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3. RECORTES DO GROTESCO NA HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA

3.1. O DISCURSO ANTICANÔNICO

3.1.4. Camilo Pessanha

Se pensarmos o grotesco com um viés ligado à sátira e à cultura popular, a obra de Camilo Pessanha aparenta não coincidir com esse universo. No entanto, sua especificidade possui uma íntima relação com a categoria estética principalmente quando relacionada ao que foi teorizado como grotesco por Wolfgang Kayser. O elo estabelecido com o grotesco romântico não é meramente temporal. Bakhtin, e não apenas ele, identifica uma mudança no gosto literário a partir de fins do século XVIII, o que afasta a cultura popular da produção escrita canônica.

Ainda que essa mudança de sensibilidade pareça vaga, ela está muito próxima das mudanças sociais ocorridas no período. Fundamentalmente, o advento da burguesia ante a monarquia parece ser um elemento central para essa modificação, juntamente com a Revolução Industrial e seus desdobramentos ao longo do século XIX. Por mais que os movimentos vanguardistas modernos tenham trazido outras mudanças relativas ao gosto, a obra de Camilo Pessanha está no limiar entre uma sensibilidade romântica e uma moderna. Daí o fato de preconizar muitas de suas características, como veremos a seguir. A produção de Pessanha carrega intrínseca a si uma especificidade fundamental para sua compreensão: a influência da cultura oriental marca indelevelmente sua produção.

O único livro de Pessanha publicado, Clepsidra, gera uma discussão que parte de sua gênese, como o estudo que antecede a obra feito por Paulo Franchetti indica. Não obstante, nossa perspectiva de análise é tão somente uma verificação de aspectos grotescos da obra. Assim sendo, adotamos a versão de Franchetti como referência, seja pelo fato de seu estudo ser convincente e cuidadoso como fica perceptível na própria leitura; seja por ser a versão mais fidedigna àquilo que Pessanha tinha em mente, segundo nos parece, quando da elaboração de sua obra. Clepsidra é uma obra idiossincrática na literatura produzida em língua portuguesa. Indicada pela crítica como a principal obra do Simbolismo português, já se reconhece nela indícios de modernidade tão profundos que impossibilitam uma leitura que enquadre o texto em uma tendência única. Franchetti destaca outra marca importante:

O lugar que Camilo Pessanha ocupa na história da literatura de língua portuguesa, porém, só limitadamente se compreende a partir da análise do modo como a sua poesia rearranja os lugares-comuns do tempo ou os actualiza segundo as suas obsessões individuais. O que o distingue de Alberto Osório de Castro, António Nobre ou Eugénio de Castro, por exemplo, é antes

a forma específica de organização do verso e do discurso lírico, isto é, a sua dicção e a sua poética.160

A poética de Pessanha, então, prepara o terreno para a modernidade. Ademais, há um conjunto de traços singulares que, segundo Franchetti, tornam sua poesia importante para a modernidade.

[...] o apurado senso de ritmo, que violenta inclusive os princípios da metrificação tradicional, dentro da qual entretanto se move toda a sua poesia; a recusa ao descritivismo, bem como ao sentimentalismo confessional, que constituem as balizas do tempo.

O privilégio da sonoridade e a recusa do referente imediato resultam num discurso difícil, opaco, que não teme a descontinuidade sintáctica e privilegia a justaposição e a repetição de largos trechos de versos, ou mesmo de versos inteiros, como forma preferencial de articulação do poema. 161

A ideia de novidade não está necessariamente ligada ao grotesco, mas é parte dele. Além disso, a poesia de Pessanha parece lidar sobremaneira com a tensão entre ruptura e tradição. Destarte, identifica-se nela o saudosismo luso-romântico, certa descrição corporal ligada ao Realismo e ao Naturalismo, a musicalidade e a sugestão simbolistas. Antevê as relações com o inconsciente, e até elementos vanguardistas, mais especificamente do Expressionismo e do Surrealismo. Quanto aos elementos que Franchetti classifica como construtores da poética de Pessanha, eles não distam em nada das subversões características do grotesco no que tange à linguagem.

Insere-se a isso a temática ligada ao estranho que permeia todos os poemas da obra formando uma panóplia de elementos poéticos da poesia da modernidade sem, no entanto, deixar de ter aspectos simbolistas. Destarte, é impossível desvinculá-la do universo grotesco construído por Wolfgang Kayser a partir da noção de alheado, intangível a quem o vê, e de sua insistente distorção do universo empírico. O poema enumerado por Franchetti como onze (11) é o primeiro que selecionamos para análise:

Poema11

...e lhe regou de lágrimas os pés, e os enxugava com os cabellos da sua cabeça. Evangelho de S. Lucas.

Ó Madalena, ó cabelos de rastos, Lírio poluído, branca flor inútil... Meu coração, velha moeda fútil, E sem relevo, os caracteres gastos,

160 FRANCHETTI, Paulo. O essencial sobre Camilo Pessanha. Lisboa: Imprensa Nacional, 2008. p. 63. 161

De resignar-se torpemente dúctil... Desespero, nudez de seios castos, Quem também fosse, ó cabelos de rastos, Ensangüentado, enxovalhado, inútil, Dentro do peito, abominável cômico! Morrer tranqüilo, - o fastio da cama... Ó redenção do mármore anatômico,

Amargura, nudez de seios castos!... Sangrar, poluir-se, ir de rastos na lama, Ó Madalena, ó cabelos de rastos! Pessanha162

O poema possui uma sonoridade absolutamente rara, pressuposto de um poema simbolista. O ritmo dele parece respeitar a cadência clássica de língua portuguesa, no entanto, só é possível vê-la no primeiro verso quando juntamos a vogal final de “Madalena” com o invocativo “ó”, que aparecem separados por vírgula no poema, assim poderíamos ter um esquema rítmico no primeiro verso cambiante, ou ele segue o sáfico; ou aparece com um verso que ficaria troqueu, dátilo, dátilo, dátilo, dátilo e troqueu e fica hendecassílabo. No segundo verso, temos de juntar o hiato de “poluído” para termos um decassílabo, o que não é rotineiro em nosso idioma, mas, com tanto, constrói-se um verso sáfico, que predomina no poema.

Os versos que não adotam esse ritmo são todos os que se referem de maneira mais direta à Madalena: 1, 6, 7 e os dois últimos, considerando aqui que eles também podem ser sáficos a partir de adaptações na sonoridade. Apesar de num primeiro momento uma análise da sonoridade parecer descabida, ela será retomada posteriormente para complementar a presença do grotesco como tema, construção e linguagem no poema.

A primeira estrofe é dividida pela vírgula em todos os versos, o que também produz um efeito sonoro de quebra, afinal toda a estrofe possui períodos nominais que se não dividem perfeitamente o ritmo do poema, dividem-no visualmente. As rimas –

útil e –ômico são difíceis em nosso idioma, sendo a segunda uma esdrúxula, rareza da

língua portuguesa. Os constantes anacolutos constroem um sentido sonoro aos versos,

162Este e os demais poemas escolhidos para análise da parte “Camilo Pessanha” foram extraídos de: PESSANHA, Camilo. Clepsidra. Notas e comentários de Paulo Franchetti. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994.

como podemos observar logo no início, o que também interfere na construção imagética do interlocutor ao qual o eu lírico se refere.

Se o poema tem um motivo bíblico, como a própria didascália adaptada do Evangelho de São Lucas indica, a primeira estrofe é construída com uma sequência de invocações. Após o segundo verso, há uma quebra das invocativas do eu poemático à personagem bíblica e os dois últimos versos da estrofe quebram a semântica do texto. Assim sendo, já no início do poema temos uma quebra da lógica da lingua portuguesa de manter a coerência sintática e semântica sobre o que se fala.

Pensando em Ferdinand de Saussure e seu Curso de linguística geral, as relações de sentido entre as palavras são estabelecidas pelo leitor, tal qual as relações associativas entre as mesmas. A fragmentação sintática e semântica do poema exige do leitor um conhecimento histórico e uma capacidade de abstração que dificultam a leitura do texto. O hermetismo da poesia de Pessanha, no entanto, permite ao leitor estabelecer relações simbólicas diversas.

A pessoa a quem a voz poemática se refere é Madalena. Com a didascália do Evangelho de São Lucas que o poema possui, torna-se óbvia a intertextualidade com a personagem bíblica. Os dois primeiros versos do poema são descrições de Madalena, no entanto, além do anacoluto e do assíndeto descritivo, a estranha construção, “cabelo de rastos”, aponta para as descrições contraditórias feitas no segundo verso: “lírio poluído” e “branca flor inútil”. É curioso notar que o Evangelho de São Lucas não diz ser Madalena a mulher que arrasta seus cabelos e chora aos pés de Cristo.

O texto indica apenas ser uma mulher. A única referência que Lucas faz a Madalena é dizer que seu corpo possuía sete demônios. Assim, a santa carrega um arquétipo inverso ao de Maria virgem e mãe. No entanto, segundo os hebraicos antigos, os demônios são doenças, não pecados. Afora a problemática da interpretação bíblica, entende-se pelo primeiro verso do poema que, para Pessanha, quem arrasta os cabelos em Cristo é Madalena.

A simbologia de pureza e castidade que “lírio” e “branca flor” carregam é completamente desconstruída pelos adjetivos subsequentes. O paradoxo, figura estranha por si só, ressignifica a flor causando aquela mudança necessária que Baudelaire sugere à poesia moderna, que é a criação de novas alegorias. Além disso, um outro símbolo deve ser considerado aqui, o do cabelo. Inclusive, o poeta parece estabelecer uma hiperonímia entre Madalena (mulheres) e cabelo. Ainda que no Ocidente cristão o

cabelo tenha uma significação vária, neste poema parece haver uma relação de intimidade:

Acredita-se que os cabelos, assim como as unhas e os membros de um ser humano, possuam o dom de conservar relações íntimas com esse ser, mesmo depois de separados do corpo. Simbolizam suas propriedades ao concentrar espiritualmente suas virtudes: permanecem unidos ao ser, através de um vínculo de simpatia. 163

Madalena, então, carrega em si um paradoxo, pois é a flor, o lírio poluído. A união do irreconciliável é um elemento ligado ao grotesco de Wolfgang Kayser. A contradição, tanto em Kayser quanto em Bakhtin, é grotesca por si só. Madalena carrega simbolicamente em si a ambivalência do pecado e do arrependimento. Ainda na primeira estrofe, o poeta interrompe a descrição e insere em seu discurso o eu lírico metonimicamente representado no substantivo “coração”. A fragmentação de sentido que o poema adquire exige do leitor uma postura de associação dos dois temas abordados: os cabelos de rastos da mítica e bíblica Madalena, e a sensação do eu poemático, que através da intertextualidade é o arrependimento.

O símbolo de vida e/ou amor que geralmente se vincula ao coração está completamente desconstruído, afinal a comparação dele é feita com uma moeda, ambos “sem relevo” e “gastos”. Se a moeda é um símbolo de cobiça, uma nova alegoria recai sobre o eu lírico: a ductibilidade material impingida ao coração no primeiro verso da segunda estrofe é uma resignação culposa: “E sem relevo, os caracteres gastos,/ De resignar-se torpemente ductil...”

O período possui uma inventividade simbólica, estrutura elaborada através de um hipérbato que não pode ser desfeito. O verbo “resignar” com o pronome reflexivo “se” refere-se a “coração” ou a “moeda”, mas a quebra da sintaxe não nos dá tal certeza gramatical. O autor se utiliza de uma fragmentação de ideias no poema que proporciona ao leitor uma apreciação de pequenas partes atadas hermeticamente numa espécie de entendimento do todo do poema sem, no entanto, respeitar a sintaxe da língua. Outro aspecto que corrobora essa fragmentação na primeira estrofe é a divisão de todos os versos em dois sintagmas nominais que carregam em si o paradoxo, já referido acima.

Então, o experimentalismo linguístico não é uma falha coesiva, uma lacuna do poeta, mas subversão do analogismo do idioma. A língua abandona todas as suas sutilezas coesivas e parte para uma construção em que o dito é o essencial. Seja no som

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ou no sentido, não há mais preocupações com a lógica interna do idioma. A língua, então, faz-se subversão e abandonando seu analogismo torna-se grotesca no sentido de ser uma inversão dos paradigmas determinados pela gramática. Como explicar a essência do poema sem o signo Madalena? Por outro lado, como explicar a presença do signo no poema?

Não é correto pensarmos aqui em uma sugestão simbolista. A questão é que falta ao eu lírico palavras para expressar sua sensações. Para tanto, o uso de um ícone do arrependimento, a Madalena arrependida, ainda que incerta, pode representar imageticamente o que a lógica do idioma não consegue. Como se tivéssemos no poema um símbolo sonoro-ideogrâmico questionando a capacidade de uma língua analógica expressar conflituosos estados de interioridade. Ainda assim, a semântica da língua portuguesa também traz um indício de modernidade que é o estranhamento proporcionado pelas imagens, senão, como explicar “cabelos de rastos”?

“Cabelos arrastados” seria a saída mais lógica dentro do analogismo gramatical, mas podemos pensar também em “cabelos que deixam rastos” ou em “encabelar rastos” e ainda “encabelar arrastado”, enfim o que melhor explica a imagem é ela mesma, “cabelos de rastos”, numa hipálage que constrói um universo grotesco e aparece em outros sintagmas da primeira estrofe: “lírio poluído”, “branca flor inútil”, “coração, moeda fútil”. Apesar de ser uma figura semântica, a hipálage interfere numa espécie de sinestesia absoluta, em que as representações, em um sentido schopenhaueriano, são construídas apenas para a poesia. Cria-se uma poesia que só não é metafísica pura pelo fato de estar grafada, ou seja, existir enquanto signo e palavra.

A segunda estrofe do poema apresenta o primeiro verbo do poema que começa com um anacoluto. Além de estar acompanhado por um pronome reflexivo, “resignar” indica uma passividade que é construída também pelos termos posteriores: “torpemente dúctil”. Há uma espécie de contemplação de Madalena, metonímia do arrependimento. Note-se que Madalena é também um espelho do eu poemático. Aliás, são os arquétipos que Madalena carrega em si que refletem à voz lírica o que ela é, a saber: arrependimento e arquétipo de pecado.

O poema trabalha com uma interessante ambiguidade que é a dureza da contemplação do arrependimento personificado, ou seja, o olhar que o eu lírico tem sobre Madalena é o mesmo desenvolvido ao longo dos séculos, condenatório, ou é uma visada de insensibilidade ao arrependimento dela e do próprio eu poemático. O campo semântico de “dúctil” possibilita essa segunda interpretação. Para o poema manter seu

analogismo, a sequência poderia ficar: “Meu coração, velha moeda fútil, está com os caracteres gastos de resignar-se torpemente dúctil”.

Ainda assim, “De resignar-se torpemente dúctil” ganha uma função adverbial e “torpemente” possibilita esta dupla interpretação, afinal a torpeza da dureza do eu lírico se refere à contemplação do arrependimento, ou é o próprio fato de se arrepender? O advérbio geralmente modifica o verbo e o adjetivo completando-lhe o sentido, no entanto aqui, vemos que a operação é contrária – o advérbio ajuda a indefinir. Sendo esta característica simbolista-decadentista, podemos dizer que esse elemento da escola se faz presente aqui, todavia numa perspectiva que prenuncia a reinvenção gramatical da modernidade.

No segundo verso, o poema volta a ser dividido em duas instâncias e, no último verso, em três. Apesar de semelhante à primeira estrofe o verbo aparece mais uma vez no terceiro verso e formas verbais nominais aparecem na última estrofe. A divisão dos versos em duas partes segmenta-os. A relação se estabelece com os dois campos semânticos principais do poema, Madalena e o eu lírico. Em dois versos onde não ocorre esse fracionamento ocorre, cada um deles se dedica a um dos arrependidos: “De resignar-se torpemente dúctil...” se dirige ao eu lírico e “Ó redenção do mármore anatômico” a Madalena; além deles, há uma instância dividida em três parte ao final do poema que se refere a ambos os seres. No entanto, é necessário ressaltar, Madalena personifica o arrependimento e tudo no poema se dirige indiretamente a ela de maneira sugerida, fragmentária e incompleta.

Se Bakhtin indica que para haver grotesco é necessário um universo incompleto, neste poema ele se faz presente através da lacuna e da incompletude, seja ela gramatical ou semântica, apesar disso não tem nenhum vínculo com o realismo grotesco. No entanto, aproxima-se do grotesco romântico, teorizado por W. Kayser, que podemos entender aqui, tal qual Bakhtin, como moderno: “[...] em geral, podem-se distinguir duas linhas principais. A primeira é o grotesco modernista (...). Esse grotesco retoma (...) as tradições do grotesco romântico; atualmente se desenvolve sob a influência das várias correntes existencialistas.”164

Já analisamos o grotesco pensado por Kayser como moderno anteriormente. Das suas características, a mais importante presente no poema é a fragmentação das imagens, da semântica da língua e da própria linguagem. A estranheza na recepção de

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tal produção de linguagem cria um grotesco alheado, com regras próprias de concepção e destruição. Pessanha, cônscio de seu trabalho inovador, aniquila a lógica da linguagem e a reconstrói sob um novo viés, e é através da associação do receptor de elementos extratextuais que a obra ganha significado. Este é próprio ao poema e à Clepsidra. A escrita dos poemas é a demonstração de uma existência única, de um ser-em-si; e a obra, com todos os poemas formando pequenos universos particulares, é, também, uma coisa-em-si.

Se o que Maria Madalena representa para a cristandade é constantemente revisitado, o poema expressa um invocativo, “ó cabelo de rastos”, absolutamente imagético, sugestivo e metonimicamente grotesco, tal qual aparece no imaginário francês e em suas “madonas negras”, inspiradas pela reclusão da santa em uma caverna do país. Faz-se necessário um aparte: dadas a intelecção de Pessanha e a própria didascália do poema ser retirada da Bíblia, parece-nos óbvio que ele conhecia o episódio bíblico e sabia não ser Madalena a mulher a prantear os pés de Cristo.

Retomemos o aspecto sonoro do poema. Pessanha adota o verso clássico, mas sempre os subverte em seus poemas. A cesura não ocorre apenas na tonicidade das palavras, mas com sinais de pontuação e com a própria fragmentação discursiva. Franchetti destaca em “Imagens que passais...” enjambements violentos e a ordenação sintática por parataxe como elementos desestabilizadores da leitura do soneto. O mesmo ocorre aqui. A sonoridade contribui para a fragmentação da linguagem no poema. A busca por uma música poética rara permitiu a esta tornar-se grotesca à sensibilidade do leitor. A partir da análise que faz de outro soneto, Paulo Franchetti concorda com tal estranhamento:

Mas, de um ponto de vista tradicional, é mesmo um momento de quebra, em que o ritmo expressivo se impõe, com flagrante desrespeito à convenção métrica. O verso seguinte, entrecortado sintaticamente, não representa um problema, do ponto de vista do metro, mas o último embora mantendo-se dentro dos limites silábicos, sintetiza todo o estranhamento que marca esse soneto, ao apresentar uma acentuação completamente estranha aos esquemas tradicionais, e que dá ao verso um andamento algo grotesco e bastante inusual165.

Além da estranheza sonora do poema, os dois tercetos estão recheados de imagens estranhas. A parataxe impossibilita a definição de um sujeito para as frases, por

165 FRANCHETTI, Paulo. Nostalgia, exílio e melancolia: leituras de Camilo Pessanha. São Paulo: EDUSP, 2001. p. 43.

isso tudo se direciona ao eu poemático e/ou a Madalena. Por aproximação semântica, entende-se que é o “Meu coração” que está “Dentro do peito”. Ainda assim, o que é “abominável cômico”? Afora o paradoxo inerente à expressão, seria a espetacularização do arrependimento? Ou o próprio arrependimento de um coração dúctil? A resposta, como não poderia deixar de ser, é absolutamente fragmentária. “Amargura” se aproxima visual e semanticamente do “Desespero” que aparece na segunda estrofe.

O poema permite uma remontagem plástica em que o leitor, apesar de não ver nenhum trabalho visual diferenciado com a estrutura do poema, pode remontar o texto através de uma aproximação de palavras. Teríamos assim, alguns termos diretamente ligados a Madalena, sendo ela a personagem bíblica, ou um monumento artístico; e palavras ligadas ao campo semântico do próprio eu poemático. Algumas expressões, obviamente, associam-se a ambos. Assim, temos:

Madalena Eu lírico (“Meu coração”)

“Cabelo de rastos”, “Lírio poluído’, “Branca flor inútil”

“Velha moeda fútil”, “sem relevo”, “os caracteres gastos”,

“De resignar-se torpemente dúctil” “Nudez de seios castos” “Desespero”

“Ensanguentado, enxovalhado, inútil,”

“Ó redenção do mármore anatômico” “Dentro do peito”, “abominável cômico!”

“Nudez de seios castos” “Amargura,”