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Histórias e vivências

No documento Lúpus – “só quem tem é que sabe”. (páginas 31-36)

Podemos dizer que, de uma maneira bastante peculiar, a história do lúpus foi sendo construída com lacunas. Muitas questões têm sido esclarecidas, e ao mesmo tempo têm aparecido diversas dificuldades de entendimento sobre a doença. Por exemplo, as dificuldades daqueles que convivem com o lúpus são pouco conhecidas, aumentando o grau de invisibilidade dos problemas, como também da doença.

Pode-se dizer que a chegada da doença muitas vezes implica no surgimento de limitações que impactam nos projetos de vida das pessoas, havendo a necessidade de serem delineados novos projetos, a partir do que é permitido. De uma maneira geral, as pessoas com lúpus encaram várias questões fundamentais de existência, morais, psicológicas, físicas, estando, inclusive, inseridas num contexto de imprevisibilidade e variabilidade de evolução do quadro da doença.

Este trabalho buscou tratar de questões da experiência cotidiana das pessoas com lúpus, destacando as suas condições de vida e formas de lidar com os problemas. Levando em consideração a questão de que a doença é pouco conhecida e de difícil manejo e diagnóstico, além da ideia de muitos pacientes de que só quem tem a doença pode ter uma melhor dimensão sobre ela, ou seja, “só quem tem é que sabe”, este trabalho visou tornar mais visíveis alguns aspectos dessa experiência. Para isso, inicia com um relato autoetnográfico sobre minha convivência com a doença, desde o seu aparecimento.

Além disso, a partir da etnografia de encontros da LOBA – Lúpicos Organizados da Bahia – exploram-se alguns aspectos relativos à convivência entre pessoas que partilham de uma mesma condição, mostrando como elas dividem suas experiências e tentam encontrar estratégias para lidar com a doença e construir um discurso unificado em torno dela.

Tendo ainda como foco os participantes da LOBA, o trabalho explora as relações com outros e as tentativas de sensibilizá-los para as especificidades do lúpus. Esses outros indivíduos podem ser desde os profissionais de saúde (que conhecem a doença a partir do ponto de vista científico e da clínica), até a população em geral (que

em tese desconhece o que é o lúpus, mas espera-se que possa ser tocada pela difusão de informações e/ou relatos sobre a doença).

Foram levados em conta os impactos da doença na vida cotidiana e estratégias para superação de dificuldades não apenas em momentos de crise, mas ao longo do seguimento de um curso rotineiro de vida.

As decisões tomadas a partir de uma elaboração de sentidos sobre os aspectos envolvidos, como também aquilo que sentiam nesse processo de enfrentamento também foram considerados. São muitos os dilemas encontrados a cada dia, com suas crises e problemas decorrentes do lúpus, como também diversas perdas ocorridas. Neste sentido, o trabalho também destacou as perdas e/ou faltas e limitações e/ou restrições elencadas nas experiências cotidianas.

Como disse anteriormente, foi feito neste trabalho uma descrição de minhas experiências como doente crônica, destacando os mesmos objetivos usados no eixo central. Muitas vezes percebi (e ainda percebo) como o lúpus podia ser imperceptível para outros, quando em diversos momentos sinalizaram não notar a doença em mim, quando não percebiam nenhum sinal mais visível e/ou incapacitante.

Se não havia (há) sinais claros que me definissem (definam) como uma doente, a propensão para a dúvida se manifestava (manifesta) em olhares e palavras questionadores com muita frequência. A invisibilidade do lúpus era (ainda é) notada na curiosidade de outros em saber o que eu sentia (sinto) ou tinha (tenho), apesar de em alguns momentos compreenderem pouco ou nada sobre o que eu dizia (digo).

Por isso, falar sobre mim foi uma necessidade de explicar para as pessoas sobre “aquilo que não parece”, pois na maioria das vezes algumas pessoas me reconheciam (reconhecem) como alguém que “não parece ter lúpus”. Na construção desse trabalho eu fui me modificando, pois a descrição de experiências de outros que também tinham lúpus (suas situações, dificuldades e formas de lidar com isso), me fez refletir sobre mim e meus problemas, apesar de saber que seus caminhos eram diferentes.

Em seus caminhos diferenciados elas tentaram realinhar-se ao curso normal, mantendo o equilíbrio necessário para dar prosseguimento às suas atividades. O trabalho também visou mostrar como se dava o relacionamento entre os “de dentro”, mas também com os “de fora”, e a maneira como elaboraram novas formas de entendimento

sobre sua doença e tratamento na interação social; além dos esforços para tornar sua questão pública.

Seja qual for o objeto de estudo, escolher o local ou situação a pesquisar vai depender de considerações teóricas, sociais e práticas. O local escolhido é um contexto onde se produz um conjunto de fenômenos, podendo conter vários casos de interesse para o pesquisador, os quais devem ser igualmente objeto de uma seleção (POUPART et al, 2008).

Nas reuniões mensais do grupo procurei observar as razões formais ou oficiais de sua presença no local, e também as questões contadas em conversas informais. Na narração de situações de vida e reconstrução de suas histórias levou-se em consideração o lugar do informante em sua interação com o grupo, além de sua espontaneidade, sua disponibilidade para dar informações e tratar de aspectos variados.

Pude descrever as ações contadas não ignorando que seus discursos, por serem eminentemente situacionais, encontravam-se impregnados de interesses, hesitações, incongruências, estratégias e conflitos. Nos enunciados dos informantes se misturaram explicações diversas e tipos diferentes de conhecimentos (de eventos e experiências prévias), produzidos pela negociação de significados com outras pessoas (ALVES; SOUZA, 1999).

Foi observada a frequência de certos assuntos e demandas para a seleção das temáticas a serem trabalhadas, mas também tinha em mente que acontecimentos atípicos poderiam igualmente enriquecer a compreensão sobre o meio pesquisado (POUPART et.al., 2008). Entretanto, procurei me deter nos fenômenos mais recorrentes e a importância dada pelo grupo.

Foi importante notar que as pessoas que participaram desses encontros, num ambiente compartilhado de experiências, possuíam seu próprio ambiente subjetivo, seu mundo privado, dado de forma original. Ou seja, percebiam o objeto ao mesmo tempo, mas com tonalidades que dependiam de seu “aqui particular” (SCHUTZ, 2012, p.181), com diferenciadas formas de ação. O LES em si já é uma doença permeada por diversas explicações e sintomas, demandando formas diferentes de gestão e enfrentamento.

O trabalho está subdividido em três capítulos e considerações finais. O capítulo 1 intitulado “Uma abordagem autoetnográfica sobre lúpus” trata de aspectos de minha

própria vivência com a doença, envolvendo questões menos explícitas ligadas aos meus sentimentos, dores, dificuldades e limitações. Aborda ainda sobre minha relação com outros e compreensão dos mesmos sobre minha doença, bem como algumas das dificuldades encontradas no processo terapêutico. O relato de minha vivência não se restringiu apenas a esse capítulo, como já disse anteriormente, ver as histórias de outras mulheres me fez refletir sobre minhas experiências e isso aparece claramente nos outros capítulos.

O capítulo 2 “Convivência entre iguais como estratégia de enfrentamento do lúpus”, faz um detalhamento sobre a LOBA, destacando a troca de informações entre o grupo. Aborda sobre um tema relevante no universo feminino, a gravidez, como também suas dificuldades e modos de enfrentamento da situação. O capítulo também demonstra como aceitam a si mediante suas limitações e mudanças corporais, além da busca de uma autoafirmação para lidar com o olhar dos outros.

A interação com outros indivíduos foi bastante destacada nesse processo de enfrentamento de lúpus. Por muitas vezes foi sinalizado que as outras pessoas não conseguiam compreender o que realmente sentia uma pessoa com lúpus, havendo uma frase bastante marcante usada pelo grupo: “só quem tem sabe o que sente”, esta frase também intitula o capítulo 3 e foi escolhida para tentar entender e descrever o que elas querem passar para os outros. De uma maneira bastante clara, pude observar que as mulheres da LOBA queriam informar sobre sua doença à população, mas elas queriam ainda mais – ter direitos e serem reconhecidas diante da sociedade.

O capítulo descreve as caminhadas promovidas pela LOBA, ocorridas em 2013 e 2014, destacando-se as formas de interação entre si, propostas e discussões para superação da invisibilidade, além de busca de direitos à saúde, qualidade de vida e reconhecimento social.

Esses direitos e reconhecimento também foram buscados na sua relação com os médicos, que conheciam a doença, mas não conseguiam entender corretamente o que elas tinham e viviam. Essa dissonância entre médicos e pacientes sobre a vivência da doença foi descrita em diversas reuniões, algumas pessoas relataram que os médicos as comparavam a uma pessoa com uma vida normal, apesar de suas perdas e limitações, mas para elas “só quem tem sabe o que sente”.

Por fim, é necessário fazer as últimas considerações, pois todo trabalho acadêmico nos exige finalização. Foi ainda importante reconhecer a grande invisibilidade e relação de ambiguidade do lúpus, em grande medida oriundos da compreensão precária sobre a doença. No âmbito geral, o trabalho tentou estabelecer um caminho alternativo de conhecimento sobre o lúpus, demonstrando na prática como era viver com a doença.

Considero que a pergunta sobre o que seja a doença ainda continua em aberto, podendo ser desenvolvidas novas discussões. Para as mulheres da LOBA “só quem tem sabe o que sente”, pois as pessoas não conseguem entender de fato sua doença e mundo de vida cotidiana.

No grupo da LOBA havia uma necessidade de angariar conhecimento sobre o lúpus para melhor lidar com ele, ao mesmo tempo em que foram pontuadas as fontes de apoio e de sofrimento e/ou entraves que afetaram a gestão de suas vidas. Neste contexto, tanto para mim como para essas mulheres surgiu uma série de novos esquemas no cotidiano para lidar com a doença; construídos na relação com os “de dentro” e os “de fora”, com sentidos diferenciados para o enfrentamento de problemas.

CAPÍTULO 1: UMA ABORDAGEM AUTOETNOGRÁFICA SOBRE

No documento Lúpus – “só quem tem é que sabe”. (páginas 31-36)