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CAPÍTULO III: SANGUE DE COCA-COLA: ANÁLISE DO ROMANCE DE

3.2. A estética do carnaval: comentários analíticos de três núcleos narrativos

3.2.2. Camaleão Amarelo

A personagem denominada Camaleão Amarelo tem o objetivo de recuperar os doze dias que descontaram no seu salário. A narrativa inicia com a cena do Camaleão Amarelo espancando o filho de 7 anos. Sem uma explicação para tal fato, o protagonista interrompe a surra para rezar para a Borboleta Verde, que entra em sua sala, e pede a ela fé. Depois, o

Camaleão Amarelo veste o blazer azul e vai em busca da explicação para o desconto do salário. Ele trabalhava na W.C. Advertising, uma agência de publicidade controlada pela “Organização de Deus” e foi responsável pela campanha que circulava na cidade, “Alegria: Deus é brasileiro”, para anunciar a Revolução da Alegria do 1ª de abril.

A denominação Camaleão Amarelo provém da conformidade do protagonista perante as situações. Ele sempre aceita o que lhe é incumbido mesmo quando não concorda e ainda consegue se adaptar a uma situação que lhe prejudica. Essa facilidade em adaptação, justifica a expressão pelo qual o narrador lhe denomina:

Como um camaleão, ele soube se adaptar a tudo, nunca foi um só na sua vida, sempre viveu mais de uma vida, duas, três vidas, menos uma: a que devia ser a vida dele.

- Tudo porque eu tenho sangue de Coca-Cola... (DRUMMOND, 2004, p. 66)

Por querer permanecer em uma neutralidade, conforma-se com toda situação que lhe é designada. Reprimido desde sua infância, o Camaleão Amarelo repete sua condição de alguém que tem sangue de Coca-Cola, de ser silenciado e reprimido por outras opiniões. Essa condição repetida incansáveis vezes pelo narrador e pela própria personagem intitula o romance de Roberto Drummond. Assim como o Camaleão Amarelo, com seu sangue de Coca-Cola, também é o Brasil: conformado, acuado, sem autonomia, por também ter sangue de Coca-Cola.

A neutralidade que o Camaleão Amarelo anseia também é um posicionamento ideológico dentro do romance. Na concepção do Círculo de Bakhtin, “qualquer enunciado é sempre ideológico – para eles, não existe enunciado não ideológico” (FARACO, 2009, p. 47). Em meio aos conflitos de vozes dominantes, como a do General Presidente do Brasil, do piloto do Helicóptero n.3 e do sargento da Central de Comando, ou do assassino Tyrone Power, e vozes amedrontadas, como a do Homem do Sapato Amarelo e outras diversas vozes, está o discurso de alguém que não deseja ser visto, alguém que deseja ser comum e por isso busca a imparcialidade e o discurso neutro, como o Camaleão Amarelo. Assim, seu discurso está em conflito com os discursos e ideologias das outras personagens em seus respectivos mundos, participando do grande diálogo que constitui a obra:

Ele parece um Camaleão Amarelo, e, enquanto caminha na rua, respirando o ar com lança-perfume, querendo cantar e pensando no filho, ele se lembra do seu amigo G. Horta falando: Olha, quando você se sentir muito derrubado, você escanhoa bem a barba, passa no rosto uma loção bem forte, veste a

melhor roupa que você tiver, e faz uma cara boa, pra dar a impressão de que você está na melhor, porque se notarem que você está por baixo, vão te foder ainda mais...

Ele faz sinal para um táxi, sente a palma da mão queimando.

- Meu filho, seu pai te bateu hoje, meu filho, porque seu pai tem sangue de Coca-Cola correndo na veia, um dia, meu filho, você vai saber disso e entender seu pai... (DRUMMOND, 2004, p. 24-25)

Desde sua infância no Colégio do Bosque, local para onde os pais enviavam seus filhos para serem castigados, o Camaleão Amarelo é silenciado e reprimido pela figura ditadora do Padre Coqueirão, diretor do colégio. A voz repressora do diretor lhe persegue durante a vida e cria dentro do Camaleão Amarelo um campo de concentração dentro de si:

Junto dos latidos dos cães, ele escuta a voz do padre Coqueirão, diretor do Colégio do Bosque, ameaçando com o fogo do inferno, o sotaque alemão, e o sotaque alemão dele tornava o inferno mais terrível. A vida toda o Camaleão Amarelo cedeu ao padre Coqueirão: a todos os padres Coqueirão que encontrou pela vida. (DRUMMOND, 2004, p. 43)

É no Colégio do Bosque em que ocorre seu primeiro contato com a repressão e também é onde o Camaleão Amarelo adquire a identidade de Esther Williams, apelido dado pelo Sargento Marcelino, professor de educação física no Colégio do Bosque. Os capítulos que relatam sua infância no colégio aparecem com o subtítulo “Jornal de Ontem” e com os acontecimentos do período dividido nas seções que variam de acordo com a história relatada. Aparecem as seções: “Coisas que incomodam”, “Você sabia?”, “Filmes em cartaz”, “Esportivas”, ou outras acrescentadas de acordo com a narrativa.

O sargento Marcelino era apaixonado pelos olhos verdes de Esther Williams. Em um dos capítulos que mostra a infância da personagem, há a narração de uma luta de boxe entre Esther Williams e o Sargento Marcelino. O leitor deduz que a narração e os comentários são feitos pelo Homem do Sapato Amarelo pelos vícios de linguagem e jargões utilizados, o que seria incoerente, já que ele só transforma-se em tal figura no período de governo militar. Com o jargão “coragem para dizer a verdade”, o comentarista, que nos parece ser o Homem do Sapato Branco, antecessor do Homem do Sapato Amarelo, pela linguagem exagerada e sensacionalista, vai informando ao leitor dos sentimentos e das vontades do Sargento por Esther Williams.

A narrativa da infância de Esther Williams é crucial para a compreensão da personalidade da personagem em sua fase adulta. O Camaleão Amarelo era uma criança que promovia tentativas de fugas, ganhava campeonatos e jogava no time da escola. Assim como

as outras crianças, o medo do padre Coqueirão ia transformando a personalidade infantil e aventureira em um adulto medroso e conformado com as situações que lhe eram contrárias:

Houve um momento em que o carro do general Médici parou perto dele e os olhos dele cruzaram com os olhos do general Médici, uns olhos azuis, puxando para cinza esverdeados. E ele não desviou os olhos, nem o general Médici desviou. Os meninos dos grupos gritavam “Viva o Presidente! Viva o Presidente!”, mascando chicles de bola, e ele, calado e sério, olhava nos olhos do general Médici. Então os agentes secretos o cercaram. E o general Médici não tirava os olhos azuis dele e ele passou a gritar: “Viva o Presidente! Viva o Presidente!”, e a caravana seguiu.

- Eu gritei “Viva o Presidente!” quando o meu coração queria gritar: “Assassino! Assassino!”. Gritei por causa do meu sangue de Coca-Cola, assim como eu pulei comemorando o gol do Flamengo, mesmo sendo Botafogo doente, no Colégio do Bosque... (DRUMMOND, 2004, p. 44)

Foi crescendo nesse contexto de repressão desde a infância, na valorização da ordem do Sargento Marcelino, “O primeiro general da minha vida foi um sargento: o Sargento Marcelino...” (DRUMMOND, 2004, p. 168), e na ditadura do Padre Coqueirão, que o Camaleão Amarelo seguiu vivendo em repressões e ditaduras, principalmente dentro de si.

De modo simultâneo a esses capítulos que narram os fluxos psicológicos do protagonista e que revelam a infância no Colégio do bosque, temos os capítulos que trazem a narrativa do presente, em que o Camaleão Amarelo narra sua trajetória em busca da devolução da remuneração cortada. Enquanto os capítulos da infância apresentam o subtítulo “Jornal de Ontem”, os capítulos que narram o presente da personagem têm o subtítulo “Sangue de Coca-Cola”. Os subtítulos revelam a história a ser narrada: “Jornal de Ontem” indica uma narração do passado, enquanto “Sangue de Coca-Cola”, demonstra uma personalidade já desenvolvida e que interfere no presente do Camaleão Amarelo, como ele mesmo aponta diversas vezes em seus discursos.

No decorrer dos capítulos, que fazem parte do mesmo núcleo narrativo, vamos conhecendo a vida da personagem paulatinamente e de modo aparentemente desordenado, já que muitas informações relevantes no início do texto vão aparecendo somente nos capítulos finais. Desse modo, é interessante observar como vai sendo criada a identidade do Camaleão Amarelo a cada fase de sua vida. Com sua infância no Colégio Bosque narrada em núcleos narrativos específicos, os outros momentos da vida vão sendo diluídos em fluxos psicológicos no decorrer do núcleo narrativo do seu momento presente. Assim, conhecemos as identidades que o Camaleão Amarelo adquire durante a vida: Esther Williams no colégio Bosque, aos 17 anos é conhecido por Ava Gardner e aos 25 anos como Sophia Loren, todas atrizes que

tinham em comum o fato de terem os olhos verdes, além de uma beleza incontestável. No local onde ele vai reivindicar o desconto de 12 dias do salário, os funcionários o nomeia de James Scott Davidson, o que aparenta ser o real nome da personagem. No entanto, o único nome que parece identificar o protagonista em todas as fases da vida é Camaleão Amarelo.

Os vários nomes que identificam a personagem se assemelham a máscaras. De modo comum no romance, as máscaras participam da obra como elemento da cosmovisão carnavalesca. No caso do Camaleão Amarelo, as diversas máscaras definem uma personalidade para ele, sobretudo a denominação que o narrador utiliza de Camaleão Amarelo. O animal de fácil adaptação a todos os ambientes, singulariza o próprio sujeito a partir de sua característica primordial no romance. As demais nomenclaturas, dão uma imagem frágil para a personagem, que para se livrar de tal visão feminina decide amar 5 mil mulheres.

Sobre a perspectiva da nomeação do sujeito artístico no universo carnavalesco, Bakhtin (2010b, p. 408) explica que “as coisas e os seus nomes são liberados dos entraves da concepção agonizante do mundo, são deixados em liberdade e adquirem uma individualidade livre e particular, enquanto que os seus nomes se aproximam dos alegres nomes-alcunhas”. Portanto, o carnaval confere uma liberdade tamanha que interfere na nomeação e identificação do homem, que perde seu nome próprio, para ser identificado por meio de um nome-alcunha. No caso do Camaleão Amarelo, este nome-alcunha muda de acordo com o tempo em que vive. Assim, o nome está associado à própria transformação de si mesmo.

Durante um longo período de sua juventude, o Camaleão Amarelo vive para cumprir o que havia prometido para si mesmo: amar 5 mil mulheres diferentes. Enquanto seus amigos, símbolos da luta contra a ditadura, estavam sendo mortos, o protagonista seduzia e amava cada mulher que encontrava até o dia que conheceu Tati, sua esposa. Mesmo tendo participado do Partido Comunista, o Camaleão Amarelo sempre esteve inerte àquela situação, não porque era indiferente, mas porque sempre fora reprimido pelo ditador que tinha dentro de si e que o fazia ter sangue de Coca-Cola, ser uma pessoa passiva em qualquer momento:

Antes de conhecer Tati, e de esfriar com todas as outras mulheres, só respeitava os dias santos, mesmo nos dias mais convulsos do Brasil, ele amava uma mulher diferente da véspera, nunca repetia a mesma mulher. Na noite de 1º de abril de 1964, ele estava deitado com uma mulher, chamava-se Tê e era a de nº 2.833, e o telefone tocou, o amigo Charles disse:

- O Jango tomou um avião pro exílio...

Ele pôs o telefone no gancho, voltou pro sofá, e amou Tê com mais emoção. E na noite em que o AI-5 foi decretado, uma noite em que todo o Brasil entrou em transe, ele estava em cima de uma participante da lista das

“Dez Mais”: ele a beijava no chão da casa de paredes de vidro, média luz na sala, e o locutor Alberto Curi, da “Voz do Brasil” começou a anunciar a decretação do AI-5, no rádio onde, até ainda agora, o cantor Roberto Carlos chorava uma música: ele ouviu um pedaço do AI-5, sem sair de cima da “Dez Mais”, os dois de respiração suspensa, mas logo a beijou de novo: era a mulher de nº 3.897...

[...]

Mas ele, o Camaleão Amarelo, não se preocupa com o urso. Está na fila, pensando: os amigos pegaram em armas, assaltaram bancos, sequestraram embaixadores, desviaram aviões para Cuba, foram presos, torturados, mortos, exilados, banidos, condenados à prisão perpétua, mas ele ia amando as mulheres, escrevendo os nomes delas em cadernos espirais. Lembra da amiga Maria Lúcia Petit, a cara de menininha, ela que morreu na guerrilha do Araguaia, convidando-o para pegar em armas.

- Você morreu tão nova, Lucinha! (DRUMMOND, 2004, p. 170-171)

Preocupado exclusivamente com o problema do salário, o Camaleão Amarelo não dá importância aos comentários acerca do Urso libertador, elemento fantástico que tem total relação com a personagem desse núcleo narrativo. Depois de ir em busca da justificativa para o desconto do salário no edifício Palácio de Cristal, onde está localizada a “Organizações de Deus”, o Camaleão Amarelo inicia uma longa jornada em vários setores de um prédio e de uma organização que parece não ter fim, para saber o motivo do corte de 12 dias no salário.

Após esperar em uma fila para ser atendido no prédio das “Organizações de Deus”, o Camaleão Amarelo é levado a uma série de salas onde não conseguem solucionar o problema. Pelo contrário, todos os funcionários apontam acusações contra James Scott Davidson, que é como o nomeiam. Devido a confusão entre o caráter real e fictício das personagens do romance e das situações relatadas, não há uma explicação para tal denominação e o leitor desconhece a origem do nome James Scott Davidson.

Organizado em uma pasta confidencial, os funcionários guardam cada pensamento do protagonista, uma CIA divina, que conhece cada passo e cada intenção do Camaleão Amarelo desde sua infância. Na sala do chefe do departamento pessoal das “Organizações de Deus”, James Scott Davidson participa de uma espécie de inquisição incompreensível, já que trata de atos banais e cotidianos ou ainda meros pensamentos ou intenções e que não configura um crime propriamente dito, mas no núcleo é tratado como um delito terrível e injustificável:

- Confessa que, enquanto os amigos eram presos por subversão durante o governo do marechal Castelo Branco, o declarante limitava-se a anotar nomes de mulheres, com correspondentes números, em seus cadernos espirais?

- Confessa eu, logo que o marechal Castelo Branco assumiu o governo do Brasil, o declarante passou a usar óculos escuros como os de Ray Charles?

- Confesso.

- Confessa o declarante que, não obstante a sua alienação política, isso não impediu que o declarante soltasse foguete no dia da trágica morte, num desastre aéreo, do ex-presidente marechal Humberto de Alencar Castelo Branco?

Confesso. (DRUMMOND, 2004, p. 89) As acusações seguem mais absurdas:

Eu vou ler as acusações que constam no Dossiê aqui está: Você não é um que na noite de 31 de março de 1964, quando da vitória da Revolução que salvou o Brasil do caos e do comunismo, disse textualmente: “- Os militares vão ser postos pra correr daqui a 6 meses, a chute na bunda”? Confessa que disse?

- Sim, mas...

[...] - Confessa que tão logo ficou sabendo, anos mais tarde, que o marechal Costa e Silva, digníssimo Presidente da República do segundo governo da Revolução de 31 de março de 1964, teve uma trombose, riu e comentou textualmente: “- O Castelo já pagou o que fez, agora é a hora do Costa e Silva pagar”. Confessa que falou assim?

- Confesso, mas eu não estou entendendo, eu...

[...] - Confessa que, na época do terror no Brasil, você estava cuidando de uma fazenda da sua família no Vale do Rio Doce, onde criava gado e devastava a natureza, fabricando carvão vegetal, e que, tratando dos bois, você imaginava que, se o Capitão Carlos Lamarca aparecesse por lá, você o acolhia e se negava, mentalmente, a revelar o fato às autoridades de segurança?

- Confesso, mas... (DRUMMOND, 2004, p. 126-127)

O Camaleão Amarelo sempre contrariou a si mesmo, em busca de tranquilidade. Não teve a coragem de seguir os amigos nas lutas armadas porque preferia a comodidade da alienação política e procurou adaptar-se ao governo ditatorial que estava no poder, como sempre se adaptou às ditaduras que viveu. Desse modo, ele é acusado de algo que julgou comum e impressiona-se, já que viveu uma vida invisível. Quando enviado para outro funcionário, as acusações aumentam e assim sucessivamente. Acusações fora do comum, que nada tem a ver com crimes, mas com pecados. As acusações são julgamentos divinos sobre atos tão comuns que alguns nem chegaram a se tornar atos, mas probabilidades. É interessante observar, portanto, a onisciência das “Organizações de Deus” na vida do Camaleão Amarelo, julgado e reprimido desde a infância por um padre.

Os funcionários do local apresentam uma peculiaridade em comum com o próprio Camaleão Amarelo. Todos eles são nomeados com denominações animalescas: a Hiena, o Tamanduá Bandeira, o Ouriço Caixeiro entre outros. Cada nome revela uma personalidade, tal

qual acontece com o protagonista do núcleo narrativo. No nome da Hiena enxergamos uma ironia debochada, no nome da Ouriço Caixeiro vemos sua personalidade severa e saudosista, e no nome do Tamanduá Bandeira percebemos um ser curioso e patriótico. Desse modo, cada personalidade combina com a denominação que lhe é imposta. A animalização do homem é um dos elementos que acusam a carnavalização e neste núcleo do Camaleão Amarelo é algo constante, pelos nomes próprios das personagens secundárias e do próprio protagonista, além da metamorfose deste mesmo protagonista em urso no final da narrativa.

Quanto ao caráter absurdo que rege as acusações feitas no Dossiê contra o Camaleão Amarelo, é característica comum aos moldes carnavalizados da narrativa em geral. Esse exagero em ações e o absurdo que se vê no núcleo narrativo resulta na característica fantástica que encerra a história do Camaleão Amarelo. Depois de falar com alguns funcionários das “Organizações de Deus”, o protagonista retorna para falar com a Hiena, agora com um sentimento de culpa, mesmo sabendo que não há culpa porque não existe acusação cabível. Contudo, ele sempre achou que fosse culpado de algo, desde a infância conseguiram fazer dele alguém culpado:

Os boleros são como cães e latem e têm olhos e vigiam, como o frei Tanajura vigia e, no “Quebra-Homem”, o Camaleão Amarelo se sentia culpado como agora se sente, agora em que é ele acusado de um crime que não sabe qual é, agora que ele aceita a culpa desse crime, para ele mesmo, o Camaleão Amarelo é sempre suspeito de alguma coisa: de um assalto, de uma morte, porque ele sempre teve sangue de Coca-Cola e sempre teve cães latindo dentro dele e boleros latindo e vigiando. (DRUMMOND, 2004, p. 259)

Ao ouvir a Hiena mostrar-lhe os motivos absurdos para o corte do salário, além da acusação acerca de um terrível crime, o protagonista escuta os comentários sobre do Fideltolah que está perambulando a Cidade de Deus na Revolução da Alegria: o urso Libertador. Atenta-se à notícia do Homem do Sapato Amarelo de que o urso está no edifício Palácio de Cristal, o Camaleão Amarelo sente-se encorajado e exige melhores explicações acerca do corte do salário. No ímpeto de coragem, que nunca havia tido, pela primeira vez o Camaleão Amarelo não se deixa acomodar pela sentença dada pela Hiena, de que ele cometeu um erro e não deveria reclamar do corte do salário. O Camaleão Amarelo, então, não aceita uma decisão e ainda questiona, o que o obriga a transformar-se:

- Quem cometeu um crime tão bárbaro como o senhor devia se calar, jamais devia falar em míseros 12 dias de salário cortados... Depois o Computador Eletrônico sempre tem razão, eu já disse...

O Camaleão Amarelo se sente encorajado pelo urso, grita: - Exijo uma explicação!

A Hiena aponta a Máuser para o Camaleão Amarelo e o Camaleão Amarelo vê quando a Hiena fica pálida e sai correndo com a Máuser na mão, gritando:

- Socorro! O urso! Socorro! (DRUMMOND, 2004, p. 271)

A Hiena relata o acontecido para o Homem do Sapato Amarelo. A transformação é inexplicável, sobretudo, para o leitor, que mesmo em uma narrativa tão intrigante, não esperava tal mudança. Aumenta na Cidade de Deus o cheiro do lança-perfume e de cavalo, depois do golpe dado no General Presidente do Brasil. O urso fica escondido no edifício Palácio de Cristal e lembra-se da mulher que disse chamar-se Brasil. O Camaleão Amarelo foi o parteiro dessa mulher que falava “portinglês” e rezava para a Santa Coca-Cola. Ela alegava que o filho seria o Jesus Cristo II que salvaria o Brasil.

A mutação do Camaleão Amarelo em urso faz sentido quando pensamos que ele