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Tipos de auditório: entre o particular e o universal

Feitas as considerações sobre o que entenderei por orador no âmbito da tese, abordarei agora o segundo elemento fundamental da prática argumentativa, qual seja, o auditório. É evidente que o auditório é essencial na produção de todo e qualquer discurso, seja ele oral, escrito, visual ou musical. Essa existência e importância obrigatórias do auditório no discurso persuasivo, fazendo parte da própria natureza de um discurso retórico, é fortemente salientada pelos autores do Tratado da argumentação e ao longo de todas as obras individuais de Perelman, como podemos ler na seguinte afirmação: “Com efeito, como a argumentação visa obter a adesão daqueles a quem se dirige, ela é, por inteiro, relativa ao auditório que procura influenciar” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, op. cit., p. 21). Isso significa que o ato de argumentar é produzido única e exclusivamente para um ouvinte, um auditório que será influenciado por esse ato. Mesmo em uma deliberação íntima, que corresponde a um tipo de mediação do sujeito consigo mesmo (op. cit., p. 45), o ouvinte estará sempre presente, pois nesse caso o sujeito que “fala” só será “ouvido” a partir do momento em que se dividir em duas posições: a de orador e a de auditório de seu próprio discurso.

58 Voltarei a essa distinção entre sujeitos produtores e sujeitos gerenciadores do discurso no capítulo 3.5 de

No âmbito da Retórica, Perelman e Olbrechts-Tyteca (op. cit., p. 22) definem o

auditório como o “conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua argumentação. Cada orador pensa, de uma forma mais ou menos consciente, naqueles que procura persuadir e que constituem o auditório ao qual se dirigem seus discursos”. Constrói-se, portanto, tacitamente, a ideia de que o público vai apreender o sentido do texto/discurso, o qual nada mais é do que uma construção que os sujeitos fazem a partir da sua posição (a de orador) e da posição do outro (a de auditório). A preocupação com os destinatários pode ser, ainda, avaliada como o principal motor que dá dinamicidade aos discursos, pois é ela que faz com que o orador posicione-se em um movimento constante de adaptação aos diversos auditórios nos mais variados contextos possíveis.

Neste momento, pode-se trazer para o diálogo a reflexão do crítico de arte e musicólogo brasileiro Mário de Andrade (1972, p. 14), para quem a música caracteriza-se por uma espécie de “violenta força dinamogênica sobre o indivíduo e as multidões”59. Essas duas classificações de movimentação do homem no mundo enquanto “pessoa” e enquanto “grupo” referem-se exatamente aos dois tipos de público estudados por Perelman e Olbrechts-Tyteca: o auditório particular e o auditório universal.

O primeiro, o auditório particular, é formado por um único indivíduo, o interlocutor específico a quem se dirige, ou por um grupo de pessoas que compartilhem valores e práticas comuns. Já o auditório universal é composto pela totalidade de pessoas do mundo, ou “pelo menos por todos os homens adultos e normais”. Os autores falam também de um terceiro grupo, uma espécie de subdivisão do auditório particular, constituído pelo próprio sujeito orador, ao deliberar as motivações de seus atos, como já foi mencionado acima (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, op. cit., p. 33 e 34). Para Perelman e Olbrechts- Tyteca, a existência de um auditório universal é primordial, na medida em que o discurso dirigido a ele tem o caráter de um discurso lógico e o “privilégio filosófico confiado à razão” (op. cit., p. 34). Nesse sentido, em comparação com o auditório particular, o auditório universal, mesmo que tenha uma existência utópica, visto que é impossível argumentar para toda a humanidade e persuadi-la, serviria de “norma de uma argumentação objetiva”, pois “o parceiro do diálogo e o indivíduo que delibera consigo mesmo [ou seja, os dois tipos de auditórios particulares] não são mais que encarnações sempre precárias”, como observam Perelman e Olbrechts-Tyteca (op. cit., p. 34). Mas a esse respeito, os autores do Tratado ponderam:

59 Destaques meus.

As concepções que os homens criaram no curso da história dos “fatos objetivos” ou das “verdades evidentes” variaram o bastante para que nos mostremos desconfiados a esse respeito. Em vez de se crer na existência de um auditório universal, análogo ao espírito divino que tem de dar seu consentimento à “verdade”, poder-se-ia, com mais razão, caracterizar cada orador pela imagem que ele próprio forma do auditório universal que busca conquistar para suas opiniões. (op. cit., p. 37)

Logo, o auditório universal não seria dado previamente pela cultura e fixo para todas as sociedades, mas, ao contrário, formado por tudo aquilo que o orador conhece de seus semelhantes. Esse conhecimento prévio aí é necessário para que o orador ultrapasse as possíveis oposições existentes entre os seus valores e aqueles do auditório universal. Perelman e Olbrechts-Tyteca atentam ainda que “cada cultura, e o estudo dessas variações seria muito instrutivo, pois nos faria conhecer o que os homens consideraram, no decorrer da história,

real, verdadeiro e objetivamente válido” (op. cit., com destaques dos autores).

Nesse cenário, a afirmação dos autores em relação ao auditório particular – de que “o indivíduo escolhido para encarnar o auditório particular a que se dirige o orador revela, de um lado, a ideia que ele se faz desse auditório, de outro, as metas que espera atingir” (op. cit., p. 44) – seria igualmente válida para o auditório universal, considerando que a abordagem do orador diante do auditório sempre levará em conta esses dois aspectos a partir de sua posição axiológica: a) A imagem feita pelo orador de seu auditório; e b) Os objetivos que o orador deseja alcançar.

Além da presença incontestável do auditório, Mosca observa que “a argumentação “pressupõe a tentativa de um falante para modificar o outro a quem se dirige e de fazê-lo aderir à sua proposta, enfim, a seu modo de ver e entender o mundo, as pessoas, as coisas” (2008, p. xi). Portanto, a argumentação deve ser analisada, considerando-se um processo de

intersubjetividade entre o orador e o seu auditório, entendendo o termo “intersubjetivo” como se referindo “às relações entre os vários sujeitos humanos”60. É nessa perspectiva que analiso na tese a canção brasileira como objeto mediador entre o orador cancionista e o seu auditório ouvinte. Nesta pesquisa, dou ênfase ao discurso polêmico devido ao fato de que Belchior assume (investe em) um posicionamento polêmico em suas composições. Assim, a persuasão no discurso do artista cearense, ou seja, a ação de suas palavras sobre o auditório dá-se, portanto, pelo investimento na polêmica. Desse modo, é por meio desse gesto que o cancionista agrada, seduz e convence os ouvintes e outros cancionistas. Mas como analisar os diversos grupos de ouvintes da música brasileira em geral e do discurso polêmico tratado

aqui? A partir dessa questão maior sobre o papel do auditório no discurso verbomusical polêmico, pode-se segmentá-la em duas questões mais específicas:

a) Se para Aristóteles, na Retórica antiga, havia no mínimo “três espécies de auditório” (Retórica, 1358a e 1358b)61, quantos e quais são os auditórios constituintes do discurso moderno da canção brasileira?

b) Como considerar os diversos auditórios envolvidos nas relações polêmicas?

Para dar conta dessas indagações, proponho que o auditório global do discurso verbomusical, ou seja, o grupo formado por todos os ouvintes que o orador cancionista deseja

atingir ou efetivamente atinge com sua argumentação, seja dividido em três grupos

determinados:

a) Chamarei aqui de auditório particular os ouvintes que aderem ao discurso de um compositor ou gênero musical específicos. No discurso polêmico, o auditório particular de um orador tenderá a assumir as críticas feitas por ele a outros cancionistas;

b) Por auditório universal entenderei o conjunto de todos os ouvintes que consomem o discurso verbomusical brasileiro, independentemente de serem admiradores de um cancionista ou gênero musical específicos, mas que virtualmente podem ser persuadidos por eles. Esse tipo de ouvinte tenderá a não entrar na disputa colocada por um cancionista em oposição ao posicionamento de outro;

c) Há ainda um terceiro grupo de ouvintes, constituído pelos outros cancionistas que aderem ao discurso de um compositor ou gênero musical específicos ou que são atacados por ele. A esse grupo, nomearei na tese de auditório singular do orador. No discurso polêmico, o orador que ataca um cancionista, reporta-se ao mesmo tempo a outros cancionistas que irão apoiá-lo na sua crítica.

Seja o público homogêneo ou heterogêneo, seja o auditório particular ou universal, o ponto de partida e desenvolvimento de uma argumentação sempre busca a adesão do auditório, o que possibilitará um acordo (conceito desenvolvido na teoria de Perelman) entre aquele que apresenta a argumentação e aqueles a quem ela se dirige. A noção de auditório

particular e universal pressupõe necessariamente que orador e auditório (com)partilhem

61 “As espécies de retórica são três em número; pois outras tantas são as classes de ouvintes dos discursos. Com efeito, o discurso comporta três elementos: o orador, o assunto de que se fala, e o ouvinte; e o fim do discurso refere-se a este último, isto é, ao ouvinte” (ARISTÓTELES, 1998 [IV a. C.], p. 56).

pontos comuns, por meio de um acordo, prévio ou não, de uma sintonia entre os dois sujeitos, ou por um processo de empatia ou gerado pela persuasão do discurso do orador.

No caso do discurso verbomusical, esses pontos compartilhados envolvem diversas práticas sociais, que na tese serão associadas à noção de gestos retóricos (conceito que será especificado no subcapítulo 3.5 de considerações sobre o discurso verbomusical), dentre as quais a disposição pelo ouvinte de escutar o cantor é o primeiro passo (gesto) fundamental, que pode ou não estar associado a outros, como comprar discos, assistir a shows, participar de fã-clubes etc. No entanto, é preciso chamar a atenção para o fato de que alguns desses gestos específicos fazem com que o sujeito ouvinte componha ora o auditório particular do artista, ora o seu auditório universal. Por exemplo, o gesto de participar do fã-clube do artista cancionista faz automaticamente com que o ouvinte faça parte da categoria de auditório particular. Por outro lado, o gesto de apenas escutar músicas torna o ouvinte um membro do auditório universal do conjunto de artistas. Nessa diversidade de destinatários, que reúne “pessoas diferenciadas pelo caráter, vínculos ou funções”, Perelman e Olbrechts-Tyteca assinalam que é exatamente “a arte de levar em conta, na argumentação, esse auditório heterogêneo que caracteriza o grande orador” (op. cit., p. 24). Meu intento na análise é portanto verificar como o cancionista Belchior lida com essas três representações de auditório. Em síntese, o processo retórico-discursivo do acordo envolve necessariamente um consentimento tácito do interlocutor em direção ao orador, em consonância com os seus valores, crenças e expectativas prévias. Isso significa que no movimento de chegada ao acordo e à negociação, a argumentação entre orador e auditório deve ser colaborativa.

É certo que num movimento discursivo que envolve aproximação e distanciamento, nem sempre a chegada a esse acordo acontece de modo harmônico e colaborativo; sobretudo quando existem opiniões diferentes, visto que o ato de argumentar, ou seja, de “fornecer argumentos” (PERELMAN, 1987, p. 234) envolve a mobilização de “razões a favor ou contra uma determinada tese” (op. cit.). Considerando que no ato de falar o sujeito experimenta negociar sua própria voz, em interação com a voz dos outros, em assim sendo o processo da chegada ao acordo envolve uma negociação permanente e por isso devem ser analisados em um discurso polêmico os possíveis fenômenos de negociação. Neste ponto, trago mais uma questão a ser pensada na tese: quais os objetos de acordo e de negociação no discurso verbomusical? Esse é outro aspecto que pretendo investigar ao longo do capítulo de análise. Segundo afirma Mosca (2004b, p. 05), “a argumentação deve ser considerada uma forma particular de interação, em que se confrontam pontos de vista diferentes para se chegar a uma nova construção”. Com isso posto, vê-se que no instante mesmo em que surge um conflito,

também surge a necessidade de argumentar, de persuadir e de convencer. Nesse contexto, a partir do momento em que surge a opinião divergente, cria-se um ambiente de tensão. Entretanto (e o que só aparentemente é paradoxal), no movimento argumentativo, o próximo passo da argumentação tende ao acordo. Nessa etapa, como nos ensina Meyer (2007), a distância natural que existe entre os sujeitos passaria por um processo de “negociação da diminuição”. E pensando por esses termos, a área de estudos da Retórica e da Argumentação deve muito de sua existência aos estudos sobre os conflitos e os processos de negociação, segundo assevera Mosca. De acordo com a autora,

por este prisma, pode-se melhor compreender o que é da ordem do crer, da adesão, das preferências, de onde advêm o respeito ao outro, à diferença, e a possibilidade de relações intersubjetivas mais amistosas e cordiais. Em tudo isto, cabe ao sentido, à significação, de modo mais amplo, o papel fundamental que integra, por sua vez, a comunicação que se dá entre as partes envolvidas, de onde a tão importante noção de acordo, como ponto de partida de toda e qualquer argumentação. (Mosca, 2008, p. xiii, com destaques da autora)

Em síntese, na narrativa polêmica, como veremos no próximo capítulo sobre o

discurso polêmico, existe necessariamente a presença de dois movimentos retórico-

discursivos: em um primeiro instante, dá-se o estabelecimento do discurso polêmico; e em uma segunda fase, há a tendência à instalação de um discurso contratual, ligado ao acordo.

Em suma, o objetivo da tese é investigar também se, na sua relação polêmica com os outros compositores, especialmente Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil, Belchior utiliza ou não estratégias de negociação para amenizar os possíveis conflitos, tanto diante dos cancionistas (os atingidos e os não atingidos), quanto perante o público. Legitimando a afirmação de Wisnik de que a música “é capaz de provocar as mais apaixonadas adesões e as mais violentas recusas” (1999, p. 28), procuro observar na análise das canções de Belchior esses dois movimentos: o da adesão às suas propostas e o da possível recusa, pelos cancionistas ouvintes e pelo público, todos destinatários e testemunhas do discurso polêmico empreendido por Belchior.

Pela importância primordial do auditório no processo discursivo, apresento a seguir uma proposição tipológica para a compreensão desse diálogo entre orador e auditório no discurso verbomusical, que inclui não apenas o seu elemento crucial, o orador, mas também outros sujeitos que atuam juntamente tanto ao orador, quanto ao auditório, na esfera do discurso verbomusical brasileiro.

3.3 Uma proposta de análise da autoria, coautoria, audiência e coaudiência na