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O cheiro do carnaval: diálogos entre os núcleos narrativos e o contexto ditatorial

CAPÍTULO III: SANGUE DE COCA-COLA: ANÁLISE DO ROMANCE DE

3.3. O cheiro do carnaval: diálogos entre os núcleos narrativos e o contexto ditatorial

Observamos alguns elementos que se fazem presentes nos núcleos narrativos analisados, no entanto a obra apresenta outros núcleos igualmente relevantes para a compreensão da cosmovisão carnavalesca. Reiteramos que a análise individual será restrita aos três núcleos analisados na seção anterior, mas torna-se imprescindível discutir a relação entre os núcleos definidor do enredo do romance.

Apesar da divisão dos personagens em núcleos narrativos, o romance apresenta uma estrutura que unifica os núcleos em um ambiente de carnaval. Cada personagem aparece em diálogo com o outro e com o meio crítico-festivo descrito na narrativa. Diante disso, podemos afirmar o dialogismo do romance, além de um caráter polifônico que iguala todos os protagonistas nesse mundo invertido da carnavalização. O conflito de vozes, cada qual com sua prioridade, define uma individualidade, mas, sobretudo, uma união na interação dialógica. Os contrapontos entre os discursos ideológicos não afastam cada sujeito, e sim, os une, por meio da sátira à sociedade do período ditatorial brasileiro.

Essa unificação que origina uma familiaridade entre as personagens, nasce de uma relação entre os discursos, sejam eles semelhantes ou conflitantes. Cada discurso ideológico apresenta uma posição de relevância em seu núcleo narrativo que é equiparada, isto é, não se coloca como superior a outros núcleos. No entanto, a interação dialógica não se esgota nas atitudes responsivas entre as personagens, mas se estende à resposta ao próprio contexto externo.

A resposta ao contexto autoritário e o diálogo entre os protagonistas indicam um confronto de vozes, cada qual constituída a partir de um ponto de vista individual sobre o mundo e de uma consciência plena, capaz de criar no romance um universo dialógico complexo. Estamos diante, de uma mistura de vozes como na sociedade carnavalesca, por meio dos elementos comuns de uma cosmovisão carnavalesca, a familiarização das personagens envolvidas no mesmo processo de revolução, além do elemento da praça pública, o espaço comum do romance. Dessa forma, todos os discursos estão equiparados, apresentam o mesmo grau de importância dentro da narrativa, constituindo, assim, um caráter polifônico. Apesar dessa unificação discursiva na formalização estética do romance, observa-se o sujeito

preso em sua consciência, sua individualidade e seus objetivos pessoais como fruto de uma separação, que atinge não somente o campo da autoconsciência, mas do próprio plano narrativo.

A multiplanaridade, isto é, os diversos planos na narrativa, colabora no afastamento das personagens e ao mesmo tempo em uma mimese da interação que se vê no universo discursivo, em que, apesar de se ter as vozes restritas a seus espaços sociais, elas não deixam de reverberar socialmente, construindo mundos que lhe são próprios no romance de Roberto Drummond. As vozes carnavalizadas ecoam no universo artístico construído, de modo que, mesmo situadas em seus núcleos narrativos específicos, a interação dialógica não é perdida.

Diante disso, o que podemos definir de confronto entre os núcleos, ora afastamento ora unificação entre eles, constrói um universo complexo de uma cosmovisão carnavalizada. A extrema individualidade criada na divisão de cada núcleo é abolida na carnavalização do contexto, em que direta ou indiretamente todos os protagonistas se entrecruzam e entrecruzam seus discursos ideológicos sobre o mesmo contexto ditatorial ridicularizado na figura destronada dos militares.

Sobre os diversos mundos que constitui o plano comum, isto é, o mundo que rege a narrativa, o romance de Roberto Drummond segue a máxima proposta por Bakhtin (2010a) de coexistência e interação. Em Sangue de Coca-Cola as personagens estão sitiadas em seu próprio plano, mas o carnaval na rua constitui o plano em comum e que unifica a todos. As personagens coexistem, cada qual apresenta um objetivo próprio e um discurso particular em interação contínua no presente, de modo simultâneo. Essa simultaneidade aparece dentro dos núcleos narrativos, mas também na relação entre eles. O romance é todo simultâneo, os fatos narrados de cada personagem acontecem ao mesmo tempo e lugar.

A problematização no aspecto presente do romance ocorre por não haver unificação entre os narradores dos núcleos narrativos, o que dificulta a identificação do discurso específico. A variedade de vozes e mudança de identidade que encontramos por vezes no interior do próprio núcleo dificulta uma organização dos planos narrativos e consequentemente uma organização no próprio romance.

Claramente se observa como elemento primeiro da carnavalização da obra a sátira ao contexto ditatorial ainda vigente na publicação do romance. De modo às avessas ao golpe originário, o romance ocorre em um dia de carnaval e satiriza a realidade ditatorial na data do 1ª de abril, dia da mentira. Esse episódio carnavalizado do dia do golpe originário, estabelecido entre 31 de março e 01 de abril de 1964, é construído de maneira a fazer sentido

em sua conexão com o riso crítico que se é criado na obra. Destarte, a carnavalização transforma o elemento de seriedade oficial em comicidade crítica.

A organização dos núcleos narrativos como forma de individualização e quebra de relações entre as personagens mimetiza o estado de repressão vivenciado no regime militar. O que é utilizado para romper qualquer interação direta entre os protagonistas acaba por favorecer a interação dialógica entre eles no romance, por meio do carnaval do contexto sócio-político, cronotopo comum entre todos.

A aproximação do universo discursivo e da criação artística não se encontra apenas no golpe ou no contexto da ditadura militar, mas na relação tênue e notória entre o real e o fictício. O limiar entre ambos os elementos e a fantasia também é pequeno, de modo que a identificação da personagem e a crítica ao contexto real apresenta um diferencial fruitivo no conhecimento de determinados detalhes da realidade vigente.

Os nomes e apelidos vinculados a sujeitos reais dão ao protagonista uma complexa construção de si, baseada nas características fixas de um sujeito real. Por vezes, essa construção é baseada em várias personalidades que garante um aspecto fantástico ao que outrora era real e tornou-se fictício. É o que acontece com Madame Janete, que aparece em Sangue de Coca-Cola nomeada como M. Jan, Obaluyaê Omulu e com o codinome Sissi, como da Imperatriz da Áustria. Uma mistura de personalidades e identificações que não colabora em uma construção definida do sujeito artístico, mas aumenta o grau da complexidade de si mesmo. Semelhante problemática acontece com o Camaleão Amarelo e seus diversos nomes, em que nenhum o nomeia, apenas seu apelido que é a própria identificação de si. Ainda vemos Tyrone Power, um matador não nomeado, caracterizado como alguém parecido com o ator que o identifica. Desse modo, a questão dos nomes e apelidos é um elemento comum em todos os núcleos narrativos e definidor da cosmovisão carnavalesca que a obra se propõe a fazer. Em Sangue de Coca-Cola nenhuma personagem é apresentada completamente segundo características delimitadas e próprias, mas segundo um número limitado de características secundárias e apelidos que lhe são atribuídos.

Segundo Bakhtin (2010b), os apelidos e nomes colaboram em uma indefinição do ser típico da carnavalização, em que se vive em um mundo mascarado e o próprio ser perde sua personalidade anterior e adquire novas identidades. O apelido aproxima o sujeito de outro alguém, mas nunca o identifica por completo. Há uma relação entre os nomes próprios e comuns que revela uma nova percepção acerca do nome, surge, portanto, o apelido como característica necessária na identificação. Esses apelidos trazem uma característica elogiosa- injuriosa ao sujeito identificado e nunca é proferido de maneira neutra:

Entre os nomes próprios e comuns, não existe, em certos aspectos, a fronteira nítida à qual estamos acostumados na língua literária e no estilo correntes. Certamente, as distinções formais permanecem sempre em vigor, mas no aspecto interno mais importante, o limite que as separa é extremamente atenuado. Esse enfraquecimento das fronteiras entre os nomes próprios e comuns é aliás recíproco. Tanto uns como os outros visam a um ponto comum único: o apelido elogioso-injurioso. (BAKHTIN, 2010b, p. 404).

Tornar um nome real em ficcional faz-nos refletir acerca de uma variedade de interpretações na busca de um sentido. Apelidos que misturam sujeitos reais como Marlon Brando e Jesus Cristo ou Brigitte Bardot e Esther Williams representam características que identificam a personagem e o nome perde seu caráter definidor, como nome próprio, e torna- se comum, enquanto adjetivo. Esse aspecto metonímico garante na carnavalização um olhar além do próprio nome, que se associa às transformações do protagonista e às máscaras que escondem uma identidade plena.

As metamorfoses que as personagens sofrem no decorrer da narrativa estão ligadas ao próprio acontecimento vivenciado no romance. O ambiente carnavalesco colabora nas transformações do sujeito e trazem acontecimentos passados que o faz retornar a este tempo. O elemento que auxilia nessa metamorfose é a borboleta que circunda todo o romance e leva, além da esperança, a transformação e familiaridade entre as personagens. Cada uma sente de repente algo de bondoso e esperançoso dentro de si no contato com a borboleta, algo que é em comum entre todos. A borboleta é o símbolo da renovação e transformação, elementos que fazem do romance uma construção inovadora, em sua inconclusão e de seus protagonistas. Ao inserir a cor verde, a borboleta adquire um novo sentido, além da metamorfose nata à sua condição, o da esperança, do devir. No século IV a. C., o mestre Taoísta Chuang Tzu já utilizava a borboleta e seu caráter de transformação e renovação em sua fábula do Sábio Chinês22.

Cada protagonista vivencia em seu núcleo algum anseio. Todos estão em um processo de transformação e desconhecimento de si mesmo. O golpe militar os transforma em outros, silencia, e a espera do salvador no carnaval do Brasil, na festa do Brazilian Follies, colabora na mudança dos protagonistas, que acabam encorajados. É o que acontece com Julie Joy ou Vera Cruz Brasil, Terê, o Homem do Sapato Amarelo e o Camaleão Amarelo. São

22 Na fábula, o Sábio Chinês sonha ser uma borboleta, mas o sonho era tão real que ao final ele não sabia se era

personagens reprimidos que ganham coragem no contato com a Borboleta Verde e/ou com a vivência na festa do Carnaval que anuncia algo de bom para o Brasil.

De maneira clara, o romance traz algumas metáforas e simbologias que obrigatoriamente faz o leitor refletir em busca de significados, como no caso da Borboleta verde da felicidade. O urso libertador do Brasil apresenta uma imagem incerta relacionada ao Super Homem, Marlon Brando, Alain Delon, Francisco Cuoco ou Jesus Cristo e vai se moldando a cada novo encontro relatado pelo Homem do Sapato Amarelo. O urso como a figura libertadora do país nos sugere diversas interpretações relacionadas a figura comunista da antiga União Soviética e sua associação com Jesus Cristo reafirma a visão de um governo igualitário perante todos. O fato de ser considerado um Fideltolah também corrobora com essa visão comunista da salvação do Brasil em meio à ditadura do General Presidente. Os atores citados revelam sua posição de imponência e poder, além de aproximá-lo da percepção de beleza da época. Terê que aguarda ansiosamente a aparição do libertador encabeça o movimento de carnaval na rua, em uma mistura de festa e procissão, culminando em sua morte em defesa do urso libertador.

A figura do urso enquanto libertador também se associa à imagem da subversão de um urso do Gran Circo americano. Sem a liberdade, semelhante ao que vivencia as pessoas durante a ditadura, o urso demonstra a coragem em subverter a dominação ditatorial, lançando a salvação por meio do encorajamento do povo em sair às ruas, tal como encorajou Terê. Isso justifica o fato de ao final do romance o próprio Camaleão Amarelo, em seu primeiro gesto de coragem, contrário à repressão de si mesmo e à sua neutralidade, transformar-se no urso.

Essa metamorfose evidencia a zoomorfização do sujeito e das divindades a ele associadas. O Camaleão Amarelo, personagem que já é associada a uma figura animalesca, metamorfoseia-se no próprio urso salvador, a imagem divina da salvação e coragem, no desenlace do romance. Além disso, a zoomorfização das figuras divinas do urso e da borboleta colabora na inferiorização do elemento divino, característica comum da cosmovisão carnavalesca construída na obra. Por fim, acrescenta-se a essas divindades, a imagem da Santa Coca-Cola como forma de ridicularização e escravização do homem às multinacionais. A carnavalização rebaixa o homem, tornando-o animal, e constrói uma visão de insignificância da figura divina.

Além dessas simbologias, divindades e transformações contínuas dos protagonistas, destacamos também como elemento primordial da carnavalização, o destronamento das figuras oficiais. Inserimos nesse grupo não apenas o General Presidente, notoriamente o bufão

do enredo, mas os militares, símbolos da detenção da autoridade no regime militar e o matador Tyrone Power, imagem da tortura e violência ditatorial.

No romance, os militares se destacam pela maneira quase pueril e ao mesmo tempo abobalhada de se comportar, reduzidos estruturalmente no piloto do helicóptero número 3 e no comandante da central de comando. O diálogo do núcleo narrativo segue cheio de jargões militares e ao mesmo tempo foge da atitude autoritária, constituindo uma relação fraternal que se desvia das características comuns aos soldados treinados para o combate da subversão. A formalidade típica da hierarquização das vozes no diálogo entre eles vai sendo perdida e dando lugar ao sentimento de paternidade do comandante e à fragilidade infantilizada do soldado. Essa mudança de personalidade constitui o destronamento da figura de autoridade do universo discursivo e é reafirmado no destronamento e ridicularização da figura-mor do sistema ditatorial: o ditador. Com a transformação do General Presidente, o romance se constrói claramente sobre uma cosmovisão carnavalizada do universo discursivo, com fortes elementos estéticos que reafirma tal visão de mundo invertida.

Os acontecimentos do passado de cada protagonista não são postos com exatidão nos núcleos. A própria configuração temporal e espacial está em constante oscilação. O fato da narrativa se passar no presente já auxilia no inacabamento da obra, em uma desorganização para o leitor que parece montar um quebra-cabeça em sua leitura. O que aumenta a complexidade do romance é o fato de não se estabelecer apenas no presente, mas de oscilar em um passado desconhecido de cada personagem. Esse passado nunca nos é esclarecido, mas lembrado no diálogo velado do personagem com sua consciência. A confusão entre presente e passado ainda aumenta quando é inserido em determinados momentos, sobretudo no núcleo narrativo de Tyrone Power, o futuro. O romance anuncia algumas ações que vão acontecer no futuro da narrativa e até mesmo do próprio contexto sócio-político da época.

E 1991 ou 1992, quando fecharam a tampa do caixão e ficou aquela escuridão, Tyrone Power sentiu aquela vontade de ver Fleury, de falar com Fleury, a mesma vontade que sente agora, neste anoitecer de 1º de Abril. (DRUMMOND, 2004, p. 234)

Em 1991 ou 92, quando o da mão enfaixada perguntou, Tyrone Power se lembrou do momento que vive agora, neste 1ª de abril, muito anos antes de 1991 ou 92: se lembrou de quando ele escutava estes rumores que entram agora pela janela, rumores de povo cantando, de mistura de procissão, passeata e carnaval, e da vontade de ir embora que dá nele. (DRUMMMOND, 2004, p. 265)

Nessas passagens, observamos como a configuração temporal se apresenta no núcleo de Tyrone Power. O futuro é narrado de modo distanciado, como uma narração ulterior. Esse narrador onisciente conhece não apenas o futuro do protagonista, como também o futuro além do próprio universo discursivo. A posição de submissão da personagem, como aquele que realiza as execuções da repressão, revela uma submissão com o próprio narrador de seu núcleo que detém o conhecimento desde sua consciência até seu futuro, como uma espécie de deus.

Acontece de maneira semelhante no núcleo narrativo do General Presidente do Brasil. No entanto, em tal núcleo o narrador deixa de ser onisciente para tornar-se uma espécie de julgador das ações do General. Mesmo em 2ª pessoa, como um participante da narrativa, o narrador anuncia desde o início do romance o golpe que está para ser dado pelo fiel guarda- costas do Presidente, o Cavalo Albany.

A complexidade espaço-temporal apresentada no romance nos reporta a uma reflexão acerca do que Bakhtin (2010c) denomina como cronotopo. Este conceito está intimamente ligado à imagem do homem a partir de sua posição social e o tempo histórico em que está inserido. Sendo assim, o novo romance almeja a “recriação de um mundo espaço-temporal adequado, um cronotopo novo para um homem novo, harmonioso, inteiro, e de novas formas para as relações humanas” (BAKHTIN, 2010c, p. 283). Essa configuração temporal e espacial incerta em Sangue de Coca-Cola remete à noção do homem incompleto, o desconhecimento de si mesmo e sua imagem mascarada diante da realidade vigente. O tempo e o espaço reproduzem a própria complexidade humana, de mudança e de construção de si, em um passado incerto até para o próprio sujeito artístico, um presente cheio de dúvidas e de expectativas para um futuro ainda escuro. No caso do futuro revelado de Tyrone Power, marca uma falta de expectativa, pela própria submissão dele enquanto matador e desconhecedor de suas vítimas, apenas agente de uma ação.

O cronotopo do carnaval favorece também esse novo reconhecimento do homem no romance do Roberto Drummond. Ele revela uma nova percepção da sociedade oficial massacrada pelo regime militar, dando um ar de esperança e renovação com a alegria e metamorfoses que o carnaval abre caminho. A sátira ao grave contexto sócio-político revela as ideologias de modo equiparado, seja elas dos dominantes, seja dos oprimidos. Desse modo, o grande protagonista do romance, em todos os núcleos narrativos é exatamente esse cronotopo unificante do carnaval. É ele que une todos os discursos ideológicos divididos em seus núcleos narrativos, constituindo um olhar multifacetado sobre o contexto sócio-político do período de ditadura militar brasileiro.

O engajamento do romance é construído a partir desse olhar multiforme dos sujeitos artísticos. Cada um apresenta uma posição ideológica e um discurso que constrói o período a partir das vozes que ecoam no universo discursivo. Dessa maneira, o romance é considerado dialógico porque, assim como Dostoievski, consegue transpor para o universo artístico aquilo que se consegue auscultar na sociedade do período do regime militar. A obra, dessa forma, não é um espelho desse contexto histórico, mas uma construção renovada que se baseia nessa realidade. Nisso consiste o conceito de redução estrutural proposto por Antonio Candido (2011) e que certamente é corroborado em Sangue de Coca-Cola.

A carnavalização do romance favorece a quebra da ideologia dominante e seu alinhamento igualitário com os demais pontos de vista sobre o mundo. As vozes das autoridades tornam-se insanas, enquanto as vozes reprimidas se encorajam. Essa inversão, típica do carnaval, apresenta uma ideologia mascarada de inferiorizar a posição dominante e oficial do mundo, dando lugar à irreverência crítica com a ascensão das camadas populares. A atitude ideológica do romance com a carnavalização é uma resposta ao regime militar e sua tentativa de silenciar a ideologia literária. É importante ressaltar que o romance não dissemina uma ideologia de esquerda, mas cumpre seu papel em construir no plano artístico as posições e discursos sociais do universo discursivo como um todo, desde os discursos dominantes da direita até seu extremo oposto ou da neutralidade, que também é considerada um posicionamento ideológico.

Dessa maneira, ao lado da voz insana e ridicularizada do general ou das vozes abobalhadas e submissas dos militares está a voz de Terê, uma moça que decide colaborar na libertação do Brasil, porque uma vidente previu que sua liberdade está diretamente ligada à salvação do país. Muitas vezes, percebe-se que o discurso de Terê, apesar de se caracterizar como de esquerda, reflete um desejo individual. Seu discurso que associa o urso, preso no Gran Circo Americano, ao povo brasileiro, reflete criticamente o contexto político e social do país, também subordinado ao Estados Unidos. A crítica que se faz, portanto, ao egoísmo nato