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Você gosta do seu corpo?

No documento Corpo e identidade feminina (páginas 193-198)

3% 1% 39% 57% sim não mais ou menos não respondeu

gostar mais do própria corpo. Dentre as que responderam mais ou menos (39%), os principais motivos são algumas gorduras localizadas ou mesmo excesso de peso:

“Eu nem gosto, nem desgosto. Eu sei que tem alguns pontos pra melhorar, eu malho bastante pra tirar algumas gorduras laterais, gorduras localizadas, mas enfim, nunca tive problema. Como eu sou magra, tem hora que eu queria ter mais bunda, precisava perder um pouco de barriga, então tem algumas coisas que precisam melhorar, mas eu não tenho porque não gostar dele” (Mulher 1, 30 anos)

“É, eu continuo não gostando muito, mas não é mais aquele negativo que eu tinha, agora eu tô tentando, eu comecei a aceitar, vendo que eu tô emagrecendo, eu tô aceitando, começando a gostar, é isso” (Mulher 62, 27 anos).

“Porque não é, concorda, perfeito. Tem algumas coisas que tem que melhorar, mas... Perfeito, certinho é de uma jovem né? Que tem tudo no lugar, eu tive dois filhos, né? Antes de eu ter neném eu era diferente, né?” (Mulher 52, 48 anos)

“Às vezes eu me incomodo se eu estou um pouco gorda, alguma coisa assim me incomoda. Dependendo do grupo em estou, aqui na academia eu me sinto assim, meio fora do padrão, porque é um pessoal mais malhado, mais forte, assim entendeu? Sem gordura, e eu na minha família já não é esse padrão, no clube onde eu sou sócia também não tem esse padrão, todo mundo no culto ao corpo, lá é o padrão família, então lá eu me sinto bem, e aqui às vezes eu não me sinto tão bem, depende mais do lugar onde eu estou” (Mulher 57, 28 anos)

Uma fala muito interessante é a da Mulher 8, que declarou que hoje está mais infeliz com o corpo, embora ele tenha melhorado, porque ele se tornou uma preocupação antes desconhecida:

“Eu gosto da estrutura do meu corpo, mas eu tenho incômodo com a gordura localizada (...) Eu já tive 8 Kgs a mais (...) e achava que eu tava ótima, nunca nem pensei, aí eu comecei a emagrecer, o dia que eu fiz a comparação das fotos, eu não acreditava, ‘nossa, como eu fiquei deste tamanho e não tinha percebido?’. Então hoje, eu tô muito mais infeliz com o meu corpo do que com dez quilos a mais porque hoje eu tenho mais preocupação com ele. Hoje eu penso muito mais nele do que antes, antes eu tava desencanada.” (Mulher 8, 25 anos)

Como entender a importância que as mulheres atribuem aos cuidados com o corpo? Para Kélh (2002), foi-se o tempo em que os discursos religiosos, filosóficos ou morais orientavam a vida da coletividade. Hoje são as ciências biológicas que orientam os valores da

indústria do corpo, a ponto de Sfez, no seu artigo “Saúde Perfeita é a utopia do final do século” (1995) e na sua tese A Saúde Perfeita (1996), proclamar a morte das utopias da comunicação em favor das utopias do corpo. O cuidado de si volta-se para a produção da aparência, segundo a crença já há muito difundida de que a qualidade do invólucro muscular, a textura da pele, a cor dos cabelos, o volume do corpo atestam o sucesso de seus proprietários. Courtine acredita que todas estas práticas de gerenciamento do corpo que florescem a partir de 1980, são sustentadas por uma “obsessão dos invólucros corporais: o

desejo de obter a tensão máxima da pele; o amor pelo liso, pelo polido, pelo esbelto, pelo jovem; ansiedade frente a tudo que na aparência pareça relaxado, franzino, machucado, amarrotado, enrugado, pesado, amolecido ou distendido; uma contestação ativa das marcas do envelhecimento no organismo. Uma negação laboriosa de sua morte próxima” (Courtine,

1995: 86). Para o bodybuilder, construir um corpo que atenda aos padrões de sua época constitui ao mesmo tempo uma obrigação e uma marca de identidade. O corpo trabalhado é um dado essencial de um estilo de vida que irá diferenciá-lo de outros grupos. Se por um lado há dor, disciplina, regras rígidas de alimentação, conduta e treino, também há o prazer de perceber o corpo desabrochando a partir do próprio esforço: “Além do sentimento de cansaço

e plenitude corporal amiúde vivaz que ele proporciona, o treino é, ele mesmo, sua própria recompensa, quando o lutador consegue dominar um gesto difícil, que oferece a sensação nova de ter redobrado sua potência, ou quando obtém uma vitória sobre si mesmo.”

(Wacquant, 2002: 88).

Como vemos, a tônica principal do universo dos bodybuilders diz respeito à necessidade de produzir a si mesmo, produção esta que passa primeiramente pelo corpo e, ademais, depende deste corpo como um dos mecanismos de status e diferenciação. É claro que a preocupação com o corpo é muito antiga, e como veremos mais adiante, Foucault (1985) comentará que os gregos eram adeptos da cultura de si. No entanto, acredito que determinadas razões para o culto ao corpo que se vive hoje possam remontar à modernidade. Sabe-se que algumas das características centrais que definem a modernidade são a estetização da vida cotidiana, o predomínio da técnica e a busca incessante da racionalidade. Para Featherstone (1995) é possível falar da estetização da vida cotidiana em três sentidos:

1) através das subculturas artísticas que produziram os movimentos dadaístas, surrealista e da vanguarda histórica, a partir da primeira Guerra Mundial, que procuravam apagar as fronteiras entre arte e vida cotidiana;

2) a estetização da vida cotidiana pode designar o projeto de transformar a vida numa obra de arte, pondo em evidência as questões estéticas;

3) o terceiro sentido da estetização da vida designa o fluxo veloz de signos e imagens que saturam a trama da vida cotidiana na sociedade contemporânea.

Para o presente trabalho, nos interessam particularmente o segundo e o terceiro sentidos propostos por Featherstone.

Foucault (1986: 41-2) concorda com a concepção de modernidade de Baudelaire, na qual a figura central é o dândi, que faz do seu corpo, seu comportamento, seus sentimentos e paixões, sua própria existência, uma obra de arte. Em “O Pintor da vida moderna”, Baudelaire diz: “Assim ele vai, corre, busca. O que procura? Seguramente, este homem, tal como eu o

retratei, este solitário de uma imaginação ativa, viajando através do grande deserto de homens, tem um objetivo mais elevado do que de um vadio, um objetivo mais elevado do que o prazer fugitivo da circunstância. Ele procura aquela coisa que nos permitirá designar a modernidade” (Baudelaire, 1864: 334). Nesta concepção, o homem moderno é o homem que

procura inventar a si próprio. Imerso na multidão, o dândi se movimenta, mais do que isto, ele desfila. Se por um lado ele está dissolvido na multidão, por outro, também se destaca dela. Baudelaire estava consciente de que a multidão, com seu fluxo veloz de corpos, era ao mesmo tempo o local de encontros mudos e o palco do processo de decodificação e interpretação da aparência das outras pessoas.

O dândi era um ser humano dotado de um corpo, cuja aparência e conduta transmitiam impressões e signos legíveis aos que estavam ao seu redor. Vestuário, estilo, tom de voz58, expressão facial, maneiras, porte e modo de andar, volume do corpo, peso, tudo isso constituiu o estilo do dândi e o diferenciava da multidão. Também Simmel e Benjamim mostraram como a paisagem urbana ficou estetizada e encantada, graças à arquitetura, aos

outdoors, vitrines, mas, sobretudo pelas pessoas reais que se movimentavam por estes

espaços: indivíduos que se munem de roupas, penteados, ou que adotam formas específicas e estilizadas de movimentar ou aprumar seus corpos.

A proximidade entre o dândi do século XIX e o bodybuilder da atualidade, ao meu ver, é inegável. Para ambos, o estilo de vida é fundamental, e um dos principais cenários em que este estilo se revela é no próprio corpo e nos mecanismos de sua construção. Tanto quanto para o dândi, para o bodybuilder seu corpo é como uma escultura e uma escritura que ele

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mesmo tem que esculpir e inscrever. Músculos que aparecem sob a pele, mecanismos para firmá-la e deixá-la lisa, sempre lutando contra as marcas do tempo, formas corporais determinadas por um padrão esguio, cuidadosamente calculado e contido, roupas justas que evidenciam esta construção, são estes os referenciais dos bodybuilders. E da mesma maneira que o dândi, ao mesmo tempo em que o bodybuilder circula imerso na multidão, também tenta diferenciar-se dela, ser olhado, admirado. Seu passeio pelas ruas, pelos shoppings, pelas praias é também seu desfile, permanentemente reconstruído a cada sessão de ginástica, a cada alimento calórico não ingerido. Cuidar do corpo deixa de ser unicamente uma questão de saúde para ser uma questão de estética, um passaporte para a auto–afirmação.

No universo pesquisado, estes mecanismos são muito evidentes: basta olhar ao lado e eles estão claramente visíveis. As mulheres da academia Cia Atlhética procuram se diferenciar através de seus corpos esculpidos, roupas de grife, conduta, gestos. Muitas levam os filhos e são acompanhadas pelas babás dos mesmos, que são facilmente distinguidas das freqüentadoras: as primeiras usam geralmente roupas brancas, normalmente calçam chinelos de dedo, muitas usam toucas ou têm os cabelos presos, quase sem maquiagem, roliças de corpo ou mesmo obesas. Vale lembrar Rodrigues, que comentou como a modernidade legitimou espaços de confinamento dos pobres pelos burgueses e definiu o tratamento a que estes deveriam ser submetidos quando freqüentassem, para a conveniência da elite, os ambientes desta última: “Por esta via, entende-se que coisas tão aparentemente ingênuas,

inofensivas, ‘racionais’ e ‘funcionais’, como os aventais das cozinheiras e arrumadeiras (...), as luvas dos mordomos, as toucas das babás, os bonés e chapéus de padeiros e entregadores ...acabassem tendo uma função ritual e significantemente implícita e inconfessada, terminando como instrumentos simbólicos de marcação de distanciamento e de separação sociais” (op.cit: 170).

Os corpos dos bodybuilders estão permanentemente em construção, mas também em exibição, são corpos mensagens, que falam pelos sujeitos. Verdadeiros outdoors, produtos, e ao mesmo tempo, veiculadores da cultura do corpo, o que nos remete a outros pontos centrais da própria modernidade: estamos falando, em ambos os casos, do fluxo veloz de imagens e signos que saturam a vida cotidiana e a transformam num espetáculo permanente. Basta um simples passeio às ruas para que tenhamos a sensação de estarmos imersos num mundo de imagens que veiculam os valores centrais de nossa época. Aliás, nem precisamos sair de casa: as imagens nos chegam pelo computador, pela televisão, pelos jornais e revistas que assinamos, entre outros meios.

Assim, quando indagamos sobre o processo de culto ao corpo, é impossível dissociá-lo da mídia, como veremos a seguir.

5.3 -MÍDIA E ESPETÁCULO NO CULTO AO CORPO: O CORPO MIRAGEM.

Na etapa de construção do projeto de pesquisa, já tinha percebido que a mídia teria papel central na cultura do corpo, mas, por estratégia de pesquisa, resolvi esperar o decorrer do campo, por medo de acabar induzindo os resultados. Mas mesmo quando eu não falava da mídia com as mulheres, estas o faziam por mim e ao investigar as brechas que as próprias entrevistadas davam, chego a conclusão de que a comunicação é um dos pilares do atual culto

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