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E, então, me descobri assim Lúpica!

No documento Lúpus – “só quem tem é que sabe”. (páginas 60-63)

CAPÍTULO 1. UMA ABORDAGEM AUTOETNOGRÁFICA SOBRE LÚPUS

1.2. Corpo, experiência e doença crônica como expressão de mim mesma – o início (?)

1.2.1. E, então, me descobri assim Lúpica!

No momento de explicação sobre a anemia hemolítica, de certa maneira eu foquei na palavra “anemia”, compreensível por todos de uma forma geral e assim não tive nenhum tipo de conflito interno relacionado à doença ou muitos questionamentos sobre as minhas perspectivas futuras, na minha cabeça seria parecido com uma anemia falciforme, com o devido tratamento e controle eu voltaria a viver bem. Ao saber do lúpus, num primeiro momento, continuei a focar na palavra “anemia” e em minha cabeça nada mudaria, a hematologista apenas teria definido o motivo da anemia. Ou seja, no meu modo de encarar a doença a única diferença seria a denominação, mudaria apenas o nome para o mesmo problema. Ledo engano!

Mas a partir de uma experiência perceptiva sobre a doença, encontrando a origem do objeto no coração mesmo da experiência (MERLEAU-PONTY, 1999), fui aos poucos lidando com as mudanças na minha vida e percebendo que não se tratava apenas de uma mudança de terminologia, inclusive notando que a condição de ter lúpus era diferente da de ter anemia hemolítica tanto para mim quanto para os especialistas, por exemplo. O lúpus, dentre muitos problemas, era uma doença para a qual os próprios especialistas não conseguiam explicação para suas causas, gerando muitas incertezas, pela grande incompreensão dada a falta de visibilidade na sociedade e de informações mínimas encontradas no senso comum.

Existiam muitas questões não claras para mim. Afinal de contas, em primeiro lugar, o que era o lúpus? Foi minha grande pergunta. Nunca havia ouvido falar daquela doença, em nenhum lugar. A médica explicou ser o lúpus também uma doença autoimune, assim como a anemia, onde os anticorpos não me ajudavam, mas me atacavam. Segundo a mesma, ainda não havia uma explicação definida para o surgimento da doença, poderia ser por causas diversas, inclusive hereditárias, mas não havia nada claro, nada definido. Tal doença era tratada com reumatologista com especialidade em lúpus, ao qual eu deveria procurar para dar continuidade a meu tratamento, seria este, inclusive, o responsável pelo acompanhamento de minha anemia.

A percepção é atividade de um corpo situado, a visão de mundo se dá a partir de um ponto de vista (nosso corpo e nossa situação) sobre este, nossa experiência da coisa é dada em aspectos perspectivos (SOMBRA, 2006). Neste percurso inicial de descoberta sobre a doença, fui notando com o tempo que a compreensão de ser lúpica estaria associada ao entendimento da doença definido pelos médicos como também a partir de minhas próprias perspectivas.

A minha médica definia o lúpus como uma doença autoimune que necessitaria de tratamento para o resto da vida, uma doença grave, devendo-se fazer o acompanhamento de forma correta. Por outro lado, ao ouvir tais indicações procurei pesquisar um pouco sobre essa doença desconhecida, para ter minha opinião, encontrando informações na internet que me abalaram muito, criando um grande sentimento de angústia, me colocando em diálogo com a noção de morte eminente ou progressão degenerativa da doença, mexendo com minhas questões existenciais.

Sentia, enquanto lúpica, bastante temor a respeito de meu futuro, de minha vida se tornando totalmente incerta, na minha compreensão, esta era um tipo de doença com a qual não gostaria de conviver, mas que as circunstâncias me obrigariam a me adaptar. Havia ainda uma grande raiva provocada pela minha impotência na situação. Eu chorava muito, sem mesmo saber explicar o porquê de tanto choro e sentimento de insegurança. Minha mãe suportava tudo, sempre calada, muitas vezes suportou meu mau humor, minhas respostas agressivas, e um dia ela disse: “pare de se preocupar com relação ao seu futuro, porque não sabemos o que será de nosso futuro, o importante é viver o agora”. Naquela época, a minha certeza era de que ela estaria sempre comigo me dando forças, e eu deixava a angústia tomar conta de mim.

Ela acompanhou todo esse processo inicial de vivência de lúpus, durando aproximadamente 06 anos, entre as dores mais constantes (quando estava com 19 anos de idade) e o surgimento da anemia hemolítica (tratado no HEMOBA por 03 anos). Quando minha mãe fez essa consideração eu tinha pouco tempo de diagnóstico de lúpus, mas já havia vivido situações difíceis e saber sobre essa doença me afligia ainda mais, tirava meu sono, minha alegria de viver e projeção positiva de futuro. Após três anos, minha mãe faleceu de câncer e suas palavras seriam mais bem compreendidas, mostrando a mim que no nosso presente existem seus próprios problemas e intempéries nos quais devemos saber passar.

Antes disso chorava muito e às vezes sem mesmo explicar o porquê, sentindo muito medo. Na verdade o homem teme “por” algo determinado porque é ele o afetado e o maior interessado. Para Heidegger (1989) existem três elementos existenciais fundamentais que compõem o medo. Em primeiro lugar, o “diante de que” tememos

algo, assumindo o caráter da ameaça. Há um temor daquilo que nos ameaça. Segundo, o temer abre para nós um mundo. O terceiro elemento é o “por que” nós tememos, referindo-se ao nosso próprio estar-aí. O temor é sempre primeiramente um fenômeno mais privado, embora possamos temer por outra pessoa, neste sentido o temer seria uma forma de estar com os outros, quando tememos por alguém. Mas o temor pode ser o que é assustador; o horror e a decepção.

Desapontamento seria uma palavra importante para definir minha condição de lúpica neste período, um sentimento relacionado à minha sensação de fracasso enquanto ser humano. Hoje em dia, meus medos ainda permanecem, principalmente porque agora sou mãe, tenho um ser ainda dependente de mim, o peso de encarar minha condição tem novo nuance, tendo de me adaptar as diversas funções de mãe e sendo necessário um maior cuidado com meu estado de saúde e busca de controle da doença, para viver de forma mais agradável.

Mas os modos de enfrentamento no decorrer da vida me ensinaram a me fortalecer e enfrentar as dificuldades, me utilizando de algumas receitas no viver com a doença. O mundo, para mim, foi sendo construído numa relação de modo imediato, trabalhando e operando com instrumentos no dia a dia (HEIDEGGER, 1989), a percepção das coisas que foram acontecendo ao meu redor me colocou também como extensão desse mundo de doença, onde o aspecto prático obteve relevância central.

O milagre da vida consciente está ligado ao ter de aceitar a morte. Muitos de nós consideramos a morte como um inimigo, e buscamos fazer tudo o que for possível para evitar a morte. O medo da morte, um fenômeno descrito por psicólogos ou psiquiatras, é bem relevante por quem vivencia uma doença crônica grave, comparada por muitos como um prelúdio de morte. Por diversos momentos tive um sentimento de terror em relação a minha possibilidade de morte, o tratamento teve grande importância nesse processo, na minha busca de uma melhor condição de vida e adiamento de minha morte.

No documento Lúpus – “só quem tem é que sabe”. (páginas 60-63)