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O embate entre os sambistas Noel Rosa e Wilson Baptista foi iniciado nos primeiros anos da década de 1930, quando o ainda novato Wilson Baptista compôs o samba “Lenço no pescoço”, primeiramente assinado pelo desconhecido Mário Santoro (que se tratava de um pseudônimo de Baptista, segundo se viria saber mais tarde), e gravado por Sílvio Caldas na RCA Victor em 18 de julho de 1933. A composição, considerada um autorretrato de Baptista, ao investir no ethos do malandro, tipo social que circulava pelas ruas do famoso bairro Lapa, no Rio de Janeiro, cidade onde os dois compositores moravam, fazia uma espécie de apologia ufanista à malandragem carioca em contraposição ao ato de trabalhar. Vejamos abaixo a letra da composição, transcrita em sua totalidade144, para facilitar a compreensão de toda a querela:

“Lenço no pescoço” (Mário Santoro / Wilson Baptista)

Meu chapéu de lado, tamanco arrastando / Lenço no pescoço, navalha no bolso / Eu

passo gingando, provoco e desafio / Eu tenho orgulho de ser tão vadio / Sei que eles

falam do meu proceder / Eu vejo quem trabalha viver no miserê / Eu sou vadio porque tive inclinação / Eu me lembro, era criança, / Tirava samba-canção / Comigo,

não / Eu quero ver quem tem razão

144 Neste capítulo, todas as letras das canções serão transcritas integralmente, com destaques em itálico nos trechos comentados.

Apesar da briga que se seguiria, chama a atenção que no mesmo ano de lançamento da música, especificamente em julho de 1933, os dois compositores também “dividiram” um disco. No álbum em 78 rotações lançado pela Odeon, foi gravada a canção “Desacato”, de Wilson Baptista, Murillo Caldas e Paulo Vieira, como lado B da composição “Feitio de oração”, composta por Noel Rosa e Vadico, as duas com interpretação de Francisco Alves e Castro Barbosa.

No mesmo ano da canção “Lenço no pescoço”, dialogando polemicamente com a canção de Wilson Baptista, Noel Rosa decidiu fazer um samba questionando-a verso a verso, bem como sua malandragem, a qual na visão do sujeito enunciador da segunda canção pode ser caracterizada como “derrotista”. É assim que nasce “Rapaz folgado”, gravado anos depois por Aracy de Almeida145, na qual o enunciador inverte toda a imagem ética positiva da canção de Wilson e a substitui pelo seu espelho, qual seja a imagem negativa de um “rapaz folgado”, livre de obrigações, como se constata abaixo:

“Rapaz folgado” (Noel Rosa)

Deixa de arrastar o teu tamanco / Pois tamanco nunca foi sandália / E tira do pescoço o lenço branco / Compra sapato e gravata / Joga fora essa navalha / Que te

atrapalha // Com chapéu do lado deste rata / Da polícia quero que escapes / Fazendo um samba-canção / Já te dei papel e lápis / Arranja um amor e um violão //

Malandro é palavra derrotista / Que só serve pra tirar / Todo o valor de um sambista / Proponho ao povo civilizado / Não te chamar de malandro / E sim de rapaz folgado Existem duas versões para a resposta de Noel a Baptista. A primeira é a de que Noel Rosa ficara descontente com a associação do sujeito sambista ao “malandro”, versão originada na biografia de Noel feita pelo pesquisador e radialista Almirante146, que realizara em 1951 uma série de programas, intitulada No tempo de Noel Rosa, nos quais abordou a polêmica entre os dois compositores. No entanto, essa história é desmentida por Rodrigo Alzuguir, biógrafo de Wilson Baptista, no texto que escreveu sobre o assunto para o blog do Instituto Moreira Salles, no qual revela que a polêmica teria surgido por causa de uma mulher. O pesquisador conta que, antes de lançar “Lenço no pescoço”, Wilson desacatara Noel por ter conquistado “o coração de uma dançarina do Dancing Apollo (situado à Rua Mem de Sá, 34, na Lapa) que Noel também andara assediando”, e mostra inclusive o apreço do compositor da Vila pela figura do malandro, como lemos a seguir:

145 A canção foi gravada somente depois da morte de Noel Rosa, em 28 de abril de 1938, por Aracy de Almeida pela RCA Victor no disco de n° 34.368.

Logo quem. Amigo de malandros perigosos como Baiaco, Meia Noite e Zé Pretinho, Noel Rosa – para desespero da mamãe D. Martha – vivia a léguas do politicamente correto (conceito que, aliás, nem existia). Seu fascínio pela malandragem está presente em sambas como “Capricho de rapaz solteiro”, gravado por Mário Reis no mesmo ano em que Sílvio Caldas gravou o “Lenço no pescoço” de Wilson: “Nunca mais essa mulher / Me vê trabalhando / Quem vive sambando / Leva a vida para o lado que quer / De fome não se morre / Nesse Rio de Janeiro / Ser malandro é um capricho / De rapaz solteiro”. (ALZUGUIR, Site do Instituto Moreira Salles, 10 set. 2012)

O livro Wilson Baptista e sua época, de Bruno Ferreira Gomes, que traz uma série de entrevistas feitas com o compositor, também sustenta a versão de Alzuguir, dando diferentes detalhes e registrando o nome de outro cabaré da Lapa, de acordo com as próprias palavras de Wilson Baptista lidas abaixo na descrição do autor:

Segundo Wilson, Noel andava de olho numa jovem morena do Cabaret Novo México, mas ele chegou primeiro ao coração da moça. O Poeta da Vila não gostou da façanha de Wilson. (...). Wilson continuou a narrativa dizendo ter ficado “dono” da tal morena que tanto interessou ao autor de “Com que roupa?” Disse Wilson que ele andou perguntando: quem era “aquele rapaz” que fazia corte à morena da Lapa. Disseram-lhe que se tratava de um sambista, autor de (...) “Lenço no pescoço”, gravado recentemente por Sílvio Caldas. Não se sabe se Noel já havia ouvido o samba ou se procurou ouvi-lo. O fato é que o analisou muito bem. (GOMES, 1985, p. 54)147

Fica a dúvida, então, se ao responder polemicamente a Wilson com outra canção, Noel tinha se sentido atacado como pessoa ou como compositor. De todo modo, a tréplica de Wilson veio logo a seguir por meio da canção “Mocinho da Vila”, gravada apenas em 1953, cuja letra dizia, ironicamente no breque final, ao “mocinho” da Vila (e não ao “rapaz”), “modéstia à parte, eu sou rapaz”; além de aconselhar a Noel para tomar conta de seu microfone e deixar quem era malandro em paz. Para a melhor compreensão da semântica global da canção “Rapaz folgado”, é fundamental destacar que, de acordo com a historiografia da briga musical entre os dois compositores, a expressão “rapaz folgado” tinha, à época, uma conotação relativa à não masculinidade, fator que pode ter desencadeado sensivelmente essa resposta de Wilson Baptista a Noel Rosa com “Mocinho da Vila”, numa referência explícita ao jovem Noel e ao seu querido bairro Vila Isabel. Na letra, reproduzida abaixo, Baptista critica de uma só vez o compositor e o seu local de nascimento (o da pessoa), além de retomar, autocitando um de seus versos, na canção fundadora da polêmica, na qual Baptista compôs uma espécie de canção-identidade148. Vejamos:

147 Confrontar o capítulo “Músicas e polêmicas”, p. 54-67.

148 Conceito cunhado na realização da tese para dar conta dessa especificidade do gênero musical canção. A noção reaparece em outros pontos da análise.

“Mocinho da Vila” (Wilson Baptista)

Você que é mocinho da Vila / Fala muito em violão, barracão e outras transas mais /

Se não quiser perder um nome / Cuide do seu microfone e deixe / Quem é malandro

em paz / Injusto é seu comentário / Falar de malandro quem é otário / Mas malandro

não se faz / Eu de lenço no pescoço desacato e também tenho o meu cartaz /

(Modéstia a parte eu sou rapaz)

Em seguida, referindo-se diretamente ao título da letra de Baptista e de certo modo o endossando, Noel lança “Feitiço da Vila”, parceria com Vadico gravada na Odeon149 por João Petra de Barros em 22 de outubro de 1934, na qual assume, usando a mesma expressão escolhida por Wilson na parte final do samba, “modéstia à parte, eu sou da Vila”. Em “Feitiço da Vila”, Noel Rosa adota o argumento do seu adversário Wilson Baptista contra ele mesmo, ao abordar a topografia da Vila Isabel, dessa vez de forma absolutamente positiva, destacando o caráter de firmeza de seus moradores logo no primeiro verso. Vejamos:

“Feitiço da Vila” (Noel Rosa e Vadico)

Quem nasce lá na Vila / Nem sequer vacila / Ao abraçar o samba / Que faz dançar

os galhos, / Do arvoredo e faz a lua, / Nascer mais cedo. // Lá, em Vila Isabel, /

Quem é bacharel / Não tem medo de bamba. / São Paulo dá café, / Minas dá leite, /

E a Vila Isabel dá samba. // A vila tem um feitiço sem farofa / Sem vela e sem vintém / Que nos faz bem / Tendo nome de princesa / Transformou o samba / Num feitiço

descente / Que prende a gente // O sol da Vila é triste / Samba não assiste / Porque

a gente implora: / “Sol, pelo amor de Deus, / não vem agora / que as morenas / vão logo embora” // Eu sei tudo o que faço / sei por onde passo / paixão não me aniquila /

Mas, tenho que dizer, / modéstia à parte, / meus senhores, / Eu sou da Vila!

Wilson Baptista, reagindo à canção de Noel e ao grande sucesso obtido por ela, responde novamente, de forma a desmenti-lo, com “Conversa fiada”, à época apenas lançada via rádio pelos cantores Luiz Barbosa, Mário Moraes e Léo Vilar, mas não gravada, a qual põe em questão já na abertura da música a imagem positiva da Vila criada por Noel e Vadico, além de retomar a crítica de “ser folgado” feita por Noel a Wilson na composição “Rapaz folgado”. No acabamento da sua canção, o enunciador de Wilson inverte os papéis e chama os moradores da Vila de “folgados”, como se pode conferir na transcrição abaixo:

“Conversa fiada” (Wilson Baptista)

É conversa fiada dizerem que o samba na Vila tem feitiço / Eu fui ver para crer e não vi nada disso / A Vila é tranquila porém eu vos digo: cuidado! / Antes de irem dormir

deem duas voltas no cadeado / Eu fui à Vila ver o arvoredo se mexer e conhecer o

149 Número do disco: 11.175.

berço dos folgados / A lua essa noite demorou tanto / Assassinaram o samba / Veio

daí o meu pranto

A partir da posição questionadora de Wilson Baptista, mais uma vez Noel Rosa desafia Wilson, defendendo “o feitiço” da Vila, ao mesmo tempo em que julga o discurso do outro compositor como tendo sido “infeliz”, bem como ao sujeito que disse como aquele que “não sabe o que diz”. É assim que Noel compõe o clássico150 “Palpite infeliz”, gravado em disco por Aracy de Almeida na RCA Victor151 em 17 de dezembro de 1935, e considerado a resposta à canção “Conversa fiada” de Baptista, cujo diálogo fica claro pela cenografia das duas canções, que colocam em primeiro plano as características de bairros cariocas, a partir da comparação com o bairro Vila Isabel:

“Palpite infeliz” (Noel Rosa)

Quem é você que não sabe o que diz? / Meu Deus do céu, que palpite infeliz! / Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira, / Oswaldo Cruz e Matriz / Que sempre souberam muito bem / Que a Vila não quer abafar ninguém, / Só quer mostrar que faz samba também // Fazer poema lá na Vila é um brinquedo / Ao som do samba dança até o arvoredo / Eu já chamei você pra ver / Você não viu porque não quis / Quem é você que não sabe o que diz? // A Vila é uma cidade independente / Que tira samba mas

não quer tirar patente / Pra que ligar a quem não sabe / Aonde tem o seu nariz? /

Quem é você que não sabe o que diz?

Apesar de o verso de Noel Ao som do samba dança até o arvoredo parecer, por meio da heterogeneidade mostrada não marcada, dialogar diretamente com o verso de Wilson Eu fui à Vila ver o arvoredo se mexer, segundo Alzuguir (2012), compositores do Salgueiro afirmam que o samba de Noel era destinado a Antenor Gargalhada, que também tivera algumas divergências com Noel Rosa.

Depois de um número considerável de canções, a provocação entre os dois compositores não havia chegado ao fim e estava por vir o momento mais violento da desavença pessoal-musical entre Noel Rosa e Wilson Baptista. Foi aí que surgiu, em resposta direta a “Palpite infeliz”152, a agressiva “Frankestein da Vila”, numa referência explícita no

150 Ao usar o termo “clássico” como substantivo ou adjetivo, penso em obras que servem como modelo e referência, que são exemplares de um gênero mais abrangente. Parafraseando e ampliando a definição de Borges no texto “Sobre os clássicos” do livro Otras inquisiciones, que se refere basicamente às obras literárias, julgo como “um clássico” não aquela obra “que necessariamente possui estes ou aqueles méritos”; mas sim uma obra “que as gerações de homens, urgidas por razões diversas”, consomem “com prévio fervor e com uma misteriosa lealdade”. Por adotar “clássico” nesse sentido, ao me referir a produções que seguem cânones estabelecidos previamente, como as de Mozart e Beethoven e as da Escola Clássica Vienense, por exemplo, as considero como “música erudita” e não como “música clássica”.

151 Número do disco: 34.007.

152 Confrontar os versos “E depois não vá dizer / Que eu não sei o que digo”, de Baptista, e “Quem é você que não sabe o que diz?”, de Noel.

título e na letra ao queixo atrofiado que causava tanto constrangimento a Noel Rosa (por isso aqui se presencia a atuação de um argumento ad personam), e que mais tarde iria fazer o seu autor renegá-la por arrependimento. A composição, talvez motivada por ter um alto teor ofensivo que atrairia a atenção dos ouvintes dos dois artistas, apesar de não ter sido gravada em disco, foi amplamente difundida nas rádios na interpretação do grupo Os Quatro Diabos. Observemos a letra a seguir:

“Frankestein da Vila” (Wilson Baptista)

Boa impressão nunca se tem / Quando se encontra um certo alguém / Que até parece o Frankenstein / Mas como diz o rifão: por uma cara feia perde-se um bom

coração / Entre os feios és o primeiro da fila / Todos reconhecem lá na Vila / Essa

indireta é contigo / E depois não vá dizer / Que eu não sei o que digo / Sou teu amigo No combate verbomusical entre os dois sambistas, o ato de Baptista foi o golpe final, pois Noel simplesmente calou diante da composição que o afetava sensivelmente. Segundo Baptista, “Noel se apavorou com a ideia de chamá-lo de monstro e ‘pediu soda’” (GOMES,

op. cit., p. 57), ou seja, teria “reconhecido a sua própria derrota”, segundo a definição da expressão “pedir soda”, registrada por Houaiss. O curioso é que após tantas idas e vindas, a polêmica foi encerrada pelo gesto retórico do acordo, representado por uma composição em parceria surgida pela reação harmônica de Noel Rosa a outra composição de Baptista que o atacava. Inicialmente Wilson compôs o samba “Terra de cego”, também não gravado, sendo somente divulgado nas rádios pelos cantores Léo Vilar, Mário Moraes e pelOs Quatro Diabos, em que fazia novamente referência litigiosa a Noel Rosa. No entanto, a partir da mesma melodia de Wilson, Noel Rosa escreveu outra letra, nomeada “Deixa de ser convencida”, o que levantou a bandeira branca entre os dois sambistas. Acredita-se que a parceria seja dirigida a uma morena do Dancing Apollo, que anos antes havia sido disputada pelos dois. Gomes também relata o encontro de pazes entre os compositores: “Como “Terra de cego” já estava com a melodia pronta, ambos chegaram a um acordo que Noel modificaria a letra, tirando-lhe a agressividade e mudando mesmo o tema” (op. cit., p. 58). Abaixo as duas versões:

“Terra de cego” (Wilson Baptista)

Perca a mania de bamba / Todos sabem qual é / O teu diploma no samba / És o

abafa da Vila, eu bem sei / Mas na terra de cego / Quem tem um olho é rei / Pra não

terminar a discussão / Não deves apelar / Para uma briga na mão / Em versos podes bem desacatar / Pois não fica bonito / Um bacharel brigar

“Deixa de ser convencida” (Wilson Baptista e Noel Rosa)

Deixa de ser convencida / Todos sabem qual é / Teu velho modo de vida / És uma perfeita artista, eu bem sei / Também fui do trapézio / Até salto mortal no arame eu já dei / (muita medalha eu ganhei) // E no picadeiro desta vida / Serei o domador / Serás a fera abatida / Conheço muito bem acrobacia / Por isso não faço fé / Em amor em amor de parceria / Muita medalha eu ganhei

Porque Wilson, logo depois, viajou para Buenos Aires, como cantor da orquestra baiana Os Almirantes Jonas, e depois de dois anos fora direto para São Paulo, para participar de programas das rádios Record e Tupi, não mais encontrou Noel, dando fim à parceria. Mas também à polêmica. Com a morte de Noel, em 1937, Wilson, ainda em São Paulo, compôs um samba para homenagear o colega: “Grinalda”, interpretado ao vivo no rádio, mas nunca gravado. A partir daí, Wilson passa em seus depoimentos públicos a reverenciar Noel como seu ídolo. Foi assim que o compositor, falecido em 1968, citou Noel, dessa vez de forma positiva, em oito sambas: “Terra boa” (1942), “Waldemar (Quero um samba)” (1943), “Chico Viola” (1952), “Garota dos discos” (1952), “Skindô” (1962), “Parabéns, Rio” (1965), “A nova Lapa” (1968) e “Transplante de coração” (1968).

Avaliando a disputa entre Noel e Baptista, Alzuguir comenta que o radialista Almirante, nos seus programas No tempo de Noel Rosa153 cria “no ringue da Polêmica”, ao tirar de cena a dançarina do Apollo, um “canto claro” para Noel e ao mesmo tempo um canto “escuro” que viria a ser ocupado por Wilson Baptista, transformado em uma espécie de vilão da polêmica após a morte de Noel.

A participação de Wilson num dos capítulos de No tempo de Noel Rosa, com direito a apressada palinha de seus maiores sucessos, é, ironicamente, um dos poucos registros de sua voz falada. Ele vestia ali, com indevida humildade, uma carapuça aderente, vendendo-se como um antiNoel. E o que tinha sido apenas uma chanchada entre colegas na disputa por um rabo-de- saia, restrita à galhofa das rodas de compositores, ganharia, com o passar dos anos, cores de um duelo quase épico, rendendo análises sociológicas profundas que contrapunham Vila Isabel x Estácio, Branco x Negro, Civilização x Malandragem. Num processo similar ao de Carmen Miranda (dadas as roliudianas proporções), em que a Carmen-cantora foi ofuscada pelo brilho de seus arranha-célicos turbantes, o Wilson-craque-da- composição foi sendo empurrado para a sombra pelo patético Wilson-vilão- da-Polêmica. (op. cit.)

É interessante constatar que a briga entre os dois compositores, além de ter sido usada pelos jornalistas e pela mídia, foi explorada ao máximo pela futura indústria que em breve

153 A contenda entre os cancionistas Noel Rosa e Wilson Baptista também foi comentada no livro de Almirante

viria nascer o disco de dez polegadas, em meados dos anos 50. A ideia de registrar em disco a polêmica entre os dois compositores surgiu já nos primeiros anos da década. A Revista do

rádio anunciou em 1953 que Wilson Baptista planejava “regravar os desafios que fez com o

saudoso Noel Rosa”. E já no final do ano seguinte, segundo o Diário Carioca de novembro de 1954, o título do disco foi divulgado. E foi assim que em 1956 a gravadora Odeon lançou com um total de nove faixas154 o disco Polêmica, que traz os cantores Francisco Egydio e Roberto Paiva emprestando suas vozes a Noel Rosa e a Wilson Baptista, respectivamente, cuja capa reproduzo abaixo, junto com o anúncio do disco pela gravadora.

Imagem 1 - Capa do disco Polêmica (Odeon, n° MODB 3003), com caricaturas de Noel Rosa e Wilson Baptista assinadas por Nássara, parceiro musical de ambos

Fonte: Reprodução do site do Instituto Moreira Salles

154 Faixas do disco:

Lado A - 01. “Lenço no pescoço” (Wilson Baptista) com Roberto Paiva; 02. “Rapaz folgado” (Noel Rosa) com Francisco Egydio; 03. “Mocinho da Vila” (Wilson Baptista) com Roberto Paiva; 04. “Palpite infeliz” (Noel Rosa) com Francisco Egydio.

Lado B - 01. “Frankstein da Vila” (Wilson Baptista) com Roberto Paiva; 02. “Feitiço da Vila” (Feitiço sem farofa)” (Noel Rosa e Vadico) com Francisco Egydio; 03. “Conversa fiada” (Wilson Baptista) com Roberto Paiva; 04. “João ninguém” (Noel Rosa) com Francisco Egydio; 05. “Terra de cego” (Wilson Baptista) com Roberto Paiva. Todos os sambas tiveram os registros com orquestra.

Imagem 2 - Anúncio do disco Polêmica em jornais de 1956

Fonte: Reprodução do site do Instituto Moreira Salles

O biógrafo de Wilson critica ainda que o sambista, apesar de uma obra com “cerca de quinhentas músicas gravadas (repleta de sucessos), cadernos transbordando de músicas inéditas e mil histórias para contar” (op. cit.), teria a partir do lançamento do álbum Polêmica ficado marcado para o grande público definitivamente como o polemista contrário a Noel Rosa. Assim, todas as vezes em que Baptista era convidado pela imprensa, para participar de programas de rádio e de TV, ou para fazer matérias escritas, sempre era exigido a responder às mesmas perguntas e a cantar os sambas da Polêmica. A imagem abaixo registra um desses momentos em que a imprensa explora esse papel de polemizador em Wilson Baptista.

Imagem 3 - Wilson Baptista em fotografia de divulgação do disco Polêmica, em 1956

Fonte: Reprodução do site do Instituto Moreira Salles

Ao analisar a construção identitária do compositor Wilson Baptista, e mais do que isso