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2.2 Investimentos posicionais

2.2.2 Cena enunciativa e Cenografia

Passo agora ao segundo tipo de investimento posicional. Se toda prática discursiva está ligada a um contexto, no qual um sujeito se posiciona dentro de um campo discursivo, seu enunciado também implicará um “contexto”, o qual abrange quatro elementos fundamentais: um locutor, que se dirige a um interlocutor, inscrito em um espaço e em um tempo dados. Para dar conta da situação geral de enunciação de um discurso, Maingueneau

(2001 [1993], p. 121-135; 2002, p. 85-93) postula o conceito de cena enunciativa, que integra três outras cenas imbricadas, quais sejam a cena englobante, a cena genérica e a

cenografia.

A cena englobante “atribui ao discurso um estatuto pragmático, ela o integra em um tipo” (MAINGUENEAU, 2006b, p. 67) de discurso, que pode ser publicitário, administrativo, filosófico, político, jornalístico, verbomusical etc. Quando alguém recebe na rua um texto do gênero panfleto, por exemplo, deve interpretar se ele pertence ao tipo de discurso religioso, político ou publicitário, ou seja, o processo de interpretação aqui envolve a resolução da seguinte questão: em que cena englobante o leitor deverá se colocar para “ler” o texto. Quando alguém vai a um show no qual o artista é um padre e vê o religioso dançando no palco, certamente o ouvinte não estranhará o gesto, pois está dentro da cena englobante verbomusical que o autoriza. A mesma reação, ao contrário, não aconteceria se o ouvinte passasse a ocupar o papel de um fiel durante uma missa e observasse a ação da dança feita pelo mesmo sujeito durante a leitura do evangelho. A reação é oposta nesse caso, pois a cena englobante religiosa não aceita de modo geral a dança.

A cena genérica “é a do contrato associado a um gênero de discurso” (op. cit.); relaciona-se ao tipo de gênero particular empregado para a construção de qualquer discurso: uma aula, uma conversa, uma missa, um bilhete, uma apresentação musical, uma canção etc. Sabe-se que todos os gêneros implicam uma cena determinada, que preestabelece papéis para os interlocutores, circunstâncias, um dado suporte, uma maneira de circulação, um objetivo etc. Entrar na cena genérica da canção e do discurso verbomusical, por exemplo, já “obriga” o ouvinte a cumprir uma série de funções discursivas, como as de escutar músicas, comprar álbuns, ir a shows, assistir a programas de TV, pedir autógrafos, colecionar fotos dos artistas etc.

Essas duas primeiras cenas configuram o que pode ser chamado na visão de Maingueneau de quadro cênico do discurso, dentro do qual a palavra pode ser entendida em última instância como uma mise-en-scène de um conteúdo. Nesse sentido, a cena englobante configura-se como um grande quadro na esteira do qual se encontram os gêneros dos discursos (ou a cena genérica), que correspondem sobretudo às normas que serão empregadas pelos sujeitos no interior desse quadro. Por intermédio dele é que se definirá um espaço discursivo onde o enunciado adquirirá sentido, a partir de sua necessária legitimação pelo sujeito do discurso, obtida pela articulação entre o discurso e os modos de encená-lo. “A cena de fala não pode, portanto, ser concebida, como um simples quadro, uma decoração, como se o discurso sobreviesse no interior de um espaço já construído e independente desse discurso.

Ela é constitutiva dele” (MAINGUENEAU, in: MAINGUENEAU; CHARAUDEAU, 2004, p. 95, com destaques de minha responsabilidade).

Porém, no processo discursivo efetivo, não é diretamente com esse quadro cênico que o destinatário de um texto ou de uma obra se depara, mas sim com uma cenografia, que “tem por função passar a cena englobante e a cena genérica para o segundo plano” (op. cit., p. 96). A cenografia é uma cena não imposta nem pelo tipo, nem pelo gênero de discurso, “mas construída pelo próprio texto no interior de um enunciado: assim, um sermão pode ser enunciado através de uma cenografia “professoral, profética, amigável etc.” (MAINGUENEAU, 2006b, p. 67). Bem como uma canção pode instaurar uma cenografia erótica, romântica, eufórica etc. Sobre o conceito, Maingueneau atenta que o elemento -grafia não se relaciona de nenhum modo à oposição entre os suportes orais e gráficos, mas a um processo de fundação, “à inscrição legitimante de um texto estabilizado” (2001 [1993], p. 123).

É por meio da fundação de uma cenografia que o discurso constrói um mundo baseado em referentes “de uma realidade” que legitima sua própria enunciação. A cenografia refere-se assim à instauração ao nível do texto de uma cena, da qual são elementos o enunciador, o

coenunciador, o lugar e o tempo. É preciso atentar antes de tudo que a situação de

enunciação aqui se relaciona “não às circunstâncias empíricas da produção do enunciado, mas ao foco de coordenadas que serve de referência diretamente ou não à enunciação” (op. cit., p. 121). Portanto, o enunciador e o coenunciador, considerados os “protagonistas da enunciação”, são representações de posições referentes, respectivamente, ao eu e ao tu estabelecidos no texto e nem sempre marcados. Já a topografia e a cronografia constituem- se, respectivamente, pela representação de um lugar e de um momento, nos quais se desenrola a enunciação representada no texto.

Maingueneau considera que a cenografia pode ser caracterizada, na situação de enunciação, por meio de vários elementos (2001 [1993], p. 125 e 126), dentre os quais:

a) Mostrada através de indícios textuais variados;

b) Por indicações paratextuais: um título, a menção de um gênero (“crônica”, “lembranças”), um prefácio do autor;

c) Por indicações explícitas nos próprios textos que reivindicam o suporte de cenários preexistentes, ou seja, baseando-se em cenários de enunciação já validados de outros gêneros literários, de outras obras, de situações de comunicação não literárias etc.

O pesquisador adverte que as cenas validadas não significam “valorizadas”, mas já instaladas no universo de saber e de valores do auditório, isto é, na memória coletiva do público. Nesse caso, a cenografia do texto se fundamenta em cenas fundadoras, isto é, em situações de enunciação anteriores que a cena atual utiliza para a repetição e da qual retira boa parte da sua legitimidade (MAINGUENEAU, 1997 [1987], p. 42).

Pode-se dizer que essa metáfora teatral da cena enunciativa foi postulada por Maingueneau para referir-se à maneira pela qual o discurso constrói uma representação de sua própria situação de enunciação, mas também com o objetivo maior de mostrar que todo discurso é uma construção destinada a justificar sua própria enunciação. Assim, ao articular essas três cenas, o teórico mostra que toda enunciação é sempre uma justificativa de sua própria existência, o que abrange aí, em todos os momentos, uma atividade de legitimação pelos sujeitos. Logo, na análise de qualquer prática discursiva que passe pelo elemento verbal, deve ser considerada sua situação de enunciação, compreendida como uma representação complexa da enunciação. O objetivo, então, na parte analítica da tese, é investigar como o cancionista Belchior dá legitimidade ao seu discurso, por meio das cenografias que mobiliza.

No contexto específico dos discursos artísticos, no qual o verbomusical se inclui, é importante reforçar que a cenografia não é apenas um contexto que emerge desse discurso, mas sim um dispositivo de comunicação por meio do qual estão entrelaçados a obra, a condição do autor, o lugar e o momento em que essa obra foi produzida. “A cenografia constitui um articulador privilegiado da obra e do mundo, sendo ao mesmo tempo condição e produto, ao mesmo tempo ‘na’ obra e ‘fora’ dela” (op. cit., p. 121). Tomando essa característica como base, vemos então que existe uma relação indissociável entre as cenografias estabelecidas na situação de enunciação do discurso verbomusical e os posicionamentos tomados pelos autores desse discurso, os cancionistas.

Considerando que todo discurso materializa sua cenografia por meio de um gênero de discurso, no quadro maior de um tipo discursivo prévio, é preciso fazer uma relação entre a cenografia e o gênero de discurso, pois nem todos os gêneros discursivos são suscetíveis de suscitar uma cenografia. Maingueneau (2002, p. 88 e 89) atenta que, a depender do gênero textual, haverá a possibilidade de uma maior ou uma menor abertura a uma “variação de cenografias”. Por isso, o teórico distribui os gêneros de discurso em três pólos extremos quanto à variação das cenografias. Vejamos:

a) Há tipos de discursos, pouco numerosos, cujos gêneros implicam cenas enunciativas estáveis, como é o caso da correspondência administrativa, da lista telefônica, das receitas médicas e dos textos de lei;

b) Há também aqueles gêneros que, pela própria natureza, exigem a escolha de uma cenografia. Esses gêneros fazem um esforço para dar ao destinatário uma singularidade dentro da cena de fala. Como exemplos prototípicos, temos os gêneros publicitários, os literários e os filosóficos;

c) Um terceiro grupo estaria entre esses dois extremos. Alguns gêneros são, assim, mais suscetíveis de cenografias variadas, apesar de, com muita frequência, manter a sua cena genérica rotineira, como acontece por exemplo nos guias turísticos ou nas crônicas dos jornais.

Maingueneau observa ainda que “os gêneros de discurso que mais recorrem a cenografias são aqueles que visam a agir sobre o destinatário, a modificar suas convicções” (In: MAINGUENEAU; CHARAUDEAU, 2004, p. 97), como é o caso sem sombra de dúvidas do gênero canção, que assim estaria incluído no segundo grupo de gêneros, os quais exigem sempre uma cenografia diversificada. Nesse aspecto o discurso verbomusical “é privilegiado, pois na cena enunciativa do gênero canção é quase impossível antecipar qual cenografia será mobilizada. O autor, por meio do enunciador, tem a total liberdade de criar e instituir as mais diversas cenografias que, nos arriscaríamos a dizer, tendem ao infinito” (CARLOS, 2007a, p. 199). Essa mesma reflexão talvez seja válida para todos os gêneros de discurso da esfera artística, em termos de modernidade.

Maingueneau postula, além disso, um outro grupo de cenografias: as cenografias

específicas e as cenografias difusas. As primeiras são aquelas especificadas de forma exata

no texto, sendo facilmente identificáveis pelo leitor. As últimas correspondem às cenografias de difícil identificação pelo leitor, pelo fato de se remeter a um conjunto muito vago de cenografias possíveis e não a um gênero de discurso preciso.

Como observei na dissertação (CARLOS, 2007a, p. 250)39, podem ser ressaltados ainda dois outros tipos de cenografias: as cenografias primárias e as cenografias

secundárias. As primárias dizem respeito às cenografias mesmas do enunciado, enquanto as

cenografias secundárias concernem àquelas cenografias referidas no enunciado (sejam rememoradas ou projetadas). Para ilustrar esses dois grupos de cenografias, basta pensarmos em uma narrativa qualquer na qual o narrador conta ao leitor fatos passados. Nesse caso, a

39 Com base na dissertação de Bezerra, intitulada Tropicalismos na música popular brasileira: um olhar

cenografia primária, a principal, é a do próprio narrador contando a história. Por outro lado, a(s) cenografia(s) secundária(s) corresponde(m) a cada um dos fatos descritos pelo narrador. Sobre essas duas espécies de cenografia, como mostrei em trabalhos anteriores (CARLOS, 2006b e 2008), é interessante observar que as cenografias secundárias, apesar do nome, muitas vezes são mais importantes e aparecem mais do que as primárias no processo de construção do sentido da canção.

Com relação à cena enunciativa e as suas subdivisões, de acordo com o mesmo percurso seguido em minha dissertação (2007a, p. 197), observa-se que porque lido especificamente com um objeto textual pertencente a um tipo de discurso determinado (o verbomusical) e a um mesmo gênero, as cenas englobante e genérica, constituem-se, respectivamente como a do discurso verbomusical brasileiro e a do gênero canção. No âmbito dessas duas cenas, Belchior exerce os papéis de compositor e/ou intérprete na grande maioria das canções escolhidas40, como precisarei no capítulo de metodologia (parte III). Porém, na análise do tipo de discurso verbomusical, é preciso passar muitas vezes pela análise da interdiscursividade entre esse e outros discursos, dentre eles o literário41, o filosófico e o religioso.

Em síntese, veremos na análise como cada canção do corpus constrói sua própria cenografia, dentro da grande cena englobante do discurso verbomusical. Como o objetivo da tese é analisar as relações polêmicas entre Belchior e outros cancionistas, principalmente Caetano Veloso, serão enfocadas somente as cenas genéricas e as cenas cenográficas (permitindo-me a redundância da expressão) comuns entre as obras, seja por oposição ou repetição. Apesar de esta seção abordar conjuntamente as cenas genéricas e a cenografia, pois me fundamento na proposta de Maingueneau, no capítulo de análise os comentários sobre essas duas instâncias aparecem separadamente. Assim, no tópico 2.1.1 da parte IV analiso exclusivamente o gênero ou a cena genérica, seguindo conjuntamente os tópicos 2.2.1 e 2.2.2 da fundamentação teórica e, no tópico 2.1.2, da parte IV, analiso exclusivamente a cenografia, com base nesta seção teórica.

A proposta da tese é pensar em uma análise que enfoque a situação de enunciação da música brasileira sob dois aspectos: a situação de enunciação do discurso verbomusical (ou seja, a cena englobante propriamente dita) e a situação de enunciação do gênero canção (que abrange tanto a cena genérica quanto a cenografia). Voltarei a esse ponto mais à frente, no

40 Confrontar ainda o quadro Instâncias de análise na autoria, coautoria, audiência e coaudiência da canção no subcapítulo 3.3.

41 A esse respeito, sugiro a leitura de minha dissertação, na qual analiso diálogos entre as práticas discursivas da Música e da Literatura.

subcapítulo 3.3, ao abordar a questão da autoria na canção e das variadas instâncias que atuam no processo de produção autoral do discurso verbomusical.