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Revolução da Alegria: síntese dos núcleos narrativos do romance

CAPÍTULO III: SANGUE DE COCA-COLA: ANÁLISE DO ROMANCE DE

3.1. A composição estética do romance Sangue de Coca-Cola

3.1.2. Revolução da Alegria: síntese dos núcleos narrativos do romance

Para compreender o enredo da obra, é necessário conhecer suas personagens principais e seus respectivos núcleos narrativos. Selecionamos três narrativas, dentre as dez que o romance abarca, para tecermos uma análise mais atenta. São elas: a do Homem do sapato Amarelo (3.2.1), do General Presidente do Brasil (3.2.2) e do Camaleão Amarelo (3.2.3). A seleção se deu a partir da recorrência de cada núcleo no romance, além dos elementos curiosos que chamam atenção do leitor. Contudo, é indispensável também compreendermos os demais núcleos narrativos. Por isso, antes de chegarmos a esse estudo individual dos núcleos selecionados, é preciso entender como todos os núcleos participam da composição do universo artístico de Sangue de Coca-Cola. Para isso, traremos um breve resumo de cada núcleo narrativo, para a seguir elucidarmos o modo pelo qual essas narrativas singulares de cada personagem configura um universo artístico construído no romance em diálogo com o universo discursivo mimetizado.

A compreensão do romance provém da lógica construída a partir da organização dos núcleos narrativos. O narrador de cada núcleo, por exemplo, varia de acordo com a personagem retratada ou pode, até mesmo, variar no mesmo núcleo. O tempo pode aparecer em forma de fluxo de consciência, retratar a ação presente no momento em que ela está acontecendo, ou retratar o futuro, não como algo incerto, mas em uma narração ulterior, em que o narrador conhece esse futuro. Segundo o Dicionário de narratologia (1988, p. 117), de Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, a narração ulterior é definida por Genette como

Um ato narrativo que se situa numa posição de inequívoca posteridade em relação à história. Esta é dada como terminada e resolvida quanto às ações que a integram; só então o narrador, colocando-se perante esse universo diegético por assim dizer encerrado, inicia o relato, numa situação que a de quem conhece na sua totalidade os eventos que narra. Daí a possibilidade de manipulação calculada dos procedimentos das personagens, dos incidentes da ação, até de antecipação daquilo que o narrador sabe que vai ocorrer.

Desse modo, tendo total ciência do futuro da personagem, os narradores utilizam desse conhecimento e antecipam determinados fatos da história individual das personagens e do próprio contexto de Revolução da Alegria. É interessante observar que o futuro é retratado como algo definido, por isso vem demarcado no pretérito.

Nesses núcleos narrativos que compõem o enredo geral do romance, cada personagem revela sua história individual e sua posição social, o que acaba por gerar uma divisão aparente

das personagens, isoladas em seus respectivos núcleos. No entanto, só compreendemos a importância de cada protagonista quando unidos em torno do contexto de Revolução, da qual todos participam, mesmo quando insistem em ignorar a atual conjuntura ou permanecer indiferentes.

O romance apresenta um núcleo narrativo que tem como protagonistas o Piloto do Helicóptero número 3 e o Sargento da Central de Comando em diálogo contínuo sobre a Revolução da Alegria. O objetivo das personagens é vigiar os “subversivos”, incluindo até mesmo a própria Borboleta Verde, que ameaçam a ordem da Cidade. O diálogo é muitas vezes ingênuo e pueril, o que traduz uma imensa ironia à imagem agressiva e suprema dos militares brasileiros durante o vigor do governo militar. De um modo bastante irreverente, a relação que no início é hierárquica, transforma-se ironicamente em um relacionamento fraternal entre os personagens. Influenciados pela Borboleta Verde da Felicidade que reacende as lembranças e o cheiro de lança-perfume, o Piloto mostra-se infantilizado, enquanto o Sargento não consegue dominar seus sentimentos por Bebel, sua ex-mulher, enviada para a Bolívia depois de tê-lo traído, conforme anunciado nas cartas anônimas que recebeu. As histórias de cada personagem que compõe o núcleo vão sendo desnudadas aos poucos no diálogo e no fluxo de consciência do Sargento Garcia. Mesmo com o jeito abobalhado dos dois, o piloto do helicóptero n. 3 cumpre a missão de matar o Homem do Sapato Amarelo.

No núcleo narrativo seguinte acompanhamos a expectativa de um homem parecido com o ator Tyrone Power em matar Terê, personagem protagonista de outro núcleo narrativo e que busca sua libertação na Revolução da Alegria. Tyrone Power está escondido no 8ª andar do edifício Palácio de Cristal. O prédio apresenta mais de duzentos andares e é o espaço comum para a maioria das personagens do romance, lá se encontra alguns personagens principais, como o Camaleão Amarelo, Pai Francisco, Tyrone Power ou Julie Joy. Mas é na rua o lugar das passeatas, das procissões, dos fantasiados, do carnaval da Revolução da Alegria, por isso também é um espaço imprescindível para o romance.

Assim como em todos os outros personagens inseridos nesse carnaval, o ar que cheira a lança-perfume desperta lembranças em Tyrone Power de quando ele era um homem bonito e trabalhava como isca de mulheres bonitas para o Dr. Juliano do Banco. Perdeu o emprego quando se apaixonou pela esposa Júlia e não conseguiu mais seduzir as mulheres. No presente, Tyrone é um matador contratado pelo regime ditatorial, com a colaboração do delegado Fleury, e apresenta um desejo maior em torturar e matar pessoas de olhos verdes. Não conhece Terê, mas sabe que sua vítima tem olhos verdes e isso o deixa excitado e

inquieto. A borboleta verde da felicidade suscita a lembrança de uma de suas vítimas de olhos verdes, a vidente M. Jan., de codinome Sissi.

O núcleo narrativo que tem como protagonista a Ayalorixá Olga de Alaketo apresenta algumas informações sobre o contexto da Revolução da Alegria, que acaba auxiliando na compreensão da obra em geral. Ela é muito importante no enredo, porque a sorte do Brasil depende dela e de sua união com os poderes do Obàlúaiyé Omulu, uma das formas da vidente M. Jan. Olga foi levada para um encontro com o Deus do Brasil para o lançamento da Revolução da Alegria durante o Brazillian Follies. Era necessário ajudar o Deus Biônico do Brasil a se transformar no ex-presidente Juscelino Kubitschek e assim ajudar o país a sair da Guerra Civil que o assolava. Apenas com a transformação em J. K. poderia ser dado início à Revolução da Alegria. Não é por acaso que foi chamado de Deus Biônico. Ele se assemelha à concepção de “Deus ex machina” das tragédias gregas, em que tal entidade interfere na narrativa como uma criatura mágica. O Deus Biônico se insere no enredo de modo inusitado, como forma de salvação e não apresenta uma voz discursiva, nem atuação direta no núcleo da protagonista Olga de Alaketo. Além disso, o leitor também associa a configuração de Deus Biônico com o cargo biônico criado durante a ditadura para Senadores, no intuito de inserir no congresso, de maneira indireta, civis apoiadores da ditadura que vinha se estabelecendo12. De modo semelhante era pensada a transformação: o Deus biônico é considerado um intermediário para atingir uma dada finalidade, como uma marionete para a efetivação da Revolução. Olga de Alaketo só concordou em ajudar o Deus Biônico depois de sentir o cheiro do lança-perfume no ar e quando está embriagada, Olga transforma-se em uma espécie de comunista. Unida aos poderes do Obàlúaiyé Omulu prevê que algo acontecerá com o Brasil no dia do Brazillian Folies no edifício Palácio de Cristal, o maior edifício da América Latina.

Em seguida, observamos o núcleo narrativo que relata a história de Julie Joy, denominada Vera Cruz Brasil nas fichas dos órgãos repressores por onde já passou. Julie é uma “americanófila” que deseja sair do Brasil para viver nos Estados Unidos. Com o intuito de conquistar tal propósito ela recorre à Santa Coca-Cola com orações. Está grávida e em uma fila esperando uma ficha para a maternidade. No momento em que está na fila, Julie Joy sente o cheiro da pobreza brasileira no Hall do edifício Palácio de Cristal e deseja apenas conseguir sair do Brasil para os Estados Unidos. Ao apelar sempre à Santa Coca-Cola, Julie Joy deseja

cuidar de um idoso chamado Mister Jones. Em sua narração, há a recorrência de uma oração destinada à Santa, além de seu diálogo em forma de orações pessoais:

“Bem-aventurada Santa Coca-Cola

Filha melíflua de Nosso Senhor Jesus Cristo Matai minha sede de alegria

E ao meu pobre e ansioso coração Oh Santa dos Impossíveis

Dai a pausa que refresca os justos...” (DRUMMOND, 2004, p. 147).

O núcleo narrativo que tem como protagonista Terê, relata a história dessa moça que teve seu destino previsto pela vidente M. Jan, Madame Janete ou Sissi. Terê é vendedora de discos em uma loja chamada “O divino som do Inferno” e sustenta a família inteira. Seu pai é um ex-sindicalista que teme a repressão desde o dia em que foi preso e cassado no governo do General Humberto de Alencar Castelo Branco. A mãe de Terê é uma dona de casa que sempre deu forças ao marido e nunca deixou que sua fé fosse abalada diante das situações financeiras e políticas. Terê herdou a fé da mãe e por isso acredita na previsão que Madame Janete fez antes de morrer: que Terê aguardasse a chegada do Libertador do Brasil porque ele também libertaria o coração dela. No dia 1º de abril, dia da Revolução da Alegria, ao sentir o cheiro de Lança-Perfume no ar, Terê sente que algo acontecerá no Brasil e lembra de todas as previsões feitas por M. Jan. A protagonista, que tem os olhos verdes, não sabe que o mesmo homem que enterrou viva a vidente de codinome Sissi, a matará também durante a Revolução da Alegria. Quando Terê vê a Borboleta Verde, ajoelha-se e sente que o libertador está chegando. O amor da personagem pelo Urso Libertador só aumenta durante a Revolução da Alegria.

A narrativa seguinte apresenta como protagonista Pai Francisco, um velho à beira da morte no hall do edifício palácio de Cristal, acompanhado de sua filha Silvinha. A primeira aparição do núcleo narrativo relata o pouso da Borboleta Verde da Felicidade na cabeça do velho. Pai Francisco, em seu delírio, pensa que está viajando de trem e aguarda a chegada de sua filha Conceição que desapareceu em 1950. Pai Francisco sofre de pobreza, uma doença que, segundo Silvinha, assola milhões de brasileiros. O romance apresenta flashes narrativos com o anúncio de procura à Conceição, feita pelo Homem do Sapato Amarelo. Como a narrativa de Pai Francisco é um diálogo alucinado com a filha Silvinha, grande parte da história do velho é contada nos anúncios de procura à Conceição.

O último núcleo narrativo só aparece três vezes em Sangue de Coca-Cola, iniciando as partes que compõe o romance, com os títulos: “A pausa que refresca”, e os subtítulos: “O que você estava fazendo no dia 1º de abril de 1964?”, “Qual é o seu último desejo?”, e, “O que a lua viu”, com exceção da parte introdutória. Os subtítulos que nomeiam cada nova parte

provêm do núcleo que narra o momento de Elisa e o ex-guerrilheiro. Assim, o diálogo entre os dois personagens responde aos questionamentos feitos nos subtítulos. O narrador identifica Elisa como uma jogadora de vôlei da Seleção brasileira, conhecida como magrinha. Em uma boate, provavelmente em “Belorizonte”, ela conhece o ex-guerrilheiro não nomeado na narrativa, para quem pede que fique no apartamento dela no Rio de Janeiro enquanto ela vai a um torneio em Lima, no Peru. O Guerrilheiro, por sua vez, conheceu Elisa no terceiro mês de liberdade, depois de nove anos preso. Ao ver a Borboleta Verde, ele reza para Elisa não sair mais de perto dele. Ele demonstra medo e insegurança o tempo inteiro, mesmo depois da anistia. Tem a sensação de que está sendo observado, não sente a liberdade e sente saudades da prisão, algumas vezes.

Restam três núcleos narrativos que não foram sintetizados nesse tópico: o núcleo do Homem do Sapato Amarelo, do Camaleão Amarelo e do General Presidente do Brasil. Esses núcleos foram selecionados para compor a seção seguinte, que traz a análise individual de cada um deles, destacando os aspectos dialógicos e carnavalizados encontrados nessas narrativas particulares.