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Sangue de Coca-Cola: apontamentos sobre uma estrutura dialógica e carnavalizada

CAPÍTULO III: SANGUE DE COCA-COLA: ANÁLISE DO ROMANCE DE

3.1. A composição estética do romance Sangue de Coca-Cola

3.1.1. Sangue de Coca-Cola: apontamentos sobre uma estrutura dialógica e carnavalizada

ruas do Brasil em Sangue de Coca-Cola é apresentada no romance anterior na forma de uma mulher, Martha Gellhorn, chamada de Pátria Brasileira e que se transforma nessa Borboleta.

O que em uma leitura simples de Sangue de Coca-Cola aparenta ser um mero elemento fantástico, adquire uma explicação lógica para o retorno da Borboleta como elemento central. A Borboleta Verde sempre reacende o desejo do retorno ao passado, por meio das lembranças de cada protagonista. Ao compreendermos que a Borboleta é a figura da Pátria Brasileira, recorremos ao período de liberdade da Pátria, o período de bonança em contraposição ao governo ditatorial imposto. Desse modo, a figura da Borboleta também é uma forma de lembrança ao passado, não apenas dos protagonistas de cada núcleo, mas, sobretudo, do próprio contexto sócio-político.

Dessa maneira, o romance anterior à Sangue de Coca-Cola responde alguns questionamentos acerca de elementos cruciais para o transcorrer deste romance, como a lembrança da vidente, a interferência dela em alguns núcleos narrativos, como também a recorrência da Borboleta Verde da Felicidade no contexto de Revolução da Alegria da obra, um momento de mudança no Brasil. Há, portanto, uma espécie de diálogo intertextual entre as duas narrativas, que acrescentam elementos estruturais, mas também novos sentidos ao estudo integrativo obra/sociedade, especialmente ao se tratar de romances com uma extensão fantástica, uma cosmovisão carnavalizada e elevado teor dialógico.

Enfim, para entender como se configura os aspectos dialógicos e carnavalizados, fundamentos teóricos imprescindíveis na compreensão de Sangue de Coca-Cola, é necessário um tópico à parte, a fim de descrevermos e refletirmos sobre a relevância estética do romance de Roberto Drummond no contexto literário do período militar brasileiro e na literatura brasileira até a contemporaneidade.

3.1.1. Sangue de Coca-Cola: apontamentos sobre uma estrutura dialógica e carnavalizada

A diversificação de pontos de vista ideológicos, a multiplicidade de consciências e a variedade de mundos que garantem a unidade da obra são a confirmação de um caráter polifônico no romance. Quanto à carnavalização, de modo claro, veremos aspectos que corroboram uma visão satírica do contexto ditatorial brasileiro, com referências invertidas à realidade externa e com a utilização de elementos fantásticos para compor o universo

artístico. A narrativa adquire esse caráter fantástico com elementos que trazem um teor absurdo e excessivo. Bakhtin (2010b, p. 39), então, explica que é no exagero que “se ultrapassa o verossímil e se torna assim fantástico”, como acontece na obra.

O romance traz uma referência ao dia 1ª de abril, quando acontece a Revolução da Alegria. Com uma irreverência singular, a obra mimetiza um dia de gravidade política para a sociedade brasileira: o golpe militar de 1ª de abril de 1964, denominada Revolução Gloriosa. Em contraposição a essa triste Revolução, o romance cria em sua singularidade artística a Revolução da Alegria sem apontar para um ano definido, porque tem o objetivo de compor todo o universo ditatorial de maneira às avessas ao golpe original.

A Revolução da Alegria não segue passos miméticos do acontecimento real, como uma mera representação da Revolução Gloriosa, mas cria uma Revolução específica que só é compreendida no decorrer da leitura dos núcleos narrativos que compõe o enredo da obra. Os personagens trazem na narrativa as vozes sociais de um determinado contexto e discursos, que mesmo fantásticos, tornam-se verossímeis em um contexto de ditadura. Por isso, a obra reduz estruturalmente um determinado contexto de ditadura militar, o que quer dizer que ela observa a sociedade real e cria no universo artístico uma outra realidade, com traços da sociedade mimetizada, mas que não é a vigente.

Nessa criação artística, a obra funde personagens e acontecimentos reais com outros fictícios, o que faz dela um romance singular dentre as publicações do período de ditatura militar no país. Pelo fato do romance ocorrer em um contexto de carnaval, “as personagens estão fantasiadas de pessoas reais”, como já explicado no prólogo do próprio romance, a máscara ou a fantasia são elementos das festas de carnaval popular e são transpostos para o universo artístico como elemento estético, fazendo parte da singularidade das personagens.

Em Sangue de Coca-Cola, algumas personagens são identificadas com várias máscaras, como é o caso do Camaleão Amarelo; ou a identidade é perdida, dando lugar ao fantasiado, como o Homem do sapato Amarelo; ou, ainda, o uso da fantasia carnavalesca transforma continuamente o General Presidente do Brasil, como veremos em nossas análises. Isso acontece porque no carnaval há a “ênfase das mudanças e transformações, da morte e da renovação. O carnaval é a festa do tempo que tudo destrói e tudo renova” (BAKHTIN, 2010a, p. 142). Ao refletir sobre esse caráter transformador do carnaval, entendemos as contínuas mudanças nas identidades dos personagens, com o uso da máscara, a qual oferece uma nova representação de si mesmo.

O absurdo e o exagero são elementos de extrema recorrência no romance e definidores, unidos a outros aspectos, da cosmovisão carnavalesca do contexto de repressão

ditatorial a qual o romance retrata. Vamos observar, sobretudo em nossas análises individuais, o modo como a narrativa abre espaço para que fatos absurdos tornem-se verossímeis na criação do universo artístico e sejam importantes na sátira pretendida. O homem que amaria 5 mil mulheres, a mulher que reza a uma Santa Coca-Cola, as Forças Armadas abobalhada, um General louco ou um homem que tenta entrevistar a morte, todos esses fatores absurdos ou exagerados fazem parte do enredo construído no romance e são elementos primordiais na carnavalização.

É interessante observar que todos os personagens apresentam uma complexidade na identificação. A maioria aparece com codinomes e não com nomes próprios. Eles vivem a partir de uma denominação característica que os define, como o Camaleão Amarelo. Como em um carnaval propriamente dito, os personagens não vivem como eles desejam e sim como as máscaras, que os identificam, os obrigam a viver, como é o caso do Homem do Sapato Amarelo. A própria madame Janete aparece com codinomes, seja como Sissi ou Obaluayé Omulu, assim como os demais protagonistas, com exceção, talvez, do Pai Francisco que vive realmente sua condição de pobreza. Os demais não conseguem sobreviver com uma única identidade, mas na oscilação de máscaras que vão os moldando:

A máscara traduz a alegria das alternâncias e das reencarnações, a alegre relatividade, a alegre negação da identidade e do sentido único, a negação da coincidência estúpida, consigo mesmpo; a máscara é a expressão das transferências, das metamorfoses, das violações das fronteiras naturais, da ridicularização e do apelido (BAKHTIN, 2010b, P,. 35)

Devido a limitação de características e seu caráter mutável, os personagens são misteriosos e contribuem para o inacabamento da obra. O leitor não consegue defini-lo, já que ele está em constante metamorfose e adquire características distintas em cada momento. Não chegamos à conclusão de quem o personagem pode ser, porque está sempre fantasiado ou em contínua transformação.

Além disso, é importante ressaltar que devido à variedade de núcleos narrativos não há na obra um protagonista. Cada núcleo apresenta seu respectivo protagonista, de modo que podemos pensar que o único protagonista comum a todos os núcleos e que é peça-chave no romance é o próprio contexto de Revolução. O romance é composto de diversos pontos de vista sobre a Revolução e vozes sociais que dialogam entre si, mesmo que essas vozes sejam conflitantes. Os discursos apresentados constituem um grande diálogo entre os protagonistas de cada núcleo, de maneira que a união de todos os núcleos compõe um romance dialógico

constituído de vozes sociais semelhantes a que estão em ressonância no universo discursivo, sem uma hierarquização, o que constitui o caráter polifônico.

Como já vimos, o dialogismo não acontece apenas na estrutura interna da obra, mas é configurado no próprio diálogo do romance com o contexto sócio-político do período, já que tal concepção é inerente ao próprio discurso. De maneira clara, o romance configura uma resposta ao universo discursivo por meio da visão carnavalesca que se cria do dia 1ª de abril. Contudo, o diálogo em Sangue de Coca-Cola também não se encerra nessa homologia estrutural da obra com a sociedade. Esta obra é por si só um diálogo com o romance anterior de Roberto Drummond, O dia em que Ernest Hemingway morreu crucificado. Com elementos que contribuem para uma leitura mais eficaz da Revolução da Alegria que é retratada como sátira da Revolução Gloriosa, o romance publicado anteriormente a Sangue de Coca-Cola trata de um inquérito feito pela CIA para apurar a crucificação de um guerrilheiro chamado Ernest Hemingway que tinha como companheira Martha Gellhorn, a qual se transforma em borboleta após a morte de Ernest. Martha também tem sua vida premeditada pela vidente Madame Janete, a mesma que prevê a Revolução da Alegria para Terê e que é assassinada por Tyrone Power, apresentando o codinome Sissi. Tais elementos são retratados de modo surreal, já que o inquérito é desenvolvido através de um sonho, e suscitam uma nova visão do romance seguinte, que já é anunciado literalmente na narrativa de O dia em que Ernest Hemingway morreu crucificado. Diante disso, Sangue de Coca-Cola apresenta uma multiplicidade de leituras, inclusive baseada em um diálogo intertextual com o romance anterior, acrescentando novos pontos de vista ideológicos sobre o contexto sócio-político.

Em Sangue de Coca-Cola, a quebra com a linearidade narrativa e das relações comuns aos personagens são propositais quando pensamos no contexto da ditadura militar, a qual a narrativa reduz estruturalmente, um período representado pela desordem e pela erradicação de grupos que apresentavam a mesma ideologia. Ao ser dividido em núcleos narrativos, as personagens apresentam seu próprio espaço social e seu relato individual. De certa forma, o romance traz um individualismo exacerbado entre os protagonistas, cada qual interessado em um objetivo individual. A união dessas várias individualidades constitui plenamente o enredo da obra. Desse modo, “a imagem artística da individualidade do outro e muitas individualidades imiscíveis” (BAKHTIN, 2010a, p. 12) estão reunidas na unidade de um acontecimento, a Revolução da Alegria. Cada núcleo narra a história particular dos personagens dentro de um contexto de criação artística do dia 1º de abril. O sujeito artístico assim como o real é construído paulatinamente, em seu devido núcleo, descobrindo-se e

transformando-se dentro do contexto de composição artística e não de acordo com uma configuração social real.

Os protagonistas apresentam uma limitação de características, o que faz com que o leitor saiba ainda menos sobre eles, passando-nos a ideia de inconclusão do indivíduo. A singularidade vai sendo construída pelo leitor no decorrer do romance, que vai juntando as peças, como em um quebra-cabeça, a cada novo aparecimento do núcleo narrativo. Ou seja, muitas vezes a justificativa de um ato que apareceu na primeira parte só é mostrado na terceira parte. Além disso, a própria consciência apresenta mudanças, transformam-se, estão em um eterno redescobrir-se, o que reitera a incompletude da personagem.

Mas, é preciso focar em como o romance é considerado polifônico mesmo quando as narrativas são abertamente divididas e as personagens estão separadas umas das outras. É necessário também entender o modo pelo qual há o entrecruzamento de vozes e visões de mundo distintas, compreendendo como isso poderia contribuir na homologia estrutural entre a configuração formal da obra e o contexto sócio-político do período ditatorial.

O romance de Roberto Drummond apresenta claramente um estado da sociedade de castração da liberdade de expressão e quebra das relações sociais, trazendo os conflitos entre os discursos em uma lógica interna de composição, com o embate de vozes sobrepostas. O dialogismo que observamos no romance é constituído da interação e da coexistência de discursos plenos e independentes. Na organização artística do mundo, o autor-criador obedece ao próprio diálogo social, de sobreposição de ações e discursos inserido na singularidade de cada núcleo narrativo. O romance de Roberto Drummond, portanto, escuta “a sua época como um grande diálogo, de captar nela não só vozes isoladas mas antes de tudo as relações dialógicas entre as vozes, a interação dialógica entre elas” (BAKHTIN, 2010a, p. 100).

Essa singularidade discursiva e ideológica de cada protagonista é imprescindível para estabelecer o diálogo no romance. Esse dialogismo vai além do contexto artístico criado na obra e se estende ao próprio universo discursivo, isto é, o diálogo não se restringe apenas aos vários discursos presentes na narrativa, mas também ao próprio romance enquanto enunciado literário que reflete e refrata o mundo. O texto reduz estruturalmente o período ditatorial brasileiro na própria formalização romanesca cômica e satírica. A carnavalização do regime militar oferece uma ruptura com a organização social da época, respondendo esteticamente a uma situação política do universo discursivo.

Em alguns momentos da narrativa, essa interação entre núcleos que promove o caráter dialógico do romance chega ao ponto de nos fazer observar um aspecto polifônico. Essa polifonia, o embate articulado e não-hierarquizado de vozes, é apresentada de modo muito

mais contundente em alguns núcleos narrativos, em que a figura do narrador dialoga igualmente com a figura da personagem, como no caso particular do General Presidente do Brasil.

Não afirmamos que a obra é plenamente polifônica, mas que ela apresenta caráter polifônico por encadear diversos discursos ideológicos conflitantes em um diálogo que refrata a própria sociedade real. A polifonia de modo pleno abarcaria, segundo Bakhtin, uma mistura de vozes e consciências notavelmente organizadas na narrativa, mas também a interação não- hierárquica entre o discurso da personagem e o do narrador ou autor-criador, como acontece em Os irmãos Karamazov, de Dostoievski. Como já dissemos, apesar do embate de vozes sociais, no romance de Roberto Drummond, cada personagem apresenta um discurso social e uma consciência que lhe é singular. Sua voz participa de um discurso além do próprio romance, que lembra discursos do contexto ditatorial brasileiro do período. No entanto, não vemos o diálogo concreto entre eles e o seu criador, que se coloca como organizador da estrutura formal do romance e não como uma voz em interação dialógica propriamente dita. Os narradores, por sua vez, mudam de acordo com o núcleo narrativo, havendo, portanto, diversos narradores no romance.

Em sangue de Coca-Cola desnuda-se um tipo de realismo às avessas, que oferece à personagem uma voz e um espaço social, um discurso ideológico e um objetivo de vida. Além disso, as rupturas nos núcleos narrativos e as transformações do sujeito, caracterizam elementos comuns ao próprio do contexto ditatorial vivido. Seguindo esse ponto de vista, o romance procura debruçar-se sobre um realismo que atinge a própria consciência do sujeito da criação artística. É o homem real na construção do homem, retratando “todas as profundezas da alma humana” (BAKHTIN, 2010a, p. 68).

Ao compreender essa necessidade do realismo, começamos a entender a inclinação à carnavalização do texto literário. Sabemos que a carnavalização traz uma nova relação da imagem e da palavra com a realidade. Ela trata de um mundo invertido, um espelho do real, exatamente às avessas como o próprio carnaval. No romance de Roberto Drummond, os personagens se relacionam sem hierarquias, isto é, assim como é retratado Tyrone Power (assassino), é narrada a história de Terê (vítima). Essa igualdade configura a liberdade do carnaval, em que todos são igualmente relevantes como elementos da cosmovisão carnavalesca.

Durante o Brazillian Follies, no carnaval fora de época que acontecia no Brasil, as pessoas estavam todas fantasiadas, demonstrando sentimentos diferentes que já estavam esquecidos, devido ao cheiro do lança-perfume no ar e da Borboleta verde acendendo

emoções no coração de cada brasileiro. A Revolução da Alegria marca, portanto, uma inversão do real acontecimento. O edifício Palácio de Cristal, onde ocorre o grande evento e a própria rua são os lugares de encontro de todos os protagonistas na Revolução da Alegria:

São 7 e 15 da manhã no Brasil, as árvores da rua amanheceram enfeitadas de serpentinas, o cheiro de lança-perfume abafa os outros cheiros da manhã, aquela mistura de limão do sabão com que lavam a entrada dos edifícios, a porta dos bares e das lanchonetes, o cheiro da gasolina ou do diesel que queimam nos carros e ônibus, o perfume de uma ou outra mulher, o odor do suor e uma espécie de mau hálito que toda cidade brasileira tem e que a brisa carrega e que já levou o General Presidente do Brasil (que hoje, apesar dos desmentidos, está delirando, com febre) a prometer um discurso. (DRUMMOND, 2004, p. 20).

A festa adquire um teor religioso quando os personagens, ao ver a Borboleta Verde, despertam para essa religiosidade. Protagonistas como Julie Joy ou o General Presidente rezam para a Santa Coca-Cola a fim de que ela interceda em suas preces, assim como o Sargento da Central de Comando reza para São Domingos Sávio afastar a visão de Bebel. Ao mesmo tempo, estão inseridos no contexto do ar que cheira a lança-perfume, a grande festa de carnaval que marca o ressurgir de um novo momento, uma Revolução da Alegria:

Agora, na frente da multidão em festa, na passeata que é carnaval e é procissão, a fome de Terê aumenta, aumenta junto daquela sensação de que, hoje, encontrará seu amor, um amor parecido com ator de cinema, um Fidel Cristo Brando, um santo revolucionário que libertará seu coração e a felicidade do Brasil” (DRUMMOND, 2004, p. 184)

No fragmento acima, observamos a combinação entre os elementos religiosos e carnavalescos: a procissão e o carnaval, a fome de Terê e sua necessidade de penitenciar-se, o que lembra o jejum religioso do período quaresmal, e sua visão do urso libertador, uma mistura de Fidel Castro, Jesus Cristo e Marlon Brando, como uma profanação da divindade.

O contraponto entre os dois momentos, religioso e carnal, estão interligados, de modo a criar um aspecto paradoxal não apenas do próprio contexto de Revolução, como da própria identidade dos personagens, geralmente marcada pelo embate de consciências, como é o caso da americanófila Julie Joy que é, na verdade, Vera Cruz Brasil ou O General Presidente do Brasil que transforma-se em guerrilheiros, como Carlos Lamarca. Esse paradoxo tão nítido em Sangue de Coca-Cola produz uma visão cômica do universo discursivo.

O rebaixamento da figura da divindade é transposto para o romance na figura da Santa Coca-Cola e sobretudo, do Urso Libertador. A figura divina do urso que muda de rosto continuamente, participa da obra como um elemento grotesco que oferece-nos comicidade

satírica. O salvador é um animal que também é explorado em zoológicos, como esclarece o discurso da personagem Terê. As pessoas do romance consideram o urso, acima de um ser divino, alguém que os representa, e, por isso, ele é figura de salvação na Revolução da Alegria.

Esse cômico que mistura o festivo e o satírico é o elemento que mais se difunde no romance, ocasionado pela visão invertida da sociedade da época e a própria estilística da obra, que insere aspectos peculiares da linguagem de cada protagonista. A formalização estética conduz à comicidade por tratar, de modo sarcástico, de um contexto de repressão violenta no Brasil, com o uso de elementos fantásticos e da visão da alucinação e ridicularização do homem desesperado ou amedrontado.

Observando esse último elemento – a ridicularização do homem e o escárnio com a sociedade – chamamos atenção ao próprio título do romance, assim como a recorrência da Coca-Cola como divindade. Símbolo de crítica à intromissão americana na ditadura militar e no próprio dia-a-dia social, a figura da Coca-Cola ou do domínio das multinacionais está diluída na sociedade brasileira mimetizada no romance. Além disso, o título da obra demonstra um poder que escraviza o Brasil e é intrínseco à vida dos personagens11. Isso é observado em todos os núcleos narrativos, alguns com mais veemência, como em Julie Joy, no Camaleão Amarelo, no General Presidente e até mesmo em Terê, que em seu discurso demonstra o favoritismo do urso como libertador por também ser escravizado pelos Norte- Americanos, assim como cada brasileiro.

Desse modo, Sangue de Coca-Cola apresenta uma cosmovisão carnavalesca que nos leva a apreender o contexto ditatorial brasileiro. Fazendo uso de uma estrutura formal