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CAPÍTULO III: SANGUE DE COCA-COLA: ANÁLISE DO ROMANCE DE

3.2. A estética do carnaval: comentários analíticos de três núcleos narrativos

3.2.1. O Homem do Sapato Amarelo

O núcleo que primeiro aparece no romance é o do Homem do Sapato Amarelo, um repórter, que apresenta um passado marcado pela repressão durante os anos de chumbo do governo do General Garrastazu Médici. Foi, então, obrigado a fingir-se de morto para fugir da perseguição do regime e por isso, acabou afastando-se de sua amada Érika Sommer. Quando se transforma em Homem do Sapato Amarelo, ele tenta esquecer todas as lembranças e vira um repórter sensacionalista, com grande índice de audiência. Seu objetivo durante a Revolução da Alegria é entrevistar a morte. De modo geral, o enredo trata dessa tentativa de fuga de um tempo e da necessidade da máscara de Homem do Sapato Amarelo para conseguir sobreviver. Essa máscara constitui uma nova identidade, que não apaga a primeira, mas que alimenta uma tensão de vozes no interior do personagem.

É por meio dessa nova representação de si mesmo, que a personagem adquire uma certa liberdade, mesmo que momentânea. Aliás, a máscara como elemento carnavalesco, colabora para o nascimento de uma nova imagem do mundo e do sujeito, especialmente vinculada à liberdade encontrada no carnaval. Por meio da tensão de vozes interiores provenientes do conflito de identidade, o núcleo narrativo apresenta algumas peculiaridades relevantes para a composição formal do romance.

O Homem do Sapato Amarelo antes de ser considerado tal personagem era considerado um NSN (Nocivo à Segurança Nacional). Ele foi obrigado a esconder-se durante nove meses no período de repressão ditatorial e conseguiu forjar a própria morte, colocando seus documentos no bolso de um homem morto em um acidente de carro, no prédio da Medicina Legal:

Respondeu e ficou olhando para aquele morto, falando mudo com ele: Morto que eu não sei quem é, que eu não sei se estava alegre ou triste na hora da morte, que eu não sei se estava amando ou não, morto que morreu num Volks vermelho: você vai ser eu, e eu te agradeço, Morto do Volks vermelho, porque você vai me ajudar a viver, e, de vez em quando, eu vou pensar em você, Morto do Volks vermelho... (DRUMMOND, 2004, p. 52)

Depois de considerado morto pelo governo militar, o personagem assume a personalidade de Homem do Sapato Amarelo definitivamente, um radialista funcionário do Sapo diretor. Era Regra 3 do famoso Homem do Sapato Branco, personagem real do período ditatorial, mas um dia foi obrigado a substitui-lo quando o Homem do Sapato Branco resolveu ir em busca de uma cantora brasileira no Uruguai, e, pelo sucesso de Ibope, acabou garantindo a vaga como Homem do Sapato Amarelo.

Foi obrigado a afastar-se da amada Erika Sommer, militante de um grupo armado de esquerda, cuja lembrança permanece acesa e recorrente em sua narrativa. Erika participou do sequestro de um avião que ia em direção a Cuba em 1969. Ele a observa sempre para confirmar que ela nunca amará mais ninguém como o amou. A recorrência da figura de Erika Sommer vai ser tão forte, que algumas vezes o próprio fragmento do núcleo narrativo do Homem do Sapato Amarelo dá lugar ao relato da vida de Érika.

Depois da morte forjada e sem Erika Sommer, a vida parece não ter sentido, por isso o Homem do Sapato Amarelo se arrisca ao ambicionar entrevistar a morte. Com o emprego garantido na rádio do Sapo Diretor, as notícias e explicações acerca do contexto da Revolução da Alegria e do Brazillian Follies no alto do edifício Palácio de Cristal são narradas pelo Homem do Sapato Amarelo. Ele, por sinal, é quem primeiro vê a Borboleta Verde da Felicidade, ou melhor, vê a transformação de um cisco verde em Borboleta, a mesma que M. Jan anunciou que iria mudar o destino do Brasil.

Depois de assumida sua identidade como Homem do Sapato Amarelo, há uma tensão de vozes no interior do personagem. A voz do militante entra em um conflito dialógico com a voz da máscara assumida e, assim, o núcleo apresenta um microdiálogo, com o embate dialógico de vozes. Sabemos que após sua morte forjada, a personagem conseguiu a identidade falsa de Dirceu Zanelo. Mesmo assim, não há referências a seu nome real, nem mesmo a essa identidade forjada no núcleo narrativo. A própria personagem ora se apresenta como alguém que sente medo, ora como um corajoso repórter excêntrico. Sua identidade conflitante acaba desnorteando também o leitor, que ao tentar identificar a voz que relata, encontra uma variedade de posições e discursos antagônicos, ora medroso ou corajoso, ora preso ou livre, no discurso de uma só personagem:

Esses anos todos, ele foi seu próprio país estrangeiro, um morto-vivo, era famoso, tinha o maior Ibope do rádio brasileiro, mas não podia falar com a própria voz, rir como gostava, ir à praia, mostrar o verdadeiro rosto que tinha uma cicatriz no supercílio esquerdo. Era obrigado a usar disfarces, sempre aquela fantasia, que o identificava como o Homem do Sapato Amarelo, como se todo dia fosse carnaval no Brasil. (DRUMMOND, 2004, p. 13-14)

No exílio dentro de si mesmo, o Homem do Sapato Amarelo lembra sempre de seu passado militante, guerrilheiro. Só apresenta voz quando fantasiado, porque a voz do homem sem identidade, do guerrilheiro, foi ficando medrosa, como relata o narrador do núcleo. Pelo cheiro do lança perfume no Brasil, as lembranças vão ficando cada vez mais recorrentes e a voz de Homem do Sapato Amarelo mistura-se com o fluxo de consciência, que constitui a voz

do militante. No núcleo narrativo, a consciência do sujeito se confunde com a sua voz de Homem de Sapato Amarelo, como um discurso polêmico interno, que se torna um diálogo velado na consciência do personagem, tal como Bakhtin (2010a) afirma acontecer na consciência do personagem de Memórias do Subsolo, de Dostoievski. No discurso polêmico interno, as diversas vozes estão no interior da consciência do protagonista em interação polêmica, o que favorece a variedade de vozes presente em seu discurso. Em vez de um discurso monológico que estaria centrado na consciência de um só indivíduo, o que há é interação dialógica no discurso interior, com o embate de vozes em sua consciência, que acaba sendo revelado na própria voz do protagonista e na construção de sua identidade. Para Bakhtin (2010a, p. 233) o que impressiona é “a alternância constante e acentuada dos mais diversos tipos de discursos” no interior do protagonista.

No núcleo em questão, a alternância de discurso favorece uma mudança no ponto de vista da própria personagem e interfere até mesmo na narração. O narrador heterodiegético, que organiza a cena narrativa no núcleo, apresenta uma voz familiar em relação ao protagonista, expondo ao leitor os sentimentos latentes da personagem. Além disso, em certos momentos, dialoga com Érika Sommer com semelhante proximidade, possibilitando-nos presumir que o narrador poderia ser a consciência do protagonista. Eis uma passagem do romance:

O Ibope diz que ele é a maior sensação do rádio brasileiro, a televisão o quer, mas ele sente medo, medo de ser descoberto e de ser mandado embora da rádio e ficar desempregado, como naquela vez ficou, Erika Sommer. Hoje ele é famoso, as mulheres o procuram, mas ele sente medo quando o Sapo Diretor o chama em sua sala, imagina que vai ser despedido pelo Sapo Diretor, sempre de gravata borboleta, a verruga no nariz, aquela verruga que um dia, se Deus quiser, vai virar câncer. (DRUMMOND, 2004, p. 16)

Além disso, quando interrompe essa narração mais introspectiva e passa a narrar a cena individual do Homem do Sapato Amarelo, sua voz adquire uma semelhança com a voz do próprio repórter excêntrico.

O discurso do Homem do Sapato Amarelo, por sua vez, é um discurso que vem de fora e instala-se no interior de uma identidade já estabelecida, a do militante, e, consequentemente, origina um embate de vozes. Desse modo, a voz do repórter influencia na voz do militante, fazendo surgir um diálogo interno, no qual o discurso de um responde ao discurso do outro. A interferência de palavras, vozes e discursos vai constituir uma “confluência de duas

consciências numa consciência”, conforme Bakhtin (2010a, p. 256). A voz do Homem do Sapato Amarelo em tensão dialógica com a voz do militante constitui uma dualidade interior.

O discurso ideológico do Homem do Sapato Amarelo é demonstrado, sobretudo, em sua autoconsciência. A ideologia de esquerda escondida denuncia um período de extremo medo da repressão. A voz do militante é silenciada, dando lugar a voz sensacionalista do radialista:

Calça o sapato amarelo, veste o paletó azul, para diante do espelho grande no lado de dentro da porta do guarda-roupa, não, este não é ele, cadê a voz que dava patadas antes de 1ª de Abril de 64?, aquela voz que discutia, que fazia comícios, que gritava, cadê? (DRUMMOND, 2004, p. 16)

No entanto, mesmo enquanto repórter, o Homem do Sapato Amarelo incomoda o governo ditatorial com os noticiários acerca da Borboleta Verde da Felicidade e do Urso Libertador do Brasil, além de relatar tudo que acontece na Revolução da Alegria. Diante disso, o Homem do Sapato Amarelo é também considerado um NSN e por isso é seguido pelo Helicóptero número 3. Quando assume a voz de Homem do Sapato Amarelo, ele não teme a morte, e muitas vezes a deseja, e continua fazendo a cobertura do contexto de Revolução, a fim de conseguir, em algum momento, entrevistar a morte. Assim, a consciência medrosa do sujeito considerado morto, dá lugar à voz corajosa e ativa do Homem do Sapato Amarelo.

A curiosa relação entre real e fictício que norteia todo o romance, aparece no núcleo narrativo na figura do protagonista. A personagem do Homem do Sapato Amarelo é desenvolvida a partir de uma personagem real, o Homem do Sapato Branco, mencionado no núcleo narrativo. Jacinto Figueira Junior criou o programa que tinha como personagem o Homem do Sapato Branco em 1966 pela TV Globo. Era um programa popular que trazia a denúncia acerca do desleixo do governo evidenciado nas comunidades mais pobres da cidade de São Paulo. Por isso, o programa teve problemas com a ditadura militar na época. Diante desse fato real, o protagonista Homem do Sapato Amarelo faz o mesmo tipo de reportagem popular, com o uso do sensacionalismo a fim de chamar atenção, denunciando a situação de extrema pobreza, como é o caso de Pai Francisco, e cobrindo o contexto da Revolução da Alegria. Na sua primeira reportagem sobre uma moça que tentava pular de um edifício, ele consegue superar o Homem do Sapato Branco e “estourar o Ibope” (DRUMMOND, 2004, p. 53).

É necessário observar que o ser real que dá lugar ao Homem do Sapato Amarelo, já é uma construção carnavalizada. O Homem do Sapato Branco não apresenta as características comuns ao repórter, como o comedimento e objetividade da informação. Pelo contrário, sua

construção é excêntrica e sensacionalista. Desse modo, o Homem do Sapato Amarelo é uma personagem carnavalizada proveniente de uma construção real também carnavalizada. Há, portanto, a incorporação da carnavalização do repórter real, na cosmovisão também carnavalizada da personagem ficcional, isto é, uma espécie de “carnaval no carnaval”, segundo Bakhtin (2010b, p. 174).

A linguagem do Homem do Sapato Amarelo denuncia seu estilo sensacionalista. Enquanto a voz que está na consciência da personagem é medrosa, como tantas vezes repete no decorrer da narrativa, a voz do Homem do Sapato Amarelo, depois de fantasiado, é exagerada. A popularidade da personagem na mídia está atrelada a esse caráter excessivo da linguagem, com a extensão das vogais que nos passa a ideia de gritaria, além de uma aproximação às fontes orais. O uso dos jargões também marca a personagem, de modo que sua presença em outros núcleos narrativos é facilmente reconhecida, como vemos na seguinte passagem: “aaaaaaaaaantenas e coraçõeeeeeeeeees ligaaaaaaados, babies, que o Hoooooooooomem do Sapaaaaaato Amareeeeeelo vai entrevistarrrrrrr a mooooooorte” (DRUMMOND, 2004, p. 17).

Quanto a esse “descomedimento” da linguagem, esse excesso como fator de representação do protagonista e a aproximação da oralidade, pode ser interpretado a partir das considerações expostas por Bakhtin (2010b, p. 402), em seu estudo sobre Rabelais, mais precisamente quando o estudioso russo trata da utilização em manifestações escritas de fontes orais e populares como fenômeno estilístico. Essa utilização da oralidade tornou-se de grande importância para a constituição de uma cosmovisão carnavalesca do mundo, representando a liberdade da linguagem como elemento estético.

Além disso, não é apenas a linguagem do Homem do Sapato Amarelo que se apresenta de modo livre na narrativa. A própria personagem não participa somente de seu núcleo particular, mas também de outros, como é o caso do núcleo do Camaleão Amarelo, já que é sempre ele que vem nos dar as notícias dos acontecimentos, como a chegada do urso, a descrição dos fenômenos surreais sobre o urso ou a borboleta, o cheiro de lança perfume, o golpe etc. Desse modo, ele tem liberdade de interagir e participar dos outros núcleos de maneira explícita e direta, diferentemente dos outros personagens.

A interferência do excêntrico repórter em outros núcleos narrativos oferece-nos um caráter onipresente da personagem. No núcleo narrativo que relata o estado de Pai Francisco, o Homem do Sapato Amarelo aparece para expor o contexto da Revolução da Alegria, como também para cobrir toda a situação de Pai Francisco internado no Hall do edifício Palácio de Cristal com a filha Silvinha. Além disso, as chamadas sobre o sumiço da filha do velho,

Conceição, são feitas pelo Homem do Sapato Amarelo, que apresenta a continuação da própria história de Pai Francisco, por isso não consideramos um núcleo à parte. O fragmento, desmembrado do núcleo narrativo de Pai Francisco, narra a história da fuga da moça em um dia de carnaval e apela para a volta de Conceição, a qual o Pai espera vê-la.

- Muita atenção, Brasiiil: o velho que está morrendo no hall da entrada do edifício Palácio de Cristal, com a Borboleta Verde da Felicidade pousada em sua cabeça, está deliiiirando e neste mo-men-to vou ouvirrr a filha dele: diga a milhões de brasileiros que nesta hora sintonizam a Cadeia da Felicidade: o que o seu pai tem, Silvinha? (DRUMMOND, 2004, p. 63)

Apenas nos anúncios ficamos sabendo quem é Pai Francisco, já que o núcleo narrativo que o tem como protagonista expõe apenas seu sofrimento no hall do edifício Palácio de Cristal em uma espécie de denúncia da pobreza brasileira.

Em alguns fragmentos do núcleo narrativo do Homem do Sapato Amarelo temos entrevistas com personagens anônimos dentro do enredo do romance. São personagens que favorecem o conhecimento acerca do Urso Libertador ou do contexto da Revolução da Alegria. Ele, portanto, cede o espaço de seu núcleo para outros personagens, como é o caso do fragmento que narra a participação de Erika Sommer no sequestro do Caravelle do Cruzeiro do Sul que saia de Montevidéu para o Rio de Janeiro, e foi desviado em direção à Cuba.

É interessante observar que na criação artística, uma situação real adquire uma nova percepção. O sequestro de 1ª de janeiro de 1970 teve a participação de uma moça chamada Isolde Sommer, de origem polonesa. Foi o sequestro mais longo durante a ditadura militar: quatro dias para chegar em Cuba, saindo do aeroporto do Galeão. Tal situação real é reduzida estruturalmente na criação artística, em que a participação no sequestro é da personagem fictícia Erika Sommer13.

No décimo capítulo da parte “O que você estava fazendo no dia 1ª de abril de 1964?”, a narrativa que revela todo o momento do sequestro do Caravelle em 1ª de janeiro de 1970, vemos uma maneira insólita de constituição do narrador. O narrador oscila em heterdiegético, um narrador de 3ª pessoa que traz uma visão de fora da circunstância, autodiegético, o ponto de vista da própria Erika diante do sequestro, e homodiegético, um companheiro que julga as ações da protagonista e revela, assim, vários pontos de vista sobre o mesmo acontecimento:

13 Disponível em: < http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2013/06/nos-bastidores-do-sequestro-do-voo-114-

o-mais-longo-realizado-no-regime-militar-4163955.html >; e o relato do comissário de bordo do Caravelle. Disponível em: < http://oglobo.globo.com/brasil/apos-42-anos-refem-do-caravelle-trava-luta-por-reparacao- 7540609 >

Sentada na poltrona do Caravelle, Erika Sommer recorda o réveillon em que se fantasiou de havaiana. Está pulando de Havaiana em cima da mesa. Não, companheira Erika Sommer, pára com isso! Você está tendo uma vacilação pequeno-burguesa, companheira! Exatamente agora, hein? Exatamente agora que você precisa ter um coração operário, companheira Erika Sommer.

[...] A minha lembrança vai ser livre para lembrar do que quiser. Pra se fantasiar de havaiana, se quiser. E o meu coração vai ser livre pra vacilar. (DRUMMOND, 2004, p. 137)

A ideia mais recorrente em tal núcleo é a da liberdade. Mesmo alegando um coração pequeno- burguês, pela vontade de tomar champanhe no momento do sequestro e por sua consciência, na figura da mãe, ter medo, Erika necessita ser livre:

Erika Sommer sente sede. Se meu coração quiser disparar, ele vai ser livre pra disparar. Se quiser chorar, meu coração vai chorar. Eu não vou prender meu coração atrás das grades, não. Basta o que já passei no Brasil. Se meu coração quiser chorar, que chore. Aumenta a sede. No aeroporto de Montevidéu ela tomou uma Coca-Cola, mas a sede não passou. Agora masca Mentex a bordo do Caravelle, mas a sede não passa e ela bebe água e a sede continua.

- Erika, minha filha – diz agora muito suave a voz da mãe. – Quando seu pai estourou champanhe ontem, pensei em você, Erika...

A boca de Erika Sommer está seca: é uma boca de lábios grossos e pensa em champanhe. Minha boca vai ser livre pra querer champanhe. (DRUMMND, 2004, p. 136)

Em contraposição a essa opção pela liberdade fora do Brasil feita por Erika Sommer, o Homem do Sapato Amarelo escolhe a prisão dentro de sua fantasia. Uma prisão dentro de si mesmo, como tantas vezes repete no decorrer do romance. Mesmo formando uma Cadeia da Felicidade com mais de 200 emissoras pela sua popularidade sensacionalista, o Homem do Sapato Amarelo vive na pobreza, como outros tantos brasileiros. Uma pobreza que vai além da pobreza física, atinge a si mesmo, com a contínua restrição de seus atos, e que o amedronta e o acovarda. Esse temor e covardia são percebidos no desejo constante da personagem pela morte, como tentativa de fuga do mundo recluso em que vivia.

É necessário chamar atenção, sobretudo, ao modo como configura no núcleo o uso de técnicas narrativas peculiares. Já observamos, quando tratamos dos aspectos estruturais do romance em geral, que a narração ocorre de maneira intercalada, por etapas narrativas, e de modo simultâneo, por narrar a ação no momento em que está ocorrendo. Observamos no núcleo narrativo do Homem do Sapato Amarelo, a marcante presença do fluxo psicológico da personagem. Por apresentar uma consciência aprisionada pela fantasia do radialista, o fluxo se apresenta ora no presente, ora no pretérito, ou na mescla entre os dois tempos verbais:

É o dono dos melhores índices do Ibope no rádio brasileiro, e, em certos momentos, seu Ibope parece Ibope de televisão. Mas ele tem medo do Ibope, Erika Sommer, e medo das cartas anônimas e medo de que façam com ele o que fizeram com o humorista P. Maia: quando P. Maia lançou o programa “República das Bananas”, os colunistas de rádio e tevê de todos os jornais começaram a atacar P. Maia, eram ataques violentos e os jornais davam editoriais contra P. Maia e aquilo foi crescendo, organizaram manifestações de rua contra P. Maia, os jornais publicavam cartas contra P. Maia e a fúria aumentou e P. Maia foi colocado no olho da rua. (p. 229)

Nesse mesmo fragmento, podemos ver o jogo de interlocução da consciência do Homem do Sapato Amarelo com Erika Sommer, o que é uma recorrência nos fluxos psicológicos. Esse diálogo entre os dois personagens colabora com o leitor, de modo que sabemos quando o discurso é da consciência do protagonista. O narrador onisciente conhece todos os sentimentos e anseios do Homem do Sapato Amarelo e deduz um possível futuro. Por isso, é possível pensar que o próprio Homem do Sapato Amarelo, como uma criação do protagonista, narra em terceira pessoa, a consciência do militante, como alguém que esconde uma identidade. Assim, em uma confluência de vozes no interior de si mesmo, temos o