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Uma outra discórdia manifestada em canções foi aquela vivida por dois dos maiores artistas da Era do Rádio brasileira, o compositor Erivelto Martins e a sua esposa, a cantora Dalva de Oliveira, a qual se tornou até hoje talvez a mais célebre da nossa história brasileira

em termos de embate amoroso-musical. Depois da separação do casal, eles protagonizaram uma briga musical, cuja polêmica materializada nas canções se misturou completamente com a briga conjugal. À medida que um gravava uma música supostamente dirigida ao outro, logo na primeira oportunidade o outro respondia à altura. Uma importante particularidade na resposta que diferencia esta da outra polêmica tratada no subcapítulo anterior é que, enquanto Erivelto ele mesmo escrevia as canções, a intérprete Dalva era apoiada por outros compositores, como Paulo Soledade, Nelson Cavaquinho e Ataulfo Alves.

Vejamos então o percurso dessa disputa pessoal levada para as canções no litígio Herivelto x Dalva.

Em 1947, com os sambas-canção “Caminhemos”, gravada por Francisco Alves, e “Segredo”155, em parceria com Marino Pinto, feita para Dalva gravar quando ainda era casada com Herivelto, já temos dois casos em que Herivelto anunciava a separação do casal. Vejamos as letras:

“Caminhemos” (Herivelto Martins)

Não, eu não posso lembrar que te amei / Não, eu preciso esquecer que sofri / Faça de conta que o tempo passou / E que tudo entre nós terminou / E que a vida não continuou pra nós dois / Caminhemos, talvez nos vejamos depois // Vida comprida, estrada alongada / Parto à procura de alguém / Ou à procura de nada… / Vou indo, caminhando / Sem saber onde chegar / Quem sabe na volta / Te encontre no mesmo lugar

“Segredo” (Herivelto Martins e Marino Pinto)

Teu mal é comentar o passado / Ninguém precisa saber o que houve entre nós dois / O peixe é pro fundo das redes, segredo é pra quatro paredes / Não deixe que males pequeninos / Venham transformar os nossos destinos / O peixe é pro fundo das redes / Segredo é pra quatro paredes / Primeiro é preciso julgar / Pra depois condenar / Quando o infortúnio nos bate à porta / O amor nos foge pela janela / A felicidade para nós está morta / E não se pode viver sem ela / Para o nosso mal não há remédio coração

Três anos depois, no início da década de 1950, quando a separação já estava consumada e o compositor já havia iniciado uma nova vida com outra mulher, Dalva grava o samba “Tudo acabado”, de José Piedade e Oswaldo Martins, dando início a uma carreira solo de grande sucesso, após a sua saída do grupo que a consagrou junto ao ex-marido Herivelto Martins e a Nilo Chagas, o Trio de Ouro. Pelo conteúdo da letra, evidentemente o gesto de Dalva foi lido como tendo sido direcionado a Herivelto. Vejamos:

“Tudo acabado” (José Piedade e Osvaldo Martins)

Tudo acabado entre nós, já não há mais nada / Tudo acabado entre nós hoje de madrugada / Você chorou e eu chorei, você partiu e eu fiquei / Se você volta outra vez, eu não sei // Nosso apartamento agora vive à meia-luz / Nosso apartamento agora já não me seduz / Todo egoísmo veio de nós dois / Destruímos hoje o que podia ser depois

Do mesmo ano, a canção que dá reforço e continuidade à polêmica entre o casal é o bolero “Que será”, composição de um antigo parceiro de Herivelto, Marino Pinto, com Mário Rossi, que se tornaria um clássico do cancioneiro brasileiro na voz de Dalva de Oliveira.

“Que será” (Marino Pinto e Mário Rossi)

Que será / Da minha vida sem o teu amor / Da minha boca sem os beijos teus / Da minha alma sem o teu calor // Que será / Da luz difusa do abajour lilás / Se nunca mais vier a iluminar / Outras noites iguais / Procurar / Uma nova ilusão não sei / Outro lar / Não quero ter além daquele que sonhei // Meu amor / Ninguém seria mais feliz que eu / Se tu voltasses a gostar de mim / Se teu carinho se juntasse ao meu // Eu errei / Mas se me ouvires me darás razão / Foi o ciúme que se debruçou / Sobre o meu coração

Ainda em 1950, Herivelto reage. A canção “Caminho certo”, uma parceria com David Nasser, talvez motivada pelo fato de o parceiro Marino Pinto está nesse momento compondo para a ex-mulher de Herivelto, faz referência a traições amorosas de uma mulher com os amigos do sujeito que enuncia. Vejamos a letra:

“Caminho certo” (Herivelto Martins e David Nasser)

Eu (mas) deixei o meu caminho certo, / E a culpada foi ela, / Transformava o lar na

minha ausência, / Em qualquer coisa abaixo da decência, / Compreendi que estava

tudo errado, / E amargurado parti, perdoando o pecado, / Mas deixei o meu caminho certo, / E a culpada foi ela. // Sei agora, / Que os amigos, / Que outrora, / Sentavam à

minha mesa, / Serviam, sem eu saber, o amor por sobremesa, / Acreditem, é muito

fácil julgar, / A infelicidade alheia, / Quando a casa não é nossa, / E é outro que paga a ceia, / Quando a casa não é nossa, / E é outro que paga a ceia.

O cantor Pery Ribeiro, filho mais velho do casal, escreveu em 2009 um livro- depoimento onde relata todas essas memórias. Sobre essa música, Pery nos conta: “Meu pai não soube enfrentar esse sucesso que minha mãe alcançava sem ele e apelou. Foi aí então que estourou a grande guerra musical, quando meu pai escreveu em parceria com David Nasser a música ‘Caminho certo’” (RIBEIRO, 2009, p. 125). E complementa:

Este samba infeliz foi o estopim para que compositores do porte de Ataulfo Alves, Marino Pinto, Oswaldo Martins, Paulo Soledade, Humberto Teixeira, Nelson Cavaquinho, Alvarenga e Ranchinho, Lourival Faissal, Guaraná etc. tomassem as dores de minha mãe e compusessem desesperadamente para dar a Dalva, com suas canções, uma resposta a Herivelto. (op. cit.)

Foi então que no mesmo ano, na canção seguinte, o samba-canção “Errei, sim”, composto por Ataulfo Alves, a cantora Dalva de Oliveira de certa forma assume as críticas feitas pelo ex-marido, ao gravar essas palavras transcritas abaixo, mesmo que seja verdadeira a versão de que a música havia sido composta por Ataulfo anos antes da separação do casal.

“Errei, sim” (Ataulfo Alves)

Errei sim, / Manchei o teu nome / Mas foste tu mesmo / O culpado / Deixavas-me em

casa / Me trocando pela orgia / Faltando sempre / Com a tua companhia. // Lembra- te, agora, que não é, / Só casa e comida / Que prende por toda a vida / O coração de uma mulher. // As joias que me davas / Não tinham nenhum valor / O mais caro me negavas / Que era todo o teu amor, / Mas, se existe ainda / Quem queira me condenar, / Que venha logo / A primeira pedra / Me atirar

O fato de que Herivelto ficara extremamente magoado com os “amigos” parceiros que passaram a compor para Dalva torna-se bastante plausível por meio da canção assinada pelo compositor, com outro parceiro, Benedito Lacerda: “Falso amigo”, samba-canção de 1954 que teria sido escrito para o ex-parceiro de Herivelto, Marino Pinto. Vejamos o que diz a letra:

“Falso amigo” (Herivelto Martins e Benedito Lacerda)

Falso amigo / Me trocaste por dinheiro / Eu que te considerava / Meu amigo verdadeiro // Aproveita / Gasta bem o que ganhaste / Eu não quero ter notícia / Que como Judas te portaste // Teus sambas são verdadeiras infâmias / Crivados só de calúnias / Contra o amigo leal // O vinho que bebeste à minha mesa / Fez revelar a

beleza / Sem um disfarce sequer // Pantera de unhas encurvadas / Amigo das

madrugadas / Um vagabundo qualquer

Voltando a 1950, Herivelto compôs nesse ano com Nasser o samba-canção “Teu exemplo”, uma resposta à canção de Ataulfo “Errei, sim”, cuja referência às pessoas que encontram “estrelas na lama” atinge diretamente aos parceiros de Herivelto que se posicionaram ao lado de Dalva. Nesse novo período discursivo, os antigos adjuvantes de Herivelto, ao se transformarem em adjuvantes de Dalva, passaram automaticamente a serem antagonistas do compositor. Observemos a letra:

Há muita gente / Que encontra estrelas / Na própria lama / E junta um buquê de

flores / Do mal que soube causar / Há muita gente / Que a glória arranca / Do próprio drama / E da tragédia da vida / Motivos para viver / E quando erra proclama / E quando peca sorri / Há muita estrela na lama / Mas eu me refiro a ti / Porém tudo que fizeste / Não te fez minha inimiga / Mas a outras mulheres eu digo / Que o teu exemplo não siga

Na sequência da discussão, já no começo de 1951, Dalva gravou o samba “Calúnia”, de Marino Pinto e Paulo Soledade, uma resposta de peso a Herivelto que comprova que a cantora havia se identificado pessoalmente com a “cantora na lama” da qual falava “Teu exemplo”. Reproduzo a letra a seguir:

“Calúnia” (Marino Pinto e Paulo Soledade)

Quiseste ofuscar minha fama / E até jogar-me na lama / Só porque eu vivo a brilhar //

Sim, mostraste ser invejoso / Viraste até mentiroso / Só para caluniar // Deixe a calúnia de lá / Se de fato és poeta / Deixe a calúnia de lá / Que ela a mim não afeta //

Se me ofendes, / Tu serás ofendido / Pois quem com ferro ferir / Com ferro será ferido. // Quiseste ofuscar minha fama / E até jogar- me na lama / Só porque vivo a

brilhar

Constata-se ainda que essa canção traz um verso que pode resumir o motor que dá a vida a todas as polêmicas, independentemente do campo discursivo: Se me ofendes, / Tu serás ofendido. E atendendo o seu papel responsivo de polemizador, Herivelto lança em 1951, com Benedito Lacerda, os sambas “Consulta o teu travesseiro” e “Não tem mais jeito”, nos quais os enunciadores afirmam que o interlocutor deve refletir sobre os atos cometidos e que a mulher interlocutora desvia os fatos, contando outras versões da história aos amigos, como se vê respectivamente nas duas letras a seguir:

“Consulta o teu travesseiro” (Herivelto Martins e Benedito Lacerda)

Consulta o teu travesseiro e me diz / Se é possível haver mais uma vez conciliação /

Não é possível não, não é possível não // Fiz tudo pra ninguém me ver sofrendo / Meus erros levei tempos escondendo / Rebelde sempre fui teu conselheiro / Porém

agora só te resta o travesseiro

“Não tem mais jeito” (Herivelto Martins e Benedito Lacerda)

Enquanto eu puder esconder a verdade / Nada revelarei // Já chega a vergonha que eu passei / Já chega o dinheiro que eu gastei / Mulher quando perde a vergonha e o respeito / Não tem mais jeito, não tem mais jeito / Eu já desprezei essa mulher / Hoje

ela faz o que bem quer / Conta um história diferente a cada amigo / Mas a verdadeira eu guardo comigo

No mesmo ano de 1951, o samba “Palhaço”, de Nelson Cavaquinho e Oswaldo Martins, constitui-se como uma resposta direta a Erivelto, pois ironiza com a antiga profissão do compositor, além de ser uma ofensa pelo tratamento ambíguo da letra associado ao termo “palhaço”, como podemos ler abaixo:

“Palhaço” (Nelson Cavaquinho e Oswaldo Martins)

Sei que é doloroso um palhaço / Se afastar do palco por alguém / Volta que a plateia

te reclama / Sei que choras palhaço / Por alguém que não te ama // Enxuga os olhos / E me dá um abraço / Não te esqueças / Que és um palhaço / Faça a plateia

gargalhar / Um palhaço não deve chorar

Encerrando o ano de 1951, Dalva de Oliveira grava o samba “A grande verdade”, de Luiz Bittencourt e Marlene, em que dialoga de forma contrária à canção “Não tem mais jeito”, o que fica patente no próprio título e no cotejo dos versos Conta um história diferente a cada amigo / Mas a verdadeira eu guardo comigo, da canção de Herivelto, e Não me tens amizade / Essa é a grande verdade, da canção interpretada por Dalva. A seguir, a letra completa:

“A grande verdade” (Luiz Bittencourt e Marlene)

Vai, não te posso prender / Não te quero obrigar / A mentir se não queres ficar / Não convém insistir / Não convém iludir / Pra mais tarde sofrer / Não me tens amizade /

Essa é a grande verdade / Por isso eu não vejo a razão / Para a nossa união, meu

amor // Sonho, quimera, ilusão / Tudo vai terminar / Quando um dia o remorso chegar / E da felicidade existirá saudade no teu coração / Traz então a teu lado, teu vulto meio apagado / Revivendo um amor desesperado

Abrindo 1952, o samba “Fim de comédia”, novamente de Ataulfo Alves, é um índice de que a batalha entre o casal, cantada por Dalva, demandava uma conclusão. Vejamos:

“Fim de comédia” (Ataulfo Alves)

Desse amor quase tragédia / Que me fez um grande mal / Felizmente essa comédia /

Vai chegando ao seu final / Já paguei todos pecados meus / E o meu pranto já caiu

demais / Só lhe peço pelo amor de Deus / Deixe-me viver em paz // Não quero me fazer de inocente / Porém não sou tão má / Como disseram por aí / Eu quero é meu

sossego / Tão somente / Cada um trate de si

Também no começo de 1952, Dalva lança o samba-canção “Poeira do chão”, de Armando Cavalcanti e Klécius Caldas, em que o enunciador anuncia que o antigo parceiro amoroso estaria “implorando o seu perdão”, segundo lemos na sequência:

“Poeira do chão” (Armando Cavalcanti e Klécius Caldas)

O que te dei em carinho / Tu devolveste em traição / O que era um claro caminho / Tornaste desolação / Hoje, tu voltas chorando / Para implorar meu perdão. // O meu

perdão nada custa / Falando a palavra justa / Há muito eu te perdoei / E por amar de

verdade / Vendo tanta falsidade / No fundo eu te lastimei. / Se é baixo e vil o interesse / O amor bem cedo fenece / É flor que morre em botão. // Não / Não pode alcançar os astros / Quem leva a vida de rastros / Quem é poeira do chão...

Porém, não se mostrando disposto a finalizar o confronto e negando o lugar de pedir perdão referido em “Poeira do chão”, Herivelto responde mais uma vez, na parceria com Raul Sampaio, o samba “Perdoar”, cuja letra em sua defesa traz de volta a confissão da culpa de Dalva feita em “Errei, sim”.

“Perdoar” (Herivelto Martins e Raul Sampaio)

Perdoar, eu não perdoo, não, / Eu estou cada vez mais convencido, / De que aquela

mulher, ai, ai meu Deus! / É um caso perdido. // Perdoar, eu não perdoo, não... //

Vem arrependida, / Implorar perdão, / Volta, erra e por fim, / Inda confessa “Errei Sim!”, / Pobre de mim. // Perdoar, eu não perdoo, não... / Vem arrependida...

Na análise da disputa entre Herivelto e Dalva, percebe-se com uma singularidade peculiar a constatação concreta da observação de Kerbrat-Orecchioni de que “la polémique s’inscrit dans un contexte de violence et passion”156 (op. cit., p. 07). Assim foi, entre 1950 e 1952, de violência e paixão, a relação entre os ex-parceiros de vida e de música; quando os ataques via canção foram esmorecendo e tanto Dalva como Herivelto passaram a gravar e a compor para além da cenografia específica da desunião de um casal separado.

Finalizando essa amostragem das canções que transformaram antigos companheiros de uma relação amorosa em dois verdadeiros antagonistas, é fundamental destacar que a polêmica musical entre Herivelto Martins e Dalva de Oliveira só foi possível pelas características do mercado musical da época, como chama a atenção Pery Ribeiro no relato sobre o desentendimento de seus pais. Ribeiro detalha:

Como os discos eram de 78 rotações (aquelas bolachas pretonas), com apenas duas músicas, era costume os cantores de sucesso lançarem dois discos por ano: um no Carnaval e outro no segundo semestre. No caso de minha mãe, a gravadora, detectando o potencial de mercado que a polêmica musical causava, passou a botar lenha na fogueira, lançando até três discos de Dalva por ano nessa época. Em contrapartida, meu pai lançava outros três

156 “a polêmica se inscreve em um contexto de violência e paixão”. Tradução de minha responsabilidade, direto do original.

discos, assim tínhamos por volta de seis lançamentos deles ao ano, o que mostra que a cada dois meses havia uma música nova para o público adotar e abastecer o clima de guerra entre eles. (RIBEIRO, 2009, p. 127)

Do mesmo modo que afetou a polêmica entre Noel Rosa e Wilson Baptista, mas talvez com menos intensidade, o que o filho de Herivelto Martins e Dalva de Oliveira observa é apenas a constatação da importância dos “meios” na constituição dos discursos, provando que o “mídium não é um simples ‘meio’ de transmissão do discurso, mas que ele imprime um certo aspecto a seus conteúdos e comanda os usos que dele podemos fazer” (MAINGUENEAU, 2002, p. 71).