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2.2 Investimentos posicionais

2.2.4 Código de linguagem

Vimos nas seções anteriores que, tanto o gênero do discurso, quanto a cenografia e o

ethos, são mobilizados pelo discurso na sua própria atividade de legitimação e ao mesmo

tempo na constituição de um posicionamento. Mas nesse processo onde cada sujeito constrói o espaço que vai legitimar a sua fala, falta ainda um último elemento: o código de linguagem.

Assim, na construção do enunciado, o sujeito do discurso investe também em um código de linguagem, o último investimento posicional ao qual vou me referir neste capítulo. Esse tipo de investimento refere-se em geral ao uso que se faz da língua, considerando que existem modos específicos de se investir (n)a língua a partir de uma constrição linguística, ligada a uma constrição ideológica. A noção foi introduzida por Maingueneau em O contexto da obra

literária (1993) para “definir a maneira como um posicionamento mobiliza a linguagem –

apreendida na pluralidade das línguas e de seus registros – em função do universo de sentido que procura impor” (MAINGUENEAU, in: MAINGUENEAU; CHARAUDEAU, 2004, p. 97).

Ao falar sobre a produção de obras literárias (o que vale também para a produção de obras verbomusicais), Maingueneau afirma que “não existe, por um lado, conteúdos e, por outro, uma língua neutra que permitiria veiculá-los, mas a maneira como a obra gere a língua

faz parte do sentido dessa obra” (2001 [1993], p. 104, com destaques do autor). Disso decorre que o escritor (ou o compositor de uma canção) não é confrontado com a língua, enquanto sistema homogêneo, mas com uma interação de diversas línguas e de seus usos, fenômeno que pode ser classificado com a noção interlíngua, que para o teórico equivale às “relações, numa determinada conjuntura, entre as variedades da mesma língua, mas também entre essa língua e as outras passadas ou contemporâneas” (op. cit.). O código linguageiro investido por um autor é, portanto, o resultado dessa determinação no espaço da interlíngua, sujeita ao mesmo tempo aos fatores temporais e espaciais intervenientes na língua, bem como ao estado do próprio campo discursivo e da posição ocupada pelo autor nesse campo. Por esse raciocínio, os escritores não escrevem exatamente em português ou em francês, mas na instabilidade fronteiriça dos espaços de linguagem. A noção de código é utilizada aqui com um duplo valor, tanto associada a um sistema de regras e de signos que possibilitam uma comunicação entre as pessoas, quanto a um conjunto de prescrições.

Como vimos na dissertação (CARLOS, 2007a, p. 47), dependendo do tipo de escolha feita pelo escritor/compositor no que se refere ao emprego de uma ou de diversas línguas, assim como das variedades de uma mesma língua, o autor vai se posicionar de uma ou de outra forma. Quanto mais singular for a maneira de um autor gerir a interlíngua, mais singular será o posicionamento instaurado por ele. Esse trabalho de triagem da linguagem resultará em consequência em alguns efeitos retórico-argumentativos, dentre eles:

a) A valorização ideológica de um determinado idioma;

c) O questionamento e a contestação da hegemonia exercida por alguma língua, dentre outros.

Tomando emprestado o conceito de plurilinguismo postulado por Bakhtin – que o emprega nas distinções estilísticas feitas entre o discurso na poesia e o discurso no romance –, Maingueneau (2001 [1993], p. 104) observa que a interlíngua pode ser trabalhada pelo analista em dois aspectos: o plurilinguismo externo e o plurilinguismo interno. Mas antes de tudo é preciso enfatizar que o uso dado pelo teórico francês ao conceito do filósofo russo é bem mais restrito do que o empregado na Análise Dialógica do Discurso. Assim, o

plurilinguismo externo refere-se à “relação das obras com as ‘outras’ línguas”, isto é, abrange o diálogo linguístico entre uma determinada obra e outros idiomas diferentes do empregado nessa obra. O plurilinguismo interno, por outro lado, classificado especificamente de pluriglossia interna, abarca a relação entre uma obra e “a diversidade de uma mesma língua”. Para exemplificar essa pluralidade de formas, Maingueneau lista os seguintes registros (op. cit., p. 108):

a) De ordem geográfica (dialetos, regionalismos...);

b) Ligada a uma estratificação social (popular, aristocrática...); c) Ligada a situações de comunicação (médica, jurídica...); d) Ligadas a níveis de língua (familiar, oratório...).

Sobre essa negociação entre o escritor e a interlíngua, Maingueneau salienta que existe ainda uma “ilusão do neutro”, que define o fenômeno no qual se acredita que grande parte dos escritores se satisfaria em utilizar a língua, sem considerar suas fronteiras. Porém, o autor reforça que essa ilusão esquece que a relação entre a literatura e os usos que ela faz da língua não é natural. Portanto, mesmo quando uma obra aparenta adotar uma língua mais “comum”, ainda assim haverá um embate com o Outro da linguagem, que se ligará sempre à constituição de um posicionamento específico. Por estar constitutivamente atrelada a um posicionamento e pela capacidade do autor de dar acabamento ao seu texto, é que “o uso da língua que a obra implica se mostra como a [melhor] maneira em que é necessário enunciar, pois é a única conforme ao universo que ela instaura” (op. cit., p. 104, com destaque do autor).

No que concerne à análise propriamente dita do código de linguagem das canções do

a) Com o privilégio dado a qualquer uma das modalidades: o plurilinguismo externo e o plurilinguismo interno;

b) Com a combinação dessas modalidades.

Como considero o processo de enunciação numa totalidade comandada por um mesmo

dispositivo de comunicação, o código de linguagem, que em uma concepção restrita poderia

ser associado ao “estilo linguístico”, na verdade é apenas um dos constituintes – junto com o gênero, a cenografia e o ethos – que constroem a identidade de um modo de dizer singular, isto é, de um posicionamento individual.

No que diz respeito a Belchior, acredito que, pelo acabamento que dá ao código de linguagem, é como se o compositor dissesse ao seu auditório: “Eu não uso ‘a linguagem’ normal da língua”. Lembrando que a concepção de língua43 empregada na tese nesse caso é a mesma de Bakhtin (1997b [1920-1930], p. 169), para quem “o estilo artístico [o posicionamento individual, como compreendo] não trabalha com palavras e sim com valores do mundo e da vida”, e é unicamente por meio da língua que se permite acessar a visão do mundo da obra.

Refiro-me aqui ao conceito de acabamento, postulado por Bakhtin (op. cit.), para o qual “o estilo [o posicionamento individual] é definido como o conjunto dos procedimentos de formação e de acabamento do homem e do seu mundo”. Nessa concepção, a noção de

investimento posicional, posição axiológica e acabamento andam no mesmo caminho, pois as

três implicam a atitude intencional do sujeito que produz uma obra. É pelo investimento, pela axiologia e pelo acabamento que é possível “fechar” um sentido de uma produção a partir de um sujeito singular e direcionada à responsividade de outro sujeito (individual ou coletivo) que vai recepcionar a obra. Em resumo, segundo defendo na tese, a identidade discursiva do cancionista (ou seu posicionamento) está diretamente ligada à ideia de investimento, que diz respeito às escolhas feitas pelo sujeito do discurso no processo de produção de uma obra. No âmbito dos discursos artísticos, o investimento está relacionado a uma movimentação discursiva e a uma intencionalidade estética. No caso específico do discurso verbomusical, “o [que se pode intitular de] sentido musical é ‘intencional’”, pois existe apenas enquanto é apreendido pelo ouvinte (DAHLHAUS, 1991, p. 25).

43 Além dessa concepção, adoto também a visão de Perelman para entender a língua como instrumento de ação

Sem entrar de forma profunda na teoria da intencionalidade, elaborada por Searle, distinguirei, como o autor, a “intenção” da “intencionalidade”44. À primeira usarei como equivalente à toda atividade que se pretende realizar, um propósito, um plano, uma ideia. Já a intencionalidade adotarei como dizendo respeito a um estado de conhecimento prévio do

sujeito com relação a qualquer atividade que esse planeja (ou tem a intenção de) desenvolver. Considerar por exemplo que o gesto retórico da singularidade é uma noção

intencional implica que esse gesto possui a marca de uma atividade mental consciente (já conhecida) do sujeito que adota o gesto.

Bakhtin (1997b, p. 299-305) adota o termo intuito discursivo ou o querer-dizer do

locutor, afirmando que é essa instância que determina a totalidade do enunciado, tanto aquilo que esse terá de amplo, como aquilo que terá de fronteiriço. É a partir dela que se poderia, então, medir o acabamento de um enunciado. Tomando intuito discursivo como sinônimo de

investimento posicional, posso ampliar a reflexão de Bakhtin relativa ao gênero de discurso para os elementos cenografia, ethos e código de linguagem, cujo resultado seria:

O querer-dizer [o investimento posicional] do locutor se realiza acima de tudo na escolha de um gênero do discurso [, de uma cenografia, de um ethos e de um código de linguagem]. Essa escolha [ampla] é determinada em função da especificidade de uma dada esfera da comunicação verbal, das necessidades de uma temática (do objeto do sentido), do conjunto constituído dos parceiros etc. Depois disso, o intuito discursivo [o investimento posicional] do locutor, sem que este renuncie à sua individualidade e à sua subjetividade, adapta-se e ajusta-se ao gênero escolhido [à cenografia, ao ethos e ao código de linguagem], compõe-se e desenvolve-se na forma do gênero, [cenografia, ethos e código de linguagem] determinado[s]. (BAKHTIN, 1997b, p. 301, com destaques do autor)

Se partimos do pressuposto de que toda fala, em todos os campos de atividade, é sempre um trabalho sobre o interdiscurso, logo o que se formará como identidade na construção dos mais diversos discursos será o resultado das escolhas feitas pelo sujeito do discurso. No caso específico da identidade do artista Belchior, defendo que o regime polêmico caracteriza fortemente a obra desse cancionista, estando relacionado, assim, à instituição de sua própria identidade. Soma-se a isso o fato de que geralmente um sujeito que defende determinada posição, seja de forma polêmica ou não, deve sustentar com todas as estratégias de que dispuser sua identificação mesma com essa posição. Desse modo, a sustentação de sua

44Para Searle (2002), a Intencionalidade, com “I” maiúsculo, corresponde à propriedade de muitos estados e eventos mentais (crenças, medos, esperanças e desejos) pela qual eles são dirigidos para ou acerca de objetos e estados de coisas no mundo. Já a intenção (tencionar fazer algo), com “i” minúsculo, é apenas uma das formas de Intencionalidade, juntamente com as crenças, os medos, as esperanças, os desejos e muitas outras.

opinião e de seu ponto de vista torna-se ao mesmo tempo a sustentação de sua própria identidade. Nesse processo, numa comunidade e num campo discursivo caracterizado pela pluralidade, como o é o do discurso verbomusical, a argumentação surge necessariamente como um modo de defesa de uma posição em meio a tantas outras existentes na sociedade da música brasileira.

Fazendo um paralelo entre a classificação de Authier-Revuz sobre a heterogeneidade mostrada marcada e não marcada e os investimentos posicionais, meu interesse é saber também se, quando Belchior adota investimentos já utilizados por outros cancionistas, o orador marca esse diálogo polêmico com o Outro ou não.

Sabe-se que o posicionamento (identidade) de um artista constitui-se entre o individual e o social ou, como apontou Volochínov (1926), origina-se da imbricação entre “uma pessoa mais seu grupo social”. No entanto, acredito que se possa falar em um posicionamento que investe no fator individual, na medida em que, em alguns campos discursivos, o ato de identificação e da apresentação da imagem de si está diretamente ligado a uma singularidade pessoal. Como acontece no caso do discurso verbomusical (e no dos discursos artísticos de modo geral), onde a chamada canção popular “de qualidade” constitui-se num dos gêneros mais aptos à manifestação do posicionamento individual do autor (compositor). Além das coerções próprias dos campos (como o da música), todo sujeito coletivo constrói uma visão de mundo que lhe é particular. Nesse sentido, o posicionamento pode referir-se à expressão da singularidade de um autor e, por isso, classifico-o de posicionamento individual. Baseada nisso, insisto ainda na importância do conceito investimento, associado à ideia de posicionamento. Vejamos então minha proposta de ampliação da categoria investimento, gerando o investimento em um posicionamento individual.

De acordo com o que foi mostrado anteriormente, a noção de investimento, inicialmente proposta por Maingueneau, foi ampliada nas pesquisas de Nelson Costa, que aplica o investimento não somente ao gênero, mas também à cenografia, ao ethos e ao

código de linguagem. No âmbito da pesquisa de mestrado (CARLOS, 2007), considerei a

categoria de investimento tal como foi postulada por Maingueneau, bem como o desenvolvimento que Costa deu a ela. No entanto, alarguei ainda mais essa noção para a ideia de que existem investimentos interdiscursivos, os quais abrangeriam as relações intertextuais, interdiscursivas e metadiscursivas, que se constituíram objeto daquela análise.

Na presente pesquisa de doutorado, amplio ainda mais essa noção de investimento. Segundo a tese que defendo aqui, posicionar-se implicaria principalmente em um

discurso), o qual abrangeria uma série de outros investimentos: além do genérico, do cenográfico, do ético e do linguístico, há o investimento interdiscursivo, como mostrei na dissertação. Para melhor visualização do percurso pelo qual passou a categoria investimento, segundo o olhar de diferentes pesquisadores, elaborei abaixo alguns quadros ilustrativos.

Um primeiro quadro construído com base na junção das pesquisas de Maingueneau e Costa pode ser assim representado:

Quadro 1 - Evolução do conceito investimento

Investimento

Genérico Cenográfico Ético

Linguístico

A proposta do mestrado foi a de agrupar sob a noção de investimentos

interdiscursivos as relações ocorridas entre textos, entre discursos e entre o sujeito e seu

discurso. O quadro a seguir mostra assim a contribuição que pretendi dar para os trabalhos mencionados acima.

Quadro 1.1 - Evolução do conceito investimento

Investimentos interdiscursivos

Relações intertextuais Relações interdiscursivas Relações metadiscursivas

Com o objetivo da dissertação, o de ampliar a noção de investimento, o quadro final proposto nesse trabalho foi:

Quadro 1.2 - Evolução do conceito investimento

Investimento

Genérico Cenográfico Ético

Interdiscursivo

Como vimos acima, o investimento não está relacionado ao emprego de estratégias para a chegada a um objetivo. Na medida em que um sujeito investe em gêneros, cenografias,

ethé, códigos de linguagem, na intertextualidade, na interdiscursividade e na

metadiscursividade, ele irá construir em consequência das escolhas feitas a sua própria identidade num espaço discursivo já constituído por outros posicionamentos. Assim, ele está investindo em seu posicionamento individual. Por fim, com uma segunda ampliação da categoria de investimento empreendida por mim, respeitando os trabalhos de Maingueneau e Costa, o quadro atual a ser considerado na tese é o que se segue:

Quadro 1.3 - Proposta atual para o conceito investimento

Investimento

Genérico

= Investimento identitário retórico- discursivo  Posicionamento individual Cenográfico Ético Linguístico Interdiscursivo

Fonte: Quadros 1 a 1.3 elaborados pela pesquisadora

3 A argumentação na música brasileira: a canção entre o orador e o auditório

Dizer que Belchior investe em uma identidade polêmica – hipótese principal do trabalho –, o que classifiquei de investimento posicional polêmico, requer necessariamente que se olhe para o discurso desse cancionista em sua orientação argumentativa. Na delimitação do que está sendo entendido como argumentação nesta pesquisa, apoio-me em Perelman e Olbrechts-Tyteca, Meyer, Plantin, Amossy e Mosca, como já explicitado no capítulo 1. Para investigar especificamente os argumentos utilizados por Belchior em seu investimento polêmico, fundamento-me no estudo das técnicas argumentativas, empreendido por Perelman e Olbrechts-Tyteca, como veremos no subcapítulo 3.4. Desses autores, também me baseio nas noções de persuasão e convencimento, acordo e adesão, apresentadas ao longo das seções deste capítulo, assim como nas de orador e auditório, abordadas especialmente dos subcapítulos 3.1 ao 3.3.

No sentido amplo da noção argumentação, ou seja, de que todo processo comunicativo abrange uma ideia a defender, a argumentação estaria em todos os lugares, incluindo aí os mais variados contextos privados de uso da palavra verbal. Porém, como na Retórica Clássica, que se interessa pela expressão oral pública e mais do que isso pela formação de uma técnica no uso público da palavra, trabalha-se na tese com um tipo de argumentação que pode ser classificado plenamente como público, pois minha preocupação é a instituição de uma técnica no emprego público da palavra cantada. Patrick Charaudeau afirma que devem ser distinguidos dois usos do termo argumentação. O primeiro que a considera como a expressão de um ponto de vista e o segundo que a vê como um modo

específico de organização de um discurso (In: MAINGUENEAU; CHARAUDEAU, 2004, p.

52-57). E é esse último sentido que persigo na tese na análise do discurso verbomusical do Brasil.

Sustento nesta pesquisa que a música popular brasileira pode ser analisada em sua dimensão retórica, consequentemente argumentativa e discursiva. Em sendo assim, o discurso verbomusical brasileiro seria oriundo de uma comunidade discursiva/argumentativa (MOSCA, 2004b, p. 06), formada por compositores, letristas, melodistas, intérpretes, instrumentistas, empresários, produtores de discos e dos artistas, radialistas, jornalistas, críticos musicais, ouvintes e fãs, todos fazedores, comentadores, divulgadores, apreciadores e

consumidores da canção, gênero discursivo fruto da prática discursiva Música Popular

Brasileira. Essa será tomada aqui enquanto discurso persuasivo, pois está destinada a agir sobre outros, agradando, seduzindo e convencendo ouvintes e outros cancionistas.

Para verificar os modos de organização do discurso verbomusical brasileiro enquanto sistema retórico, apoio-me na contribuição da Retórica Clássica (Aristóteles, dentre outros gregos, e romanos) no que concerne às partes da organização retórica (inventio, dispositio,

elocutio, actio e memoria), às funções do discurso retórico (docere, movere e delectare) e à

interação entre os elementos ethos, pathos e logos. Para mostrar em linhas gerais essa retoricidade da música, estabeleço como parâmetro a elaboração da canção como objeto retórico prototípico que representa de forma emblemática a retórica do discurso verbomusical brasileiro45 materializada em seu principal enunciado: a canção, o gênero por excelência desse discurso, pois o cancionista orador, por meio da obra, apresenta-se ao seu público-auditório usando a canção como principal mediadora. A constituição desse gênero permite, assim, com exatidão, a visualização de todas as dimensões de uma organização retórica.

45 Outras análises de exemplares de canções da música brasileira segundo preceitos da Retórica podem ser encontradas no livro As mulheres que a gente canta - MPB e retórica, organizado por Azevedo e Ferreira (2000). A obra traz uma série de artigos com comentários de músicas de diversos gêneros.

Segundo o sistema retórico clássico de Aristóteles, Cícero e Quintiliano, a produção de um discurso argumentativo pode ser dividida em cinco partes, correspondendo cada uma delas às cinco fases pelas quais passaria o sujeito que produz um discurso: a inventio, a dispositio, a

elocutio, a actio e a memoria. Consideremos inicialmente as quatro primeiras delas, de base

grega.

A inventio (do grego heuresis) equivale à busca inicial pelo orador de argumentos, de temas e dos mais diversos meios de persuasão e procedimentos retóricos que serão explorados em seu discurso. Nesse momento, a pergunta que rege o orador é: o que eu devo expressar? No caso da canção, esses temas são dos mais variados tipos pela própria natureza do gênero textual canção, que possibilita ao orador investir em um número praticamente ilimitado de temas ou de cenografias, para usar a noção postulada por Maingueneau. E assim surgem canções que falam de amor, de encontros e desencontros, de dores, de paz, do Brasil, de filhos, de mulheres e por aí sucessivamente. Inventio nesse caso não tem necessariamente relação direta com a palavra em língua portuguesa “invenção”, no sentido de uma descoberta singular, pois o orador “inventa” a partir de um repertório fornecido pela própria cultura e essa invenção será mais ou menos ligada a uma criatividade a depender de uma série de coerções do seu próprio posicionamento na música. Certamente, é unanimemente aceito pelos críticos que as “invenções” do compositor Chico Buarque de Hollanda, por exemplo, são mais criativas que as invenções de compositores de gêneros extremamente populares, como o funk ou o axé-music. Mesmo assim, todos os compositores que produzem canções passam pelo mesmo processo de procura de material a ser trabalhado nas fases seguintes da feitura de uma canção, o que quer dizer que todos eles “inventam”.

A dispositio (em grego, taxis), passada a fase de inventio, corresponde ao momento de ordenação desses argumentos e elementos discursivos encontrados. Nessa fase, a pergunta feita pelo orador passa a ser: como organizar o que eu devo expressar? Pensando no funcionamento do discurso enquanto cena de enunciação, na dispositio o orador compositor, depois de encontrar o tema a ser trabalhado, perguntar-se-á sobre qual cenografia será mais adequada a ele. O tema da separação matrimonial, por exemplo, pode ser contado ao auditório