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2.2.3 P OR UMA ANTROPOLOGIA DO CORPO

No documento Corpo e identidade feminina (páginas 54-62)

Renda x escolaridade m édio

2.2.3 P OR UMA ANTROPOLOGIA DO CORPO

“Nós não temos um corpo, nós somos um corpo”. (Lígia A. Amaral)

Desde 1990, a questão da corporalidade e das representações que o corpo suscita são meus objetos de reflexão. Durante a graduação, analisei como pessoas portadoras de deficiência física pensavam seus corpos e se relacionavam socialmente20. No mestrado, verifiquei como o cinema internacional veicula a deficiência física congênita e, desta forma, constrói representações sobre o corpo de pessoas portadoras de deficiências21. Nestes trabalhos, pude perceber que um dos modelos mais vigorosos de constituição corporal do Ocidente era o espelhado pelo corpo grego, cujas principais marcas de perfeição diziam respeito à beleza e à funcionalidade. Desta forma, a deficiência estampada no próprio corpo negava um padrão de Humanidade tido como ideal, instaurando uma desordem tanto no que diz respeito à estética, quanto à funcionalidade. Ela marcava sua presença na constituição física – portanto, no plano da natureza - do indivíduo e impunha uma desordem no plano da cultura, pois, como vimos, este "corpo ideal" é conseqüência de um processo cultural. E é sobre este corpo diferente e apreendido como desigual que se fundam o preconceito e o estigma. Além disto, com a explosão da cultura do corpo a partir de 1980, a imperfeição do corpo marcado por uma deficiência se torna ainda mais visível. Foi justamente no embate destas duas corporalidades tão distintas que nasceu a idéia de investigar o outro lado da moeda, ou seja, avaliar os significado inerentes a um tipo de corpo específico que a sociedade atualmente fabrica, que é o corpo feminino perfeito.

A opção de refletir sobre as representações corporais não é nova na Antropologia. O corpo sempre constituiu um fecundo campo teórico desta disciplina, sendo objeto de reflexão de autores como Marcel Mauss, que, em trabalhos clássicos como As Técnicas Corporais (1974) e A Noção de Pessoa (1974), nos chama a atenção para as várias maneiras possíveis por meio das quais cada sociedade impõe ao indivíduo um uso rigorosamente determinado do seu corpo, bem como da fabricação de máscaras sociais que se sobrepõem ao indivíduo. Segundo ele, é através da educação das necessidades e das atividades corporais que a estrutura social imprime sua marca nos indivíduos: “adestram-se as crianças (...) a dominar reflexos

(...) inibem-se medos (...) selecionam pausas e movimentos (...) A educação da criança está cheia do que chamamos detalhes, mas que são essenciais. Quantidade de detalhes, não

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Ver Berger, Mirela; Gonçalves, Cristiane e Montanari, Patrícia- “Quando o espelho não reflete: alunos portadores de deficiências na Usp”, relatório final, CECAE/USP, 1991.

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observados, e dos quais é necessário fazer a observação, compõem a educação física de todas as idades e dos dois sexos.” (Mauss, 1974: 221).

Mauss alertava para a premente necessidade de se fazer o inventário e a descrição de todos os usos que os homens, no curso da história e principalmente em todo o mundo, fizeram e continuam a fazer de seus corpos. Para ele, os limites da dor, da excitabilidade, da resistência são diferentes em cada cultura. Sua premissa básica é que o homem, sempre e em toda parte, soube fazer de seu corpo um produto de suas técnicas e de suas representações. A sociedade fabrica, de acordo com épocas e lugares, estereótipos e modelos de comportamento que se inscrevem no corpo.

Sobre o corpo, já apreendido como algo no domínio da cultura, serão impostas técnicas

corporais (Mauss, 1974), ou seja, atos tradicionais e eficazes que combinam elementos

biológicos, psicológicos e socioculturais, sem que os próprios agentes e objetos tenham sempre consciência disto. Rodrigues (1983) reforça esta tese assinalando que o corpo humano é permanentemente afetado pela ocupação, religião, estrutura de classes, grupo familiar e outros fatores da cultura, ainda que seus usos apareçam em nossa consciência como naturais. Este autor pretende demonstrar que a estrutura social encontra-se simbolicamente impressa no corpo, e a atividade corporal nada mais faz senão torná-la expressa: “Em cada sociedade

poder-se-ia levantar o inventário destas impressões-mensagens e descobrir-lhes o código: bom caminho para se demonstrar na superfície dos corpos, as profundezas da vida social” (Rodrigues, 1983: 44).

Por esta via, entendo o corpo não apenas como um produto da cultura, mas também como um dos lócus privilegiado de reflexão e produção da própria cultura. O presente trabalho caminha também na direção proposta por Mauss, elencando as percepções corporais da mulher urbana pós 1990 e as técnicas corporais por elas utilizadas.

O corpo é um reflexo da sociedade que articula significados sociais e não apenas um complexo de mecanismos fisiológicos; assim sendo, é impossível pensar o corpo sem considerar a pluralidade de sentidos que ele engloba. Ou, para citar novamente Rodrigues,

“Inspirado no seu próprio corpo, o homem concebeu relações entre os astros, as estações, as coisas, os animais e os deuses; reconhecemos no nosso corpo e no das pessoas que conosco se relacionam um dos diversos indicadores da nossa posição social e o manipulamos cuidadosamente em função deste atributo. Vemos, no nosso próprio dia-a-dia, o corpo se tornando cada vez mais carregado de conotações: liberado física e sexualmente na publicidade, na moda, nos filmes e romances; cultivado higiênica, dietética e terapeuticamente; objeto de obsessão de juventude, elegância e cuidados” (idem, ibid: 46).

Segundo o autor, “arranhando, rasgando, perfurando, queimando a pele, imprimem-se

cicatrizes signo que são formas artísticas ou indicadoras de status (...)” (Rodrigues, 1983:

63). Cada uma destas práticas se explica por uma razão específica, dada pelo contexto sócio- cultural em que foram produzidas, que pode ser ritual ou estética, indicando ritos propiciatórios, marcas tribais, signos de status social, ritos de passagem, entre outros.

Diversos outros antropólogos privilegiaram o corpo em seus estudos, mostrando-nos que toda sociedade utiliza-se de formas específicas de marcar o corpo de seus membros. Clastres (1988) mostrou como nas sociedades primitivas o corpo tinha o status de uma escritura, já que as normas sociais eram inscritas nele. Assim, a tortura corporal servia como um ritual de iniciação e como um modo de gravar na pele e na memória dos iniciados os ensinamentos sociais. A marca corporal funcionava como um sinal de que aquele jovem era plenamente membro da aldeia e que não poderia se esquecer disto, já que trazia no próprio corpo uma marca inscrita pela sociedade: “Na exata medida em que a iniciação é,

inegavelmente, uma comprovação da coragem pessoal, esta se exprime – se é que podemos dizê-lo – no silêncio oposto ao do sofrimento. Entretanto, depois da iniciação, já esquecido todo sofrimento, ainda subsiste algo, um saldo irrevogável, os sulcos deixados no corpo pela operação executada com a faca ou a pedra, as cicatrizes das feridas recebidas. Um homem iniciado é um homem marcado. O objetivo da iniciação, em seu momento de tortura, é marcar o corpo: no ritual iniciatório, a sociedade imprime sua marca no corpo dos jovens. Ora, uma cicatriz, uma marca, são indeléveis (...) A marca é um obstáculo ao esquecimento, o próprio corpo traz impressos em si os sulcos da lembrança – o corpo é uma memória.”(Clastres, 1988: 128).

Michel Foucault (1987) mostrou como o corpo também se configurava como o substrato onde se inscrevia a lei. A tortura, que incluía a marcação com ferro em brasa no corpo dos condenados, visava tornar marcado e visível o mal que ele havia cometido. Foucault também enfatiza que a sociedade capitalista, em função do adestramento para o trabalho, faz um rigoroso controle dos corpos de seus membros. Sendo assim, as técnicas corporais evidenciam a presença de montagens fisio-psicológicas através de uma série de atos e marcas, que são inscritos no corpo pela sociedade e que evidenciam o seu poder, fazendo com que o corpo esteja mergulhado num campo político, econômico e cultural

Seeger (1979) salientou que é impossível pensar em uma antropologia das sociedades indígenas do Brasil sem levar em conta as categorias de espaço, tempo e pessoa. Ele nos lembra que a originalidade das sociedades tribais brasileiras reside na elaboração de uma noção de pessoa calcada na corporalidade. Segundo ele, as etnografias precisam se reportar

aos modos como cada sociedade lida com o corpo de seus membros e os elabora como uma construção social. Viveiros de Castro (1979) compartilha da posição de Seeger ao mostrar como se dá a fabricação do corpo na sociedade xinguana e como este processo é a base de todo um complexo sistema de construção de identidades onde o corpo figura como matriz e fonte de significado.

Entre as mulheres pesquisadas, estas questões ficam muito evidentes. Para quem observa de fora as práticas corporais das freqüentadoras da Cia Atlhética, pode parecer futilidade ou falta do que fazer dedicar tantas horas à malhação e a outros cuidados com cabelos, rosto e corpo. Mas, para as próprias mulheres, trata-se de colocar em prática mecanismos de construção da identidade, e esta não pode ser considerada abstraindo-se as questões estéticas. Malhar e cuidar da aparência, para o grupo pesquisado, fazem com que as mulheres se identifiquem e identifiquem as outras como membros de uma espécie de clã, no qual a forma física apresenta-se como referencial classificatório. Trata-se, portanto, de uma questão de identidade e de apreensão moral: numa sociedade onde o corpo malhado apresenta-se como objeto de adoração e classificação, não possuí-lo é não estar inserido. E mais, como veremos, sobre o corpo não malhado recairá um estigma e uma culpa, já que um dos pilares da ideologia do corpo perfeito recai no esforço individual. Assim, como reforça Eckert (1995), “Os corpos se inserem numa vasta teia de representações, ideologias e

concepções morais” (Eckert, 1995: 165). Esta autora cita Merleau-Ponty: “Operador sine Qua non de todas as práticas sociais, o corpo é projeto sobre o mundo” (Merleau-Ponty, apud Eckert, 1995:21). O corpo será assim como uma tela, o lugar da visibilidade de códigos

de conduta, de regras estéticas e do próprio gosto cultural das mulheres pesquisadas.

Neste sentido Queiroz e Otta (2000) afirmam que “o corpo e os usos que dele fazemos,

bem como as vestimentas, pinturas e ornamentos corporais, tudo isso constitui, nas mais diversas culturas, um universo no qual se inscrevem valores, significados e comportamentos, cujo estudo favorece a compreensão da natureza da vida sociocultural.” (Queiroz e Otta,

2000: 19).

Certeau (1994) enfatiza estas conexões entre corpo e sociedade. Segundo ele, as gramáticas sociais do poder induzem ou obrigam as pessoas a corrigir um excesso ou déficit corporal, sendo que as atividades de extração ou contenção remetem a um código que mantém os corpos submetidos a um ideal ideologicamente construído.

É assim também que determinados tipos de produtos postos à disposição do público, graças a uma bem sucedida estratégia de marketing comercial, modelam igualmente os corpos, impondo-lhes uma forma e um tônus que têm o valor de uma carteira de identidade.

Esta é uma outra forma de fazer com que os corpos se tornem um espaço de escrituras visíveis às diversas formas sociais e indicativos de pertencimento a grupos específicos. Como vimos, Clastres (1988) nos mostra que nas sociedades primitivas a modelagem do corpo tem como objetivo verificar a resistência pessoal e demonstrar um pertencimento social: é sobre o corpo que a lei é escrita, ou seja, o corpo físico atuará como memória do corpo social. Acredito que nas sociedades contemporâneas, e neste caso específico, no Brasil, este culto ao corpo, que trabalha no sentido de amoldá-lo a alguns padrões pré-estabelecidos, também evidencie

pertencimentos sociais, defina visões de mundo de grupos específicos e estilos de vida22 aos quais se tenta aderir para se obter reconhecimento social, como veremos mais adiante.

Além disto, se hoje boa parte da construção da identidade parece passar por um corpo magro, malhado, jovem, como ficam as mulheres que não aderem a estas lógicas? Como elas se vêem e são vistas pela sociedade mais ampla? Como lidam com regras culturais que definiram padrões muito específicos de beleza?

Para além de conhecermos mais a fundo os padrões corporais marcantes no Brasil, enquanto antropólogos devemos nos perguntar o que está por trás da busca deste corpo considerado saudável e bonito, questionando certos modelos que, antes de serem “naturais” ou “individualizados”, são produzidos pela sociedade, e atingem uma coletividade. Mauss já nos alertava para o fato de que nosso corpo não foge a uma dupla ordem de fenômenos, pertencendo ao mesmo tempo à natureza e à cultura. Embora a busca de um padrão corporal dependa do indivíduo, de sua disciplina e força de vontade, como toda técnica corporal é obra da razão prática coletiva.

São diversas as questões antropológicas que podemos evocar nesta época de culto ao corpo. Percebo, entre elas, que talvez nas últimas décadas estejamos vivendo embates entre os padrões fisiológicos do corpo e os culturais. O biótipo ideal das brasileiras, embora marcado pela diversidade, tem caminhado bastante para a magreza. O padrão de distribuição da gordura corporal pode ser determinado calculando-se a razão entre a medida da circunferência da cintura e a da circunferência do quadril (RCQ), sendo que esta taxa exibe variações de acordo com a procedência da pessoa: européia, asiática, africana ou sul-americana. Entre as mulheres européias, esta taxa é maior devido à estatura e a configuração corporal (quadris mais estreitos); já entre as brasileiras, é menor, já que nosso biótipo é caracterizado por mulheres mais baixas e de quadris mais largos. Ou seja, é biologicamente impossível igualar o padrão corporal destas mulheres. Até aqui, nenhum problema, não fosse o fato de que boa

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Segundo Siebert (1995), “‘estilo de vida’ é a maneira dos homens produzirem, cotidianamente, sua existência social, dos modelos de consumo às formas de organização do lazer e das relações interpessoais. Todo este conjunto é condicionado pelos valores e pelas normas culturais dominantes ” (Siebert, 1995: 19)

parte das brasileiras está tentando ficar cada vez mais magra, fazendo o (im)possível para se aproximar dos padrões europeus, que são os mais presentes nos editoriais de moda

brasileiros!

A preocupação estética de uma classe significativa de mulheres, ainda mais no que diz respeito ao modelo do corpo excessivamente magro, está deixando de ser um problema que possa constituir uma preocupação apenas individual e ocasional, a ponto de se transformar inclusive num problema muito mais amplo, com implicações na saúde23.

O estudo aprofundado da junção entre a fabricação deste corpo pelas mulheres, os modelos corporais produzidos pela sociedade e o papel da mídia neste processo, pode revelar muito sobre os modelos corporais do nosso tempo e, ao nos questionarmos sobre algo que nos é veiculado como “natural”, podemos lançar luzes sobre as vantagens e desvantagens desta “estética da fome” e de outros modelos corporais presentes em nossa sociedade.

Desta forma, algumas questões se colocam e podem ser respondidas por uma investigação que busque compreender como as mulheres pós 1990 constroem sua identidade e que modelos corporais exercem influência sobre este processo. O que é ser pessoa entre as mulheres com poder aquisitivo no Brasil? Ocorrem variações deste modelo entre as classes sociais? Quais os modelos arquitetônicos corporais que a nossa sociedade produz? No que eles se baseiam? Qual o papel dos meios de comunicação de massa neste processo? Como a antropologia visual pode nos auxiliar no entendimento desta proliferação imagética de corpos magros e de suportes para alcançá-los, presentes nos meios de comunicação e na sociedade mais ampla? Será que esta maior preocupação com o corpo pode estar relacionada com a expansão dos processos de gravação da auto-imagem, como a fotografia, os vídeos “caseiros”, entre outros? Como e porque entender a proliferação de revistas ligadas à estética? Estas são algumas das questões que a tese visa decifrar.

Também é importante ressaltar que o corpo está no centro de numerosas discussões em curso na atualidade. Tenho percebido que a cada ano se amplia no Brasil o número de publicações não científicas sobre a questão do culto ao corpo e, principalmente, a respeito de seus templos preferenciais, ou seja, as academias de ginástica e as clínicas de estética e cirurgias plásticas. Todos nós conhecemos pessoas que eram sedentárias e despreocupadas com a estética e que de um tempo para cá se tornaram “malhadoras”. Também temos contato com pessoas que sofrem de distúrbios de alimentação (como a anorexia nervosa e a bulimia).

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No Jornal Nacional de 12/10/2000, saiu uma reportagem sobre os danos que dietas rígidas provocam na memória e no raciocínio, afirmando que uma semana de dieta rígida pode causar danos cerebrais irreversíveis.

A cultura do corpo nunca esteve tão visível, mas, apesar de percebermos o que acontece em nossa volta, temas relacionados às academias de ginástica parecem fúteis para algumas comunidades científicas. Os E.U.A. são pioneiros no que se refere aos estudos sobre esta questão. São inúmeras as publicações científicas a este respeito, inclusive em revistas e jornais científicos relacionados à área de saúde, mas que contam com uma abordagem mais holística do corpo e de suas representações. No Brasil, até o início de 2000, temas relacionados à cultura física na contemporaneidade apresentavam-se como uma seara aberta por alguns núcleos de pesquisa, mas inexplorada. Somente alguns discutiam com visibilidade o tema, entre eles o grupo de pesquisa Antropologia do Corpo e da Saúde do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGA/UFRGS) e o Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Neste último destacam-se as pesquisas de César Sabino – As Drogas de Apolo: O Consumo de Anabolizantes em Academias de Musculação, e os trabalhos de Miriam Goldemberg.

No departamento de antropologia da USP, não há nenhum grupo de pesquisa estudando o tema, mas tivemos o livro organizado por Renato Queiroz, O Corpo do Brasileiro: Estudos de Estética e Beleza(2000). No entanto, posteriormente, não surgiu nenhuma outra pesquisa no departamento sobre o tema, e creio que esta é a primeira tese que versa sobre a cultura física atual. Já em outros estados, como o Rio de Janeiro, entre 2000 e 2005 os trabalhos se multiplicaram e várias teses e livros foram defendidas e publicados, entre eles, os trabalhos de Alexander Edmonds (2002) sobre cirurgias plásticas, e outros trabalhos de Miriam Goldemberg (2002 e 2004) e Sabino (2000). Em São Paulo, destacam-se as historiadoras Mary Del Priori (2000 e 2004) e Mônica Raisa Schpun (1999), ambas do departamento de História da Universidade de São Paulo.

Acredito que este crescimento do número de publicações reflete a importância que temas relacionados ao corpo na contemporaneidade tem alcançado em várias partes do país. De temas marginais e tidos até como supérfluos, as academias de ginástica e a identidade da mulher “malhadora” hoje estão em evidência e apontam para antigas e novas lógicas que têm como suporte privilegiado o corpo e seus mecanismos de visibilidade. Talvez estejamos, como propunha Mauss (1974), contribuindo com uma parte do infinito inventário do uso que os homens fazem de seus corpos, num cenário (as academias de ginástica), até o início do século XXI, pouco explorado.

Por fim, na temática do corpo, é preciso ressaltar o magistral trabalho de Löic Wacquant, em seu livro Corpo e Alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe (2002), que de uma forma literalmente visceral, propõe que a sociologia “deve se esforçar para

capturar e restituir essa dimensão carnal da existência (...) Para tanto, nada como a iniciação iniciática e mesmo a conversão moral e sensual ao cosmo considerado como técnica de observação e análise”, ou, em outras palavras, a necessidade de tematizar “uma sociologia não somente do corpo, no sentido do objeto (o inglês fala ‘of de body’), mas também a partir do próprio corpo como instrumento de investigação e vetor do conhecimento (‘from the body’)” (Wacquant, 2002: 11, 12). Wacquant inicia seus estudos num clube de

boxe de um bairro do gueto negro de Chicago e vai percebendo que a reflexão sócio- antropológica a respeito do boxe deveria mostrar que a prática do esporte faz do corpo “ao

mesmo tempo a sede, o instrumento e o alvo” (Wacquant, 2002: 32) da pesquisa, ao ponto

dele, que nunca havia praticado esportes, converter-se ao boxe para melhor apreender, de dentro, a lógica do sistema.

Com este trabalho, o autor situa definitivamente o corpo no centro da reflexão acadêmica e recoloca as questões já levantadas pelos antropólogos pós-modernos, que defendem, entre outras idéias, que o pesquisador pode participar do grupo estudado e, ainda

No documento Corpo e identidade feminina (páginas 54-62)