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Técnicas argumentativas em defesa de uma posição identitária ou contra

Para compreender como se dá o convencimento e a persuasão no movimento de ação sobre o outro, nos mais diversos contextos e situações da vida cotidiana, nas suas inúmeras formas de expressão, é necessária a investigação dos recursos e procedimentos mobilizados. No contexto particular de minha pesquisa, o interesse é saber como se dá a eficácia retórica empreendida por Belchior, no que se refere à adesão (interação) às propostas e opiniões postuladas pelo artista no campo discursivo da música brasileira.

Sabe-se que o cerne da Retórica é a opinião, existindo variadas maneiras pelas quais ela pode se revelar. Para expressar suas opiniões, os sujeitos do discurso usam uma série de artefatos argumentativos, o que nas palavras de Perelman e Olbrechts-Tyteca equivale a dizer que o objetivo da argumentação é estudar as “técnicas discursivas que permitem provocar ou

aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhe apresentam ao assentimento” (op. cit., p. 04, com destaques dos autores; PERELMAN, 1993). A partir dessa postulação, os dois autores desenvolveram no Tratado da argumentação um estudo sistemático de variados meios de convencimento e de persuasão, elencando mais de oitenta técnicas argumentativas, o que no olhar de Plantin (2008, p. 45) se constitui um dos grandes méritos da obra, opinião uníssona entre os pesquisadores dos estudos de Retórica e Argumentação.

Por ser a música “um foco de atrativos que se presta a variadas utilizações e manipulações” (WISNIK, 2002, p. 114 e 115), é de bastante aplicabilidade a tipologia das técnicas argumentativas elaborada por Perelman e Olbrechts-Tyteca (op. cit.) no sentido de investigar os diversos modos pelos quais essas “manipulações” argumentativas manifestam-se no discurso polêmico de Belchior, bem como dos cancionistas em geral, mas no âmbito desta tese valho-me apenas de algumas técnicas relacionadas ao discurso polêmico entre os cancionistas analisados, bem como à instituição do posicionamento identitário de Belchior.

Inicialmente, vejamos o que propõem os autores do Tratado. A classificação de Perelman e Olbrechts-Tyteca (op. cit.) abrange dois conjuntos de técnicas discursivas, nas quais são empregados diversos argumentos. Os primeiros são os fundados em processos de

ligação, os quais correspondem aos esquemas que aproximam elementos diferentes e

possibilitam o estabelecimento de uma solidariedade entre esses elementos, com o objetivo de estruturá-los, valorizá-los positiva ou negativamente, a cada um deles. Esses processos ou esquemas de ligação de ideias manifestam-se por meio de três tipos de argumentos: os quase-

lógicos, os baseados na estrutura do real e os que baseiam (fundamentam) a estrutura do real.

Os argumentos quase-lógicos são aqueles que se apresentam como raciocínios formais, lógicos ou matemáticos, como por exemplo a contradição e a relação da parte com o todo, e assim se assemelham, por não demandarem à experiência. No entanto, o termo “quase” indica que todos eles, contrariamente aos princípios da demonstração, têm na verdade um caráter não formal, podendo serem refutados em um discurso pelo interlocutor. Ao contrário desses, os argumentos baseados na estrutura do real não têm relação com o pensamento formal, não pretendendo serem válidos por causa de uma racionalidade. São aqueles apresentados pelo orador em conformidade com a estrutura mesma das coisas, ou seja, recorrem o tempo todo à relação com a experiência humana. Nesse caso, o ato de argumentar abrange o gesto de “explicar” e não mais de “implicar”, como no primeiro grupo de argumentos (REBOUL, op. cit., p. 173). Já os argumentos que baseiam (fundamentam) a

estrutura do real são instituídos por meio de exemplos particulares e de analogias. Esses,

apesar de associados à experiência das atividades dos homens, em vez de se fundamentarem na realidade, fundam-na; ou, pelo menos, a complementam, estabelecendo ligações entre coisas que antes não existiam ou não eram tão claras.

Com relação ao segundo grupo de técnicas discursivas, os argumentos fundados em

processos de dissociação correspondem a procedimentos de ruptura empregados com o

objetivo de separar alguns elementos associados a um todo ou a um conjunto pertencente a um mesmo sistema de pensamento. A finalidade desses argumentos seria, então, modificar um sistema a partir da modificação de qualquer uma de suas peças. Assim, o orador que o aplica visa, em vez de aceitar uma determinada ideia, operar a partir dela uma nova modelagem. Perelman e Olbrechts-Tyteca, partindo desses dois grandes grupos (os fundados em processos

de ligação e os fundados em processos de dissociação), examinam em seu Tratado da argumentação uma série de argumentos, os quais são listados resumidamente no quadro a

Quadro 3 - Algumas Técnicas Argumentativas, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005 [1958], p. 209-574)

Argumentos Fundados em processos de ligação

quase-lógicos

compatibilidade e incompatibilidade (contradição) ridículo identificação e definição regra de justiça reciprocidade transitividade comparação sacrifício probabilidade baseados na estrutura do real as ligações de sucessão casualidade pragmático desperdício direção superação as ligações de coexistência

sobre a pessoa e sobre o ato: ad hominem e ad personam autoridade

hierarquia dupla grau e ordem

baseiam a estrutura do real

pelo caso particular

exemplo ilustração

modelo e antimodelo

o raciocínio por analogia

analogia metáfora

Argumentos Fundados em processos de dissociação

dissociação nocional

Com relação a essa classificação dos esquemas argumentativos, os autores chamam a atenção de que não se deve acreditar que os grupos são entidades isoladas, apesar de a interpretação de uma ideia poder seguir um desses esquemas. Esses dois grupos de argumentos, os fundados em processos de ligação e os fundados em processos de dissociação são, portanto, complementares e muitas vezes operam simultaneamente. Logo, caberia ao orador decidir qual argumento será enfatizado em seu discurso. Já o analista, sem se fechar nas classificações, é livre para considerar que determinados argumentos pertencem a mais de um grupo de esquemas. Perelman e Olbrechts-Tyteca (op. cit., p. 217) vão além ao afirmar que “poderíamos mesmo, com alguma aparência de razão, reduzir todos os grupos de esquema a um deles, que seria considerado fundamental, subjacente a todos”. No caso específico do discurso analisado na tese, acredito que os argumentos empregados por Belchior nos contextos polêmicos podem ser concentrados em um conjunto de dois esquemas argumentativos: os argumentos ad hominem e os argumentos ad personam. Cada um desses argumentos está associado na maioria das vezes a um processo de intertextualidade e/ou interdiscursividade. Mas os dois inserem-se em um investimento de demarcação de um posicionamento polêmico, como procuro defender na tese. O que implica dizer que a argumentação de Belchior concentra-se sempre no estabelecimento de sua própria identidade. Para analisar essa interação de argumentos65 na produção musical do compositor cearense, penso nesses dois argumentos, o ad hominem e o ad personam, associados necessariamente a dois aspectos complementares, como indico a seguir:

a) Os argumentos ad hominem e ad personam são mobilizados na defesa de uma posição identitária específica;

b) Os argumentos ad hominem e ad personam são utilizados contra outra (s) pessoa (s) e seus atos.

Em resumo, é importante chamar a atenção que, como se analisa na tese o discurso polêmico, os dois tipos de argumentos estarão ao mesmo tempo sendo empregados tanto na defesa de uma posição identitária, como envolvem um ataque a outra pessoa (individualmente ou em grupo) e a suas ações. Deixo claro ainda que na análise da polêmica empreendida por Belchior, apesar de procurar esboçar uma série de classificações, não pretendo na tese fazer

65 Essa interação entre os argumentos ocupa bastante importância na obra de Perelman e Olbrechts-Tyteca, de modo que dedicam todo o capítulo V do Tratado à sua análise.

uma tipologia fechada. As classificações fazem-se necessárias, porém no sentido de identificar os principais pontos do diálogo polêmico e de analisar o seu funcionamento.

A seguir, vejamos a especificação de cada um desses argumentos, apoiando-nos, além de Perelman e Olbrechts-Tyteca, também nos autores Angenot (1982), Reboul (2004 [1991]), Mosca (2007), Gautier (1995) e Amossy (2009 [2000]).

Para abordar os argumentos ad hominem e ad personam, é preciso primeiro trazer à luz a importância da “pessoa” como fonte e alvo de toda e qualquer comunicação discursiva, partindo do pressuposto de que o sentido das próprias expressões ad hominem e ad personam (ao homem/à pessoa ou dirigida ao homem/à pessoa) nos mostra qual a peça fundamental da questão.

A pessoa, considerada como suporte de uma série de qualidades, autor de uma série de atos e de juízos, objeto de uma série de apreciações, é, portanto, esse ser duradouro a cuja volta se agrupa toda uma série de fenômenos aos quais ele confere uma coesão e um significado. Mas, por outro lado, essa própria pessoa é conhecida através de seus atos, de suas manifestações, pois existe uma solidariedade profunda entre a ideia que se tem da pessoa e o conhecimento que se tem do conjunto de seus atos. De fato encontramo-nos perante uma constante interação entre o ato e a pessoa. (PERELMAN, 2004, p. 224)

Adotando a classificação feita por Perelman e Olbrechts-Tyteca, ao empregar esses dois tipos de argumentos e inspirada no caminho seguido pelos estudiosos em seu Tratado, que analisam de forma singular algumas relações entre a pessoa e seus atos, é que procuro olhar o objeto discursivo música brasileira na análise específica das relações polêmicas entre Belchior e os outros cancionistas. Mas ao falar de técnicas argumentativas, é preciso mais uma vez colocar que me interessa neste trabalho acentuar o fato de que por trás de todos esses procedimentos textuais/discursivos existem pessoas. E principalmente analisar como essas “pessoas” posicionam-se diante do seu próprio discurso ou dos seus próprios atos e do discurso e dos atos dos outros. É nesse sentido que investigo os argumentos ad hominem e ad

personam no discurso polêmico instaurado entre Belchior e os cancionistas Caetano Veloso,

Chico Buarque e Gilberto Gil.

Perelman e Olbrechts-Tyteca (op. cit., p. 125-129) chamam a atenção que o argumento

ad personam não deve ser confundido com o ad hominem, por vezes analisados como

argumentos semelhantes. Segundo os teóricos, só o primeiro deles refere-se a um ataque

contra a pessoa do adversário com o objetivo principal de desqualificá-lo. Já o segundo pode

argumentação66, havendo tantos argumentos ad hominem quanto os auditórios aos quais esses se dirigem. Por outro lado, em um sentido restrito, com esse argumento, o orador, a partir dos seus valores, é levado a persuadir seu interlocutor de que este teria cometido alguma atitude equivocada. Este tipo de argumento “consiste em por o interlocutor em contradição com suas próprias afirmações, com os ensinamentos de um partido que ele aprova ou com seus próprios atos”67.

Dentro do grupo maior dos argumentos ad hominem em sentido amplo, Perelman e Olbrechts-Tyteca inserem ainda a argumentação ad rem, compreendida como uma argumentação válida para toda a humanidade de razão, ou seja, o mesmo que argumentação

ad humanitatem, que seria o caso particular mais eminente da argumentação ad hominem,

pois esta tenta atingir o auditório universal. Pelo fato de persuadir apenas auditórios particulares, os argumentos ad hominem stricto sensu são muitas vezes classificados como pseudo-argumentos, que sinalizariam uma “fraqueza humana”, avaliação que “acredita que a única argumentação verdadeira é a que se dirige ao auditório universal” (op. cit., p. 126).

Ainda sobre a relação entre os argumentos ad personam e os argumentos ad hominem, os responsáveis pelo Tratado da argumentação assinalam que apesar de diferentes naturezas, esses costumam interagir, pois “aquele cuja tese foi refutada graças a uma argumentação ad

hominem vê seu prestígio diminuído, mas não esqueçamos que esta é uma consequência de

qualquer refutação, seja qual for a técnica utilizada” (op. cit.). Para exemplificar essa combinação entre esses dois argumentos, os autores citam um breve diálogo encontrado em Stevenson (Ethics and language, p. 127), o qual reproduzo abaixo:

A - O senhor é duro demais para com seus empregados.

B - Mas certamente não compete ao senhor falar assim. Sua fábrica suportaria uma sondagem com muito menos facilidade do que a minha.

Se se considera nessas duas avaliações (“a” e “b”) sobre o outro que o orador tinha o objetivo de “persuadir seu interlocutor de que este teria cometido alguma atitude equivocada”, constata-se facilmente o uso do argumento ad hominem. Mas aqui não se pode deixar de ver também que a avaliação de cada um dos oradores constitui-se como um “ataque contra a

66“Toda argumentação é uma argumentação ad hominem” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, op. cit., p. 125).

67 Perelman e Olbrechts-Tyteca citando Schopenhauer, ed. Piper, vol. 6: Eristische Dialektik, p. 415 (Kunstgriff 16).

pessoa do adversário com o objetivo principal de desqualificá-lo”, ou seja, um argumento ad

personam.

Na esteira de Perelman, Angenot (op. cit., p. 218 e 219) considera que “tout argumentation est ad hominem ou ex concessis”68. Para o pesquisador, esse tipo de argumentação se fundamenta em premissas consideradas como universalmente prováveis ou admitidas expressamente pelo interlocutor. Por causa disso, o argumento ad hominem força o adversário a se submeter a essas premissas, sem ter chances de refutá-la. Vê-se aqui que a definição de Angenot atinge o que Perelman classificou de argumentação ad rem ou ad

humanitatem, aquelas que são endereçadas a todas as pessoas.

Sem fazer essa distinção entre os argumentos ad hominem e ad personam, para Reboul (op. cit., p. 176-178), o argumento ad hominem pode ser definido como um argumento de

autoridade invertido. Em vez de “justificar uma afirmação baseando-se no valor de seu autor, como por exemplo, Aristoteles dixit, Aristóteles disse” (p. 176), efeito que ocorre no argumento de autoridade, o argumento ad hominem “consiste em refutar uma proposição recorrendo a uma personalidade odiosa: ‘Era o que dizia Hitler!’” (p. 178). Ou ainda ressaltando as fraquezas do sujeito que a enunciou: “‘Se ele afirma isso é porque tem interesse... como podem acreditar, se ele escreve no Le Figaro (ou no L’humanité)’” (op. cit.).

O autor classifica esse tipo de argumento como um “argumento vil, que no fundo implica certa violência, obstando a qualquer raciocínio” (op. cit.). De acordo com o teórico, o argumento ad hominem entra em ação quando faltam outros argumentos. Indo no mesmo caminho de Reboul, Mosca (op. cit., p. 303), ao admitir que o argumento ad hominem “consiste em responder ao argumento de alguém, dirigindo a atenção para o seu próprio autor, com ataques pessoais sobre seu caráter, interesses ou sua inconsistência”, observa que este tipo de argumento é avaliado por muitos pesquisadores, dentre eles Eemeren e Grootendorst, como um tipo de falácia da argumentação. Segundo a visão da Pragma-Dialética, o argumento ad hominem subverte uma regra fundamental de uma discussão crítica, a lei do discurso que possibilita ao interlocutor de fazê-lo avançar no seu discurso, usando os argumentos que lhe cabem.

Passo agora a classificação de Gautier (op. cit.) sobre esses argumentos. O autor inicia observando que ao longo da história do pensamento as muitas considerações sobre o argumento ad hominem não o dão um sentido homogêneo, designando “um conjunto de procedimentos argumentativos bastante heteróclitos” (p. 172). A partir dessa constatação, Gautier propõe então uma caracterização multiforme do argumento ad hominem com base nos

principais tipos de argumentos ad hominem empregados no discurso político. Segundo o pesquisador, esses argumentos estão divididos em três tipos: os lógicos, os circunstanciais e os pessoais.

Os argumentos ad hominem lógicos atacam um interlocutor colocando em causa uma posição (de uma ideia, de um ponto de vista, de uma tese, de uma opinião), por uma incompatibilidade (incoerência ou inconsistência) de ordem formal. Ele surge por exemplo quando um interlocutor é confrontado a por em evidência a contradição entre duas posições que ele pretende sustentar simultaneamente.

Os argumentos ad hominem circunstanciais atacam o interlocutor colocando em causa uma posição sustentada pela pessoa em virtude de qualquer característica associada a ela. O ponto essencial desse tipo de argumentação é a tentativa de colocar o interlocutor em contradição consigo mesmo pelo fato de uma incompatibilidade entre a posição que este apresenta e qualquer traço de sua personalidade ou de seu comportamento (p. 174 e 175).

Os argumentos ad hominem pessoais são aqueles que se associam mais diretamente à pessoa do interlocutor. Esses argumentos colocam em causa a pessoa do adversário para que se possa atacar a posição que o outro defende. Muitas vezes, esse tipo de argumento se particulariza por colocar em causa de forma frontal muito mais a pessoa do seu adversário do que por ser uma oposição ao seu ponto de vista.

Quanto à distinção feita por Perelman e Olbrechts-Tyteca, o autor observa que aquilo que os autores do Tratado classificam de argumento ad hominem se inclui na categoria de

argumentos lógicos, na teoria de Gautier. Já os argumentos ad personam, tal como entendem

Perelman e Olbrechts-Tyteca, estariam inseridos nos argumentos circunstanciais (op. cit., p. 175). Falando da diferença fundamental de sua classificação, Gautier precisa ainda que nos dois primeiros tipos de argumentação ad hominem, lógicos e circunstanciais, o ataque ao interlocutor objetiva desacreditar uma posição. Já na argumentação ad hominem pessoal, o ataque da pessoa constitui-se um fim em si mesmo.

Por último, vejamos a apreciação de Amossy (op. cit., p. 142) acerca desses argumentos. A autora observa que na tradição da história linguística da argumentação, o argumento ad hominem é uma das armas privilegiadas do discurso polêmico e indica uma estratégia cujo objetivo é atacar a pessoa do orador. A autora cita Hamblin, ao afirmar que “selon la tradition moderne il y a argument ad hominem quand un cas est discuté sur la base non de ses mérites propres mais à partir de l’analyse (en général défavorable) des motifs ou

des circonstances de ceux qui le défendent ou l’attaquent”69 (HAMBLIN, 1970, p. 41, in: AMOSSY, op. cit.).

Ela afirma ainda que esse tipo de argumento é constantemente acusado pela falta de pertinência ou “validade lógica”, “dans la mesure où le polémiquer s’en prend à la personne de son adversaire plutôt qu’au sujet même de la controverse (il n’est pas ad rem)”70– ou seja, como destacam Perelman e Olbrechts-Tyteca (op. cit., p. 125), costuma-se opor o argumento

ad hominem, que se baseia na opinião, ao argumento ad rem, que se refere à verdade ou à

própria coisa, distinção não validada pelos autores, como foi comentado acima. E por isso ele é avaliado em numerosas teorias da argumentação “do ponto de vista de uma ética da discussão” por descumprir as regras do jogo. No entanto, a “falta de lógica e o caráter duvidoso de sua qualidade ética” não impedem, segundo Amossy, toda a eficácia retórica do argumento ad hominem (op. cit., p. 142 e 143). Acompanhando Reboul, Amossy ratifica a fato de que o ad hominem deve ser lido como um argumento “d’autorité renversé”. E nessa perspectiva, a autora acrescenta que o argumento ad hominem dá mais importância ao ethos do adversário do que ao exato conteúdo dos seus propósitos. E por isso, Amossy acredita que se não há uma pertinência lógica no argumento ad hominem, pode-se falar de uma “pertinence

ethotique”, uma pertinência éthica, termo postulado por Brinton.

Feitas as considerações no que diz respeito a algumas abordagens sobre os argumentos ad hominem e ad personam, é chegado o momento de se questionar como analisar esses esquemas argumentativos na esfera da canção brasileira. Como mostrei, todas as perspectivas comentadas apontam de certa forma para uma visão mais ou menos particular e elas poderiam ser desdobradas de muitas maneiras. Meu interesse, no entanto, é analisar a música popular levando em conta dois aspectos principais: o gênero de discurso canção e a

comunidade discursiva verbomusical. Apoiada nas postulações de Bakhtin e Maingueneau

expostas no subcapítulo 3.1, proponho então que a análise dos argumentos ad hominem e ad

personam, no confronto entre um orador cancionista que ataca e outros cancionistas que são atacados (em seus atos e em suas posições) seja assim realizada.

69 “segundo a tradição moderna, há argumento ad hominem quando um caso é discutido sob a base não de seus méritos próprios, mas a partir da análise (em geral, desfavorável) dos motivos ou das circunstâncias daqueles que o defendem ou o atacam”. Tradução de minha responsabilidade, com base no trecho retirado da obra de Amossy (2009, p. 142).

70 “na medida em que o polemizador prende-se muito mais ao seu adversário do que ao assunto da controvérsia (ele não é um argumento ad rem)”. Tradução de minha responsabilidade, direto do original.

a) Serão classificados como argumentos ad hominem aqueles que colocam em questão as figuras do autor-criador ou do cancionista (compositor, letrista, melodista, instrumentista e intérprete), bem como a do inscritor (enunciador e locutor);

b) Serão classificados como argumentos ad personam aqueles que colocam em