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Uma proposta de análise da autoria, coautoria, audiência e coaudiência

Sempre pensando na relação de interpenetração entre a situação de enunciação do

discurso verbomusical e a situação de enunciação do gênero canção, sabemos que na música

cantada, assim como no discurso literário, há uma confusão entre o “eu” biográfico e o “eu” “ficcional” do texto canção. Mais do que isso, procurarei mostrar aqui que a questão da autoria na música – quem é responsável pelo texto musical? – e consequentemente de sua audiência envolve uma inter-relação entre diversas subjetividades e alteridades. Almejando abranger essa complexidade entre o “eu” e o “tu” do discurso verbomusical, proponho uma tipologia de análise que inclua um grupo de instâncias subjetivas e intersubjetivas mais ligadas ao texto e um outro grupo relacionado aos sujeitos no mundo. É assim que analiso dois grupos. O primeiro corresponde às instâncias textuais: enunciador e coenunciador,

locutor e colocutor; neste grupo insiro o que Maingueneau aborda como sendo a instância

“inscritor”, o que engloba apenas o lugar do “eu”, ou seja, do enunciador e do locutor. O segundo, às instâncias empíricas: compositor, letrista, melodista, instrumentista, intérprete,

ouvinte, todas evidentemente associadas a uma instância “pessoa”. Todas essas instâncias empíricas correspondem a papéis sociais e é especialmente entre elas que perpassa a autoria,

coautoria, audiência e coaudiência de uma canção. No entanto, é por meio unicamente das

instâncias textuais que essa múltipla relação é possível. O quadro abaixo apresenta a interação entre todas essas instâncias

Quadro 2 - Instâncias de análise na autoria, coautoria, audiência e coaudiência da canção

Textuais Empíricas

EU Autor Coautor Audiência Coaudiência

enunciador (inscritor) locutor (inscritor) a pessoa, o compositor (letrista e melodista) = o orador cancionista * Autor exclusivo a pessoa, o letrista = o coorador cancionista * Coautor 1 a pessoa, o ouvinte público = o auditório particular/público -alvo * Audiência 1 exclusiva a pessoa, o ouvinte público = o auditório universal/público-alvo * Audiência inclusiva ou ampliada TU a pessoa, o melodista = o coorador cancionista * Coautor 2 a pessoa, o ouvinte cancionista = o auditório singular/público- alvo * Audiência 2 especial coenunciador colocutor a pessoa, o instrumentista = o coorador cancionista * Coautor 3 a pessoa, o intérprete = o coorador cancionista * Coautor 4

Fonte: Quadro elaborado pela pesquisadora

As instâncias textuais colocam em diálogo um EU e um TU encontrados (e pressupostos) na materialidade textual: o enunciador, o locutor, o coenunciador e o colocutor, respectivamente. Como vimos no capítulo referente à cena enunciativa e à cenografia, os papéis de enunciador e de coenunciador correspondem respectivamente à representação das posições do eu e do tu instituídos no texto, sempre presentes, mesmo que estes não estejam materialmente indicados na superfície textual. Já por locutor e colocutor considero aqui às

instâncias equivalentes a uma dimensão vocalizada e física do discurso, sendo o primeiro

responsável pelo papel de virtualmente poder emitir o texto, ou seja, colocá-lo em circulação;

e o segundo respondente pelo papel de, também virtualmente falando, poder ouvir o texto transmitido pelo locutor. Do mesmo modo que as instâncias enunciador e coenunciador estão sempre presentes na constituição de todo e qualquer texto, as instâncias locutor e colucutor igualmente o estão, visto que todo texto supõe a sua emissão vocalizada e a sua consequente audição. Já as categorias empíricas abrangem uma quádrupla relação entre o autor (orador), o

coautor (coorador) – subdividido em quatro tipos –, a audiência – dividida em audiência 1 ou

exclusiva, referente ao auditório particular, e audiência 2 ou especial, referente ao auditório

que intitulei de singular, composto pelo alvo da mensagem polêmica – e a coaudiência, correspondente ao auditório universal e por isso chamada de inclusiva ou ampliada. Portanto, as instâncias principais autor e audiência recobrem um conjunto de outras, como indicado no quadro acima.

Todas essas instâncias (textuais e empíricas) são balizadas pelo EU do discurso, que pode ou não ser acompanhado de um outro “eu”, no caso específico da coautoria, mas que sempre enunciam para um TU, que também pode compartilhar esse papel com outro “tu”, o que acontece por exemplo com a existência do que chamo coaudiência. No que se refere propriamente ao discurso polêmico, pode-se pensar ainda na seguinte relação triádica: o EU (orador-agente, acompanhado ou não de um coorador), ao enunciar para um TU (orador- virtual e não auditório prototípico), exibe-se necessariamente a um ELE (auditório particular ou universal). No entanto, a instância “tu”, neste caso o destinatário do discurso polêmico, só ocupará a posição de orador se de fato este reagir a polêmica. Por outro lado, o destinatário da mensagem polêmica será sempre audiência especial do orador polemista. E para abarcar essa função, foi criada a instância de auditório singular, compondo um segundo tipo no grupo de audiência, segundo mostro no quadro acima. Voltarei a essa questão no capítulo 4, sobre o

discurso polêmico.

No conjunto das instâncias textuais e empíricas, algumas correspondem a uma função

no discurso (enunciador, locutor e seus respectivos parceiros); outras a uma atividade profissional (compositor, letrista, melodista, instrumentista, intérprete); outras delas a uma função social, como no caso do ouvinte; e a última equivale a uma distinção do homem em

sua individualidade (a pessoa) ou em sua coletividade (o público).

No que concerne à relação entre a função de autor e a de coautor, acredito na importância de se analisar o papel de outros sujeitos na autoria de uma canção, pois como lembra Hirschi (2008, p. 25), é preciso “considérer l’oeuvre chanson globalement, comme une

rencontre entre un texte, une musique et une interprétation”62, o que esboço com o exemplo do papel “intérprete” e do papel “instrumentista”. Muitas vezes a atuação do intérprete é definitiva no lugar dado à canção ou à obra de um compositor. Assim, a “personalidade” do sujeito que interpreta sobrepõe-se à “personalidade” do sujeito que compõe. Pode-se pensar, assim, no caso de Elis Regina, que, pela forma como registrou vocalmente e em termos de arranjo musical a canção de Belchior “Como nossos pais”, implementou fortemente sua marca singular (“dicção”) de cantora na música, podendo ser classificada, inclusive, como coautora da canção, a qual foi composta primeiramente por Belchior. A intérprete Elis, no cenário da música brasileira é um caso modelar para mostrar aquilo que Barthes intitulou de “o grão da voz”. “Le grain c’est le corps dans la voix qui chante, dans la main que écrit, dans le membre qui exécute”63 (BARTHES, 1982, p. 243), reflexão que também aponta para os diversos gestos e sujeitos envolvidos no processo de produção de uma canção.

No que se refere ao lugar do instrumentista na constituição da obra de um compositor/cantor, cito apenas o exemplo de Luiz Melodia, que tem um mesmo acompanhante em shows e em discos desde o início da sua carreira, o guitarrista e violonista Renato Piau, o que certamente interferiu na constituição identitária de Luiz Melodia. Referidos esses dois exemplos, é necessário que se ratifique que um papel, sobrepondo-se ou não ao outro, não elimina o fato de que aquilo que existe é um processo de cooperação

autoral.

No sentido da múltipla autoria de uma canção popular, ela pode ser vista inclusive como “uma canção sem autor” – ideia paradoxal, pois cada texto e cada obra tem seu autor –, pela possibilidade de uma não identificação imediata por parte do auditório do sujeito criador da canção. Entendida dessa forma, a canção enquanto texto é imbuída de uma grande autonomia discursiva, apontando para o fato de que a ideia de obra pode ser concebida como exterior à ideia de autor. Se compararmos o discurso verbomusical com o cinematográfico, o compositor pode ser associado ao roteirista ou diretor do filme, ficando os dois nos bastidores; bem como o intérprete, ao ator protagonista, tendo os dois o papel principal perante o público. Nos dois casos, a canção e o filme são os produtos retórico-discursivos mais evidentes ao auditório. E é por isso que o auditório universal conhece o filme E o vento levou, bem como a canção “Marcas do que se foi”, não importando saber que Victor Fleming é diretor do célebre

62“considerar a obra canção globalmente, como um encontro entre um texto, uma música e uma interpretação”. Tradução de minha responsabilidade, direto do original, mantendo os destaques do autor.

63“O grão é o corpo na voz que canta, na mão que escreve, no membro que executa”. Tradução de minha responsabilidade, direto do original.

filme e Tavito, Paulo Sérgio Vale, Márcio Moura, José Jorge, Ribeiro e Ruy Mauriti são os compositores da canção tocada no Brasil em todos os finais de ano.

Na produção da canção, o intérprete é o sujeito diretamente identificado pelo público como responsável pela música que canta. E é exatamente por isso que a grande maioria dos programas radiofônicos de música popular somente divulgam os nomes dos cantores quando anunciam as canções a serem tocadas. Esse gesto retórico comandado pelos apresentadores de rádio tem uma consequência imediata na esfera de circulação e divulgação dos artistas, que implica nos modos de reação do auditório, abrangendo outros gestos retóricos: comprar e ouvir o álbum do intérprete, assistir aos espetáculos do intérprete, dentre outros. Dificilmente o ouvinte que escuta no rádio a canção “Você não me ensinou a te esquecer”, com Caetano Veloso, vai procurar primeiro conhecer a obra do autor da música cantada por Caetano, ou seja, o compositor Fernando Mendes. Mas aqui é preciso destacar que a atitude do auditório particular de Caetano será diferente da atitude do auditório particular de Fernando Mendes. Esse último poderá passar inclusive a rememorar outras canções de Fernando Mendes a partir do gesto de Caetano Veloso ao interpretar uma canção do compositor, atualmente ignorado pelas mídias nacional e regionais.

É verdade que é preciso relativizar o interesse primeiro pelo intérprete ou pelo autor, ou o peso do valor de cada uma dessas instâncias no entendimento do público. O que significa que em alguns gêneros musicais, o papel do autor é mais ou menos forte. No caso, por exemplo, das músicas identificadas como Bossa Nova ou MPB, o autor tem um peso bastante forte. Já nas músicas dos gêneros forró comercial (em contraposição ao forró de raiz), neossertanejo, pagode e funk, o peso do autor é bastante fraco. A partir dessa constatação de que há diferentes graus de singularização do autor-compositor, pode-se pensar em uma classificação com base na noção grandes gêneros (os valorizados pelos sujeitos da comunidade e ligados a uma estética dominante) e gêneros menores (os que geram uma discussão com relação à sua valoração). Pode ser postulada ainda uma categoria intermediária que englobe os gêneros médios (aqueles que geram uma discussão com relação à sua valoração, mas que são valorizados por uma ampla classe de sujeitos da comunidade que aprecia e/ou emprega os grandes gêneros). É o que mostro abaixo a título de exemplo e levando em conta o discurso verbomusical brasileiro:

a) Entre os grandes gêneros, temos: Bossa Nova, MPB, forró tradicional, choro; b) Entre os gêneros menores: forró eletrônico, pagode, funk carioca, axé-music; c) Entre os gêneros médios: funk americano, o brega, a música cafona.

Sem entrar numa discussão do tipo a “música boa” é singular e a “música ruim” não o é, é consenso que nos campos discursivos e posicionamentos há gêneros mais ou menos

privilegiados. E fica aberta a querela colocada em muitos estudos e análises críticas sobre algumas produções musicais e suas características formais que as tornariam mais complexas ou singulares do que outras. Ao analista do discurso verbomusical, interessa, porém, saber não quais as obras mais singulares, mas verificar como se manifestam as mais diferentes singularizações em cada gênero musical.

Condensando os propósitos da tese com a noção de autoria na música, defendo que o próprio gesto de autoria – egoísta e egocêntrico – é retórico e argumentativo. Nele tudo o que importa é a vontade do autor (respondente e ministro64 do texto, como destaca Maingueneau, 2006d e 2010a) de persuadir e convencer o auditório. É por esse gesto (investimento) mesmo (o ato de pegar uma caneta, de compor uma canção, de cantar, de gravar um disco, de se apresentar como compositor) que o sujeito cancionista posiciona-se e constrói uma identidade. Essa identidade só será construída a partir da relação direta entre o autor e o coautor e a sua audiência e coaudiência. Vimos acima que a “audiência 1” está sendo entendida como equivalente ao auditório particular do orador cancionista, e por isso o público-alvo pode ser chamado também de audiência exclusiva. Já o termo “coaudiência” abrange o auditório universal de um cancionista, cujo público-alvo pode ser nomeado como audiência inclusiva ou ampliada. Para exemplificar essas duas noções, pode-se pensar em dois tipos de ouvinte diametralmente opostos: aquele que é fã única e exclusivamente do cantor Roberto Carlos, e aquele que gosta de música, sem fazer distinção de gêneros e de artistas. O primeiro seria então um elemento da audiência exclusiva, e o segundo de uma audiência inclusiva ou ampliada. A depender dos procedimentos argumentativos empregados na captação da adesão do auditório do discurso verbomusical, o orador cancionista pode ou não manter ou ampliar cada uma dessas audiências, a partir das relações polêmicas instauradas com outros cancionistas. Esse é o assunto do próximo subcapítulo.

64Uso “ministro” no sentido religioso, como “aquele que exerce um ministério, como pregar, administrar os sacramentos etc.” (HOUAISS).

3.4 Técnicas argumentativas em defesa de uma posição identitária ou contra a pessoa