhes entender, apenas a eles sentiam vontade para falar sobre os diversos problemas vividos no seu cotidiano de doente crônico, afinal de contas “só quem tem é que sabe”, isso era o mais relevante.

Gadamer (2006, p.97) considerou que aprender a aceitar a doença talvez seja “uma das grandes transformações no nosso mundo civilizado”. Provavelmente minha angústia ao lidar com os pacientes também estivesse relacionada à minha não aceitação de minha própria condição de doente. Restava-me então continuar seguindo meu tratamento, controlando minha doença e minhas angústias. Com minha experiência de tratamento também fui percebendo o surgimento de muitos outros desafios, como veremos mais adiante.

No documento Lúpus – “só quem tem é que sabe”. (páginas 63-70)