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5.2 C ORPO PERFEITO , ESTETIZAÇÃO DA VIDA COTIDINA E IDENTIDADE

No documento Corpo e identidade feminina (páginas 182-188)

5 O culto ao corpo: Produção de si mesmo, estetização da vida cotidiana e espetáculo.

5.2 C ORPO PERFEITO , ESTETIZAÇÃO DA VIDA COTIDINA E IDENTIDADE

Como ter um corpo perfeito passou a ser uma preocupação central para que a mulher se sinta aceita e valorizada, as exigências sobre os cuidados com o corpo aumentaram. A mulher passa a se sentir cada vez mais responsável pela aquisição deste corpo, já que ela é incentivada a crer que pode conquistá-lo através da malhação, das plásticas e de outros recursos. Ela própria quer ser perfeita porque em última instância, isto significa ser aceita,

fazer parte de um sistema social em que o corpo figura como um mecanismo de status, ou nas palavras de Sabino, “As relações sociais ficam dependentes da forma ostentada pelo corpo” (Sabino, 2000: 64). As minhas entrevistadas dizem:

“Eu acho que ninguém gosta de se sentir à margem da sociedade, todo mundo quer estar ali no meio, quer ser, entre aspas, normal, todo mundo busca ser aceito pela sociedade, ser bem visto, ser comentado, admirado” (Mulher 5, 22 anos)

“Acredito que por isso, pelo bem estar que as pessoas sentem quando estão esteticamente melhores, esteticamente mais bonitos, elas se sentem melhor socialmente, acho que por isso” (Mulher 24, 18 anos).

Nestas falas percebemos que o corpo é importante para a mulher também do ponto de vista da inserção social, fazendo com que, ao se alcançar os padrões estéticos de magreza, juventude e tônus muscular, a mulher se sinta mais pertencente ao grupo ao qual ela almeja pertencer. O corpo lhe confere, além de um incremento na auto-estima, uma identidade social:

“Eu acho que eu estou muito bem, só que eu quero a perfeição, o que com a minha idade vai ser difícil. Se eu estivesse com 25 anos, tiraria de linha. Mas comparando com pessoas que eu conheço, as filhas do meu marido, uma tem 31; a outra 35, se você for comparar eu dou de dez a zero nas duas. Então, quando você encontra alguém que nunca fez exercício, você vê a diferença, o braço não tem torneado. Pra minha idade, filha, tá maravilhoso” (Mulher 65, 61 anos)

“Malhar se tornou parte do meu estilo de vida. Gosto quanto sinto os músculos aparecendo, dá mais coragem de por uma calça cintura baixa. Hoje não consigo pensar em parar a academia, a ginástica está ligada à minha identidade, eu preciso dela para me sentir bem, programo as outras atividades em função da academia” (Mulher 68, 34 anos)

“Sim, com certeza pelo menos, malhar faz parte da minha vida, a partir do momento que você começa malhar, que você conhece amigos, faz um grupo, a malhação, a ida pra academia se torna uma coisa prazerosa e faz parte do cotidiano da vida, malhar é um modo de vida” (Mulher 54, 26 anos).

“É, eu acho que realmente está ligado à auto-estima, eu me aceito e procuro melhorar, eu percebo hoje que eu sou magrinha, eu sou muito mais olhada e admirada por homens e mulheres com relação ao tempo que eu era adolescente. Eu também não era uma gordinha feliz, porque tem gente que é gordinha e é bem resolvida, eu não era, porque

com dez quilos a mais não é a imagem que eu tenho de mim, a imagem que eu tenho de mim, a que reflete o meu interior, é esta que está aqui” (Mulher 28, 35 anos).

A aparência física reveste-se de uma importância muito grande, a ponto de influenciar o relacionamento da mulher consigo mesma e com os outros.

Somente 4% da amostra afirmou que a aparência física é pouco importante, ao passo que 14% a consideraram mais ou menos importante. Já a maioria, 82%, considerou-a muito importante:

É interessante observar que das três mulheres (4%) que responderam “não”, duas parecem de fato não se importar com a aparência, enquanto uma não a considera importante para si, mas acha que ela é importante para os outros:

“Eu sou tão pouco ligada nisso que eu nem reparo” (Mulher 33, 35 anos)

“Eu nunca fui uma pessoa assim de me cuidar, nunca fui de passar creme, arrumar cabelo, fazer unha, é só você ver, minhas unhas são horríveis, eu jogo bola, eu uso chuteira, eu tenho calo no pé, eu nunca fui de me importar”(Mulher 57, 28 anos)

“Pra mim, como pessoa, não conta nada. Mas na sociedade, acabam excluindo quem é gordinho, justamente nas escolas de ballet, tem crianças que são mais gordinhas e são rejeitadas pelas próprias crianças, deixam ela de lado, dizem, ‘ela não consegue, ela é gorda’” (Mulher 22, 32 anos)

Gráfico 28 - Importância da aparência física

O quão importante é a aparência física para você? 4% 14% 82% pouco importante mais ou menos importante muito importante

Um relato interessante, dentre aqueles que indicam uma relativa importância do corpo, foi o seguinte:

“Na verdade, como eu mudei muito a minha personalidade,o corpo não malhado, ele me irrita, só que eu não vivo em função do corpo, (...) porque eu acho que eu tenho mais pra oferecer do que o próprio corpo (...). Ele não é fundamental na minha vida, não é mais o número um, então eu não sou dependente do meu corpo, eu sou dependente da minha cabeça hoje em dia. Eu queria que ela coordenasse o meu corpo, eu queria dar menos importância para algumas coisas e mais para outras, o meu problema não é com o meu corpo, é com a minha cabeça.” (Mulher 53, 29 anos).

A entrevistada acrescentou que já se sentiu “escrava do próprio corpo”, teve problemas de relacionamento por isso, entrou em depressão, mas depois fez terapia e relativizou suas opiniões. No entanto, percebemos que na sua fala ainda há uma tensão quanto ao corpo, um desejo de que ele fosse menos importante do que na verdade é.

Dentre as que consideram a aparência física muito importante, podemos ressaltar as seguintes falas:

“É, eu acho que a coisa da aceitação passa pelo corpo sim. Não tem tanta preocupação de mostrar que a pessoa é inteligente, de eu mostrar que eu também sou, minha intenção já é atrair por alguma coisa do corpo, cabelo, ou é músculo a mais, estar magra, você tenta passar alguma coisa do seu corpo pra chamar a atenção” (Mulher 5, 22 anos) “É o que conta hoje em dia, tanto que o pessoal vive de estética, o vínculo disto é a TV, a academia cada vez mais voltada” (Mulher 10, 26 anos).

“Eu nunca consegui alcançar os meus objetivos, eu nunca consegui ficar com o corpo definido, mas mudou no sentido de eu não perder este corpo, mas eu não tô num ponto de estar feliz com o meu corpo. Mas o corpo é muito importante. Eu acho que a pessoa precisa se sentir forte, firme; se ela não se sente, se ela não se encontra, não tem como ela entrar no corpo do outro” (Mulher 34, 33 anos).

“O corpo te dá mais auto-confiança, acho que você fica mais... segura de si” (Mulher 3, 29 anos)

Segundo Proust, “De fato, o corpo se tornou o lugar da pessoa. Sentir vergonha do

próprio corpo seria sentir vergonha de si mesmo. As responsabilidades se deslocam: nossos contemporâneos se sentem menos responsáveis dos que as gerações anteriores por seus pensamentos, sentimentos, sonhos e nostalgias; eles os aceitam como se lhes fossem impostos

de fora. Em contraposição, habitam plenamente os seus corpos: o corpo é a própria pessoa. Mais do que identidades sociais, máscaras ou personagens adotadas, mais até do que idéias e convicções, frágeis e manipuladas, o corpo é a própria realidade da pessoa. Portanto, já não existe mais vida privada que não suponha o corpo. A verdadeira vida não é mais a vida social, do trabalho, dos negócios, da política ou da religião: é a das férias, do corpo livre e realizado” (Proust, op.cit: 105-106).

Concordo quase que integralmente com Proust, exceto por um ponto: o autor parece acreditar que, já que o corpo é fundamental na construção da própria identidade - como aliás, é também meu ponto de vista -, sentir vergonha dele é quase que inaceitável, pois seria sentir vergonha de si mesmo. Mas o problema é justamente este: o culto ao corpo instaura uma contradição, pois se há o postulado de que o corpo é central para a construção do eu, também nos diz que este corpo não é qualquer corpo, é o corpo malhado e, como vimos, mais do que isso, ele é o corpo perfeito, que por definição já é inatingível. Por mais que as mulheres tenham recursos financeiros para se submeterem às plásticas - e não são todas que os têm -, isto nunca será o suficiente, pois nenhuma delas pode parar o tempo, e o culto ao corpo da atualidade quer congelar o tempo, quer anular sua passagem. Portanto, é impossível, pela rigidez atual dos nossos parâmetros e pela própria dinâmica do processo, encontrar esta total plenitude de satisfação das mulheres consigo mesmas. Mesmo as modelos e atrizes, que são as referências das mulheres comuns, estão insatisfeitas com sua aparência; entre o restante da população “64 % gostariam de mudar alguma coisa no cabelo, 50% não estão satisfeitas com

seu peso e 20% gostariam de perder mais de dez quilos” (Del Priori: 84)

Dentre as entrevistadas, o que percebi é que muitas mulheres sentem vergonha de seus corpos, os quais, segundo uma avaliação média seriam considerados bonitos (são proporcionais com relação á altura, têm tônus muscular) porque os padrões estéticos estão muito rígidos e a idéia de perfeição está incutida na cabeça das pessoas, dificultando uma plena aceitação de seus corpos.

Esta vergonha do corpo imperfeito pode ser vista no dia-a-dia, mas adquire especial sentido em três contextos especiais: 1) no vestiário feminino; 2) em situações de nudez, em especial, com os companheiros; 3) nas praias e/ou piscinas, que envolvem o uso de trajes de banho.

O vestiário feminino é um campo privilegiado de investigação, ao qual, graças à benesse do gênero, a pesquisadora pôde ter livre acesso. Embora seja impossível gravar entrevistas no espaço exíguo do mesmo, lá se descortina muito dos sentidos e relacionamentos da mulher com o seu corpo e, principalmente, com o corpo das outras. Como diz a sabedoria

popular, “mulher repara mesmo é em mulher”. Lá, podemos ver as mulheres que têm vergonha de seu corpo e evitam despir-se na frente das outras, recorrendo a toalhas para disfarçar as trocas de roupa, bem como aquelas que, em vez de caminhar, literalmente desfilam nuas pelo vestiário. Também vemos que as mulheres procuram desvendar os “segredos” corporais das outras e chegam a fingir que estão pegando alguma coisa no armário só para “conferir” se a outra tem celulite, se é flácida, se têm seios tão firmes quanto parece quando estão de top. Depois comentam com as amigas o corpo de “beltrana”, e em geral falam mal dele. Sábias aquelas que se cobrem...

Lá também reside um personagem central nas tramas do culto ao corpo: a balança. Às vezes “vilã”, noutras “mocinha”, as mulheres não passam incólumes por ela. Pesam-se, ficam alegres quando perdem peso, tristes em outros momentos, pois se peso ideal significa gordura a menos, também pode significar perda de massa muscular.

A nudez também é importante no relacionamento com o parceiro; na verdade, bem mais do que o declarado no questionário fechado. Neste, quando questionadas se a aparência física interfere no desempenho sexual, 24% disseram mais ou menos, 24% disseram que sim e 47% disseram que não

“Ah, hoje, este aspecto de desnudar eu já não estou mais tão preocupada porque eu acho que eu estou melhor hoje em dia, o que me incomodava mais era o peito caído, e eu fiz a plástica, eu tô mais satisfeita, então eu não fico mais... Mas determinada posição [sexual] um peito caído fica feio, então realmente pode atrapalhar”(Mulher 47, 40 anos). “É que realmente eu nem pensei neste lado que você está me perguntando do peito, que eu não tinha. Mas a minha auto estima se elevou muito com relação a isso [ter colocado

Gráfico 29 - Aparência e desempenho sexual

Você acha que a sua aparência física pode atrapalhar o seu desempenho sexual?

5% 47% 24% 24% sim não mais ou menos não respondeu

prótese de silicone], a relação com o meu marido, porque eu não gostava, tipo, na relação [sexual] eu deitada parecia uma tábua de passar roupa” (Mulher 1, 30 anos) “É, eu fico incomodada com relação a algumas partes, barriga, coxa, eu não sou totalmente adepta da luz acesa, mas eu acho que é mais coisa da cabeça da mulher do que do homem” (Mulher 9, 27 anos)

“A minha sorte é que eu tenho um marido que é dez, ele é uma pessoa muito bacana, mas às vezes, como eu disse, eu deixo de dançar pra não me expor, eu não deixo te ter relação para não me expor, mas eu me sinto acanhada em algumas situações por causa do meu corpo. Acontece muitas vezes. Eu poderia ser muito mais solta, mais desinibida se eu tivesse um pouco melhor” (Mulher 32, 33 anos)

Ainda a respeito da nudez diante do parceiro, 39% afirmaram que sentem vergonha em se desnudar por causa da preocupação com a aparência, enquanto 58% dizem que não se sentem constrangidas

Conversando com as mulheres, elas também relativizaram os dados do questionário fechado, à semelhança do que aconteceu com as perguntas sobre a importância da aparência na escolha de parceiros e no desempenho sexual:

“Ah, eu morro de vergonha, do meu corpo todo (...) Eu não consegui responder à pergunta do que eu acho mais bonito no meu corpo, eu fiquei imaginando, imaginando e

Gráfico 30 - Nudez e corpo

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