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Dilemas da vida cotidiana

No documento Lúpus – “só quem tem é que sabe”. (páginas 196-200)

CAPÍTULO 3.“SÓ QUEM TEM SABE O QUE SENTE”

3.2. Dilemas da vida cotidiana

Muitas foram as dificuldades citadas nas reuniões ligadas ao controle da doença. Por diversas vezes houve discussões relacionadas à falta de suporte necessário para tratamento, principalmente com especialistas capacitados, havendo questionamentos sobre como lidar e, se possível, superar tal problema. Elas também identificavam a falta de vagas para o atendimento no SUS no momento de maior dificuldade como um grande dilema, como já descrito, a maioria das pessoas do grupo com maior assiduidade (como também a grande maioria daquelas faziam parte da rotatividade) não tinha plano de saúde e também não havia um centro de atendimento de referência para pessoas com lúpus, sendo esta uma questão de necessidade bastante enfatizada, como veremos mais adiante.

Para suprir as demandas referentes às vagas no sistema público de saúde algumas sugeriram que médicos deveriam dar alta, por pelo menos 06 meses, àqueles pacientes em melhores condições, com a doença controlada, sem atendimento e maior

prioridade. Conforme suas falas, algumas pessoas eram obrigadas a pagar uma consulta em busca de ajuda, mas este tipo de acesso ao médico nem sempre era possível para todos, acarretando em um prolongamento da crise do lúpus, e este era um problema que incomodava o grupo.

Em uma das reuniões discutiram sobre o fato de apesar de todos terem direito ao atendimento no SUS, na maioria das vezes não conseguiam, por isso deveriam criar formas alternativas de atendimento para os mais necessitados. Sugeriam uma articulação entre o grupo, como também de cada um individualmente, falando com os reumatologistas em suas consultas e buscando sensibilizá-los para que atendessem em um preço mais popular e aos sábados, por exemplo. As consultas eram caras, girando em torno de 350, 400 ou até R$650 reais, citaram. Uma das participantes do grupo disse: “Vamos tentar, não custa nada tentar um reumatologista a baixo custo, é muito difícil uma consulta, e é cara uma consulta com esse pessoal”. Como uma ratificação das propostas feitas para o enfrentamento do problema sua colega complementou: “É um direito nosso ter o atendimento, mas se não tem...”

Jacira afirmou já ter conversado com um médico sobre a possibilidade dessa parceria, para ver se podiam ajudar aquelas pessoas sem nenhum atendimento especializado. Além da ideia de consulta com um preço mais acessível era necessária a busca e luta, nos órgãos competentes, por um aumento no número de vagas para internamentos. Caso a proposta de solicitação de ampliação de atendimento fosse questionada, elas deveriam se vestir com a camisa da LOBA e ir para o ministério público. Houve um reconhecimento de que tudo seria difícil, visto não haver um representante na secretaria de saúde do estado ou um médico que quisesse apoiar a causa dos pacientes com lúpus, só piorando a condição destes, enfatizaram.

Também relataram haver uma maior divulgação de um local de atendimento, a ADAB, na escola baiana de medicina, e tal ambulatório estaria muito cheio, não recebendo mais pessoas novas. Mas este problema de sobrecarga de pacientes não se restringia a tal ambulatório, acontecia de uma forma ampliada, por isso procurava-se por ajuda na LOBA para atendimento e/ou início de tratamento, “isso perde a paciência de qualquer ser humano”, enfatizou uma delas.

A discussão neste dia tornou-se bem acalorada, em alguns momentos conversavam todas ao mesmo tempo, exaltadas, não se sabendo quem falava ou quem

seria escutado. Com o pedido de calma por Jacira, para falarem uma de cada vez, expressando-se melhor, a mesma complementou que havia ainda o problema de muitas delas saírem do interior, nem sempre tendo vaga para internamento, esperando-se dias para conseguir vaga somente com a alta de algum paciente internado, e, enquanto isso, uma das saídas para amenizar o problema seria a ida à emergência para melhoria de sua situação, às vezes com pouco resultado, pois os médicos não estariam preparados para atender pessoas com lúpus.

Muitas disseram preferir ficar em casa e tomar remédios por conta própria, se virando como conseguiam, pois a ida a uma emergência poderia ser perigosa, com a possibilidade de contrair novas doenças. Jacira explanou sobre esse problema relacionado à busca de ajuda emergencial:

O posto médico ainda não tem condições de tratar pacientes com lúpus, a gente torce para que os médicos possam, quando chegar um paciente com lúpus, saber dar o atendimento adequado e não diga assim: ‘ah procure seu médico, ah procure seu ambulatório’. Não se consegue atendimento com especialista de lúpus e nem um atendimento adequado nos postos de saúde. Eles não têm conhecimento e por conta disso a pessoa pode morrer.

Foi também destacada a importância do cuidado de não ser introduzido algum medicamento errado na emergência, contribuindo piorar a situação de crise, e continuou: “Na emergência, infelizmente a gente não pode confiar de jeito nenhum, infelizmente essa patologia que nós temos nem todos os médicos conhecem”. O cuidado deveria ser tomado, inclusive, com o reumatologista de acompanhamento, para não aumentar os problemas, tendo um melhor controle: “é preciso procurar um reumatologista bom”, citou uma delas. Com esse comentário Rosana se manifestou, era sua primeira vez na LOBA e estava em busca de ajuda, pois já fazia acompanhamento com reumatologista há mais ou menos um ano, mas não se sentia contemplada com um atendimento necessário à melhoria de sua condição, como disse:

Eu estou com uma médica particular que está deixando a desejar, aí eu tô querendo procurar um acompanhamento melhor, né? Porque que ela mesmo não deixa nada claro pra mim, tudo que eu sei hoje do lúpus, eu não sabia nada, mas tudo que eu sei hoje do lúpus foi procurando na internet pelo lúpus, porque ela não me explica nada, graças a deus que eu não tive uma

complicação pior por causa dessa crise, porque eu não sei nem o que é essa crise, porque ela não explica, os cuidados, as gravidades, ela não me explica nada. Eu estou assim meio perdida, aí eu soube da associação, através de um panfletozinho que meu cunhado me deu, aí eu entrei em contato com ela [Jacira], aí ela me orientou, me convidou a vir aqui hoje pela primeira vez.

Outra participante do grupo passou a interagir com ela, fazendo perguntas sobre sua vida. Rosana respondeu ter tido um acidente vascular cerebral, sendo internada no hospital Roberto Santos, depois de um mês foi diagnosticada com o lúpus: “uma pessoa jovem, com 24 anos, que nunca teve problemas de pressão alta, não tinha nada, aí eu descobri, eu não sabia nem o que era lúpus”.

Com certa dificuldade para se expressar, visto ter um pouco de paralisia em um lado da face, ela foi bem enfática ao citar a maneira como o médico explicou sobre seu caso naquele momento de maior crise, lhe dando os detalhes, diferentemente da médica com quem ela vinha sendo acompanhada para controle da doença, “ele disse que o sangue engrossou demais, coagulou, impediu a oxigenação, aí perdi o movimento do lado esquerdo, fiquei com sequelas”. Naquele momento a moça com quem Rosana dialogava respondeu: “Até que enfim te explicaram alguma coisa”. A mesma continuou indagando-a sobre sua relação com a médica e ela respondeu: “minha filha, eu tenho até medo de perguntar, por que ela é uma grossa, eu tenho até medo”.

Jacira interrompeu o diálogo entre as duas e disse ser necessário um contato entre as pessoas do grupo, para que houvesse uma autoajuda nesses momentos difíceis. Ressaltou que apesar dos problemas encontrados com atendimento, falta de vaga ou despreparo do profissional de saúde, muitas coisas seriam mais fáceis do que em anos anteriores, quando o diagnóstico do lúpus era ainda mais complicado. Nos últimos anos, segundo ela, os exames tinham maiores possibilidades de perceber porque algo estava dando errado, havia ainda a chance de encaminhamento no próprio hospital onde se investigava o problema e, quando não se conseguia internamento, a LOBA também tinha uma participação na busca de acesso ao atendimento por um especialista em lúpus, para fazer o tratamento mais adequado. Mas, apesar do apoio dado pela LOBA para ter atendimento, seria necessário um centro de referência para pessoas com lúpus:

Não é uma desumanidade? A pessoa chegar na porta do hospital e não ter vaga?(...) porque centro de referência é aquele que tem médicos especializados, que pacientes tem bons internamentos, não é aquele lugar que o paciente volta. Irmã Dulce apesar de os pacientes não estarem voltando não é um centro de referência, o hospital Santa Isabel só tem 03 leitos pelo SUS. Estamos reivindicando pelo menos 03 leitos pelo SUS no [hospital] Espanhol. Não gosto de ir pra emergência, emergência não vai entender o que eu sinto, os médicos da emergência não é o meu médico! Nós só queremos o que temos direito, não é porque somos bonitinhas não. Quando eu falei de desumanidade é questão do médico, de seres humanos, um médico que faz o seu juramento ter coragem de um pai chegar com sua filha sofrendo ali e ele dizer ‘eu não vou poder fazer nada’, porque... Vá procurar fora, vá procurar em outro lugar, porque o governo não vai dar jeito.

Neste momento todas olhavam muito atentas ao que estava sendo dito, não houve intervenções, e Jacira continuou dizendo o quanto era importante ter o apoio dos médicos na busca pela vida normal, difundida por estes:

É preciso ter um médico que se engaje pela causa dos pacientes. Eles têm a ideia de que o portador de lúpus tem condições de ter uma vida normal, tem. Eu vivo uma vida normal, ela vive uma vida normal. Os médicos tem uma mania de dizer que os pacientes de lúpus tem uma vida normal, tem nada que dizer que os pacientes tem uma vida normal. Vive bem, quem tem uma vida normal é quem tem dinheiro, quem tem um bom emprego, quem tem empregada. Todas nós vivemos uma vida normal, mas que vida normal é essa?

Ao ouvir sua pergunta, uma das participantes do grupo rapidamente respondeu: “Cheia de limitações”. Todas riram com esse comentário e balançaram a cabeça em sinal afirmativo. E Jacira continuou:

Então, quando a gente fala de limitação é que existem pessoas que tem condições de trabalhar, existem, mas a maioria não tem condição, porque o que a gente tá falando são pessoas que trabalham em casas domésticas, serviço geral, pessoas que trabalham em trabalho informal, quem trabalha em cozinha, então são essas pessoas, nenhum empregador iria aceitar ter alguém que todo dia está com atestado, eu vou pagar a ela pra todo dia tá com atestado aqui? Ah tem lúpus, eu não quero você aqui que todo dia tem médico, todo dia tem que fazer exame, todo dia tem que fazer isso, tem que fazer aquilo, é cansativo, é chato, olhe ela aqui, a cabeça cheia de mancha, quem é que vai olhar pra ela e dar emprego a ela?

No documento Lúpus – “só quem tem é que sabe”. (páginas 196-200)