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consciência da vida: que dirige toda atividade em direção à vida eterna e à

salvação.173

Com toda a aura que circunda o número cabalístico, por que Sá-Carneiro o utilizou, atentando-nos ao fato de que o sete é um número arquetípico em várias tradições culturais de totalidade e os poetas do período todos se mostravam muito interessados pelos mais diversos ocultismos? No livro Indícios de Oiro, Sá-Carneiro coloca o poema como o sexto em ordem de aparição. O sétimo poema do livro é

172Este e os demais poemas escolhidos para análise da parte “Mário de Sá-Carneiro” foram extraídos de: SÁ-CARNEIRO, Mário de. Obras Completas. Organização, introdução e notas de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. (Nota do autor)

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intitulado, também numericamente, como 16. O número carrega a significação geral de oposição ao nirvana – é o abismo. Após os sete graus de consciência, adquiridos através da conclusão de um ciclo e de uma renovação positiva, tem-se o abismo.

No entanto, o tema desenvolvido pelo poema não carrega nenhum aspecto positivo. O niilismo é subjetivo. A fragmentação do sujeito moderno se manifesta na despersonalização. O eu não é eu. A partir disso, induz-se que o eu então é outro. Também não é. Há uma coisificação do eu poemático que paira em indefinição. Novamente, a atmosfera do Sensacionismo parece dar uma contribuição notória para a construção do poema. Com ele, é preciso atentar para os atributos gramaticais do texto como construtores de sentido.

O poema é curto, possui quatro versos e é escrito com apenas uma pausa longa ao final, o que proporciona dinamismo ao texto. Notamos, entretanto, que o poeta prefere repetir o uso do verbo de estado, ao invés da ideia de movimento que o verbo “ir”, único no poema com essa força dinâmica, possui. Mais emblemático que o uso dos verbos é o dos pronomes. “Eu” aparece duas vezes no primeiro verso e está elíptico no segundo, depois submerge, mas aparece modificado no oblíquo “mim” do último verso. Há ainda o caso do pronome indefinido “outro”, que encerra dois versos do poema. A curiosidade que o poema traz na gramática não é a simples repetição, mas a função morfossintática dos termos.

Primeiramente, o existir, centrado no uso do verbo “ser” ocorre não mais em uma pessoa nominada, mas numa substituição do nome. O pronome substantivo tem esta exata função, mas não a percebemos antes na literatura portuguesa com intuito de reificar o indivíduo. É o que parece no poema de Sá-Carneiro ainda mais com o eu enquanto negação do próprio eu no primeiro verso. O estranhamento morfossintático ocorre pelo fato de o segundo “eu” ter uma função adjetiva, não mais pronominal, nem substantiva. O deslocamento do sujeito, sua falta de lugar, fica perceptível também na gramática, afinal o copulativo “ser” liga o “eu” ao “não eu”.

Além disso, a oração alternativa a seguir, “nem sou o outro”, aponta para um niilismo fatalista e filosófico: o que somos? O poeta não procura responder e provoca ainda mais, com outra oração: “sou qualquer coisa de intermédio”. A reificação da subjetividade do eu poemático está próxima de um caráter inanimado, e automático. A coisificação do eu transforma-o em em objeto com uma função determinada: ser elo entre outras duas coisas ou entre o próprio eu e outra coisa, é a perda de sua autonomia e autoconsciência.

Nesse sentido, o indivíduo autômato e grotesco do poema se aproxima das produções teatrais. Os personagens de marionetes do teatro moderno e pós-moderno se expressam em poucas falas, tal qual o eu poemático nesses poucos versos do poema. Além disso, o automatismo típico do eu poemático rememora os personagens beckettianos, para ficarmos em apenas um autor. No caso do poema, o minimalismo se faz construção grotesca através da gramática. Por exemplo, o advérbio de modo “qualquer” demole qualquer significação mais elevada e introduz uma conclusão típica da desconstrução – “coisa de intermédio”.

O penúltimo verso do poema, também como oração alternativa, faz uso de uma espécie de poética lacunar, pois tanto o sujeito quanto o verbo estão elípticos – gramaticalmente não precisamos nem de sujeitos, nem de verbos, mas de complementos: “pilar da ponte de tédio”, enfim, o eu se torna semanticamente algo existente; no entanto a impressão se dissipa com o uso do complemento nominal. A subversão ocorre em outro aspecto: apesar de “de tédio” ser adjunto adnominal de “ponte”, ele pode exercer o papel morfossintático de complemento nominal.

O último verso, ainda subversor, é uma oração subordinada adjetiva explicativa, mas poderia exercer também a função de oração subordinada apositiva. Grotesco um texto que subverte a gramática e todas as regras estabelecidas pelos mestres da língua. Estes que sempre vaticinam que a ambiguidade do texto lhe é prejudicial, assim como ao leitor. Muito além do que Bakhtin manifesta como características elementares de uma poética grotesca, Sá-Carneiro ressignifica a gramática, dando várias possibilidades de interpretação do texto apenas com diversas visões morfossintáticas.

Ele ambígua a língua em dois sentidos: o eu é não eu, o sujeito é o não sujeito, a língua é a não-língua. Enfim, o grotesco da linguagem, feito em gramática, é também o grotesco do conteúdo do poema. Por outro lado, o que se pensa grotesco é também não-grotesco. O estranhamento que permeia o poema é da ordem do sujeito, é filosófico. A conclusão, como apontamos superficialmente acima, parece vir no poema seguinte, com a carga simbólica de seu título 16, o abismo. O caráter abismal é fulcral para o grotesco na visão de Wolfgang Kayser, inclusive o estudioso identifica que o abismal, a estranheza e o tragicômico aparecem mesclados numa mesma obra.

Outro caráter subversivo que se manifesta no título do poema é o uso de um número para intitular o poema. O número representa a escrita. Apesar de ser usado um signo comum a qualquer leitor de língua portuguesa, o código parece ser subvertido.

Ainda distante da poesia visual, mas já com uma pequena amostra dela, há um uso de um signo matemático na titulação de um poema. Parece-nos estar além da subversão. O grotesco se faz linguagem, ou subversão desta, de maneira que difere das palavras ligadas ao baixo material e corporal de poemas escritos outrora.

Outro poema de Sá-Carneiro que trata da linguagem subversiva é o longo

Manucure. Este será um dos poucos poemas não incorporado integralmente à tese

devido ao seu tamanho. Também não é possível fazer uma interpretação una do poema, não apenas pela extensão, mas pela proposta dadaísta presente nele. Então, selecionamos trechos esparsos para amostragem de uma linguagem grotesca.

Ainda numa visualidade tipográfica conservadora, temos expressões como: “bocejos amarelos”, uma hipálage, figura por si só grotesca; “as mesas [...] esquinadas em sua desgraciosidade boçal”, além de personificar as mesas, cria um neologismo e uma espécie de disfemismo no trecho final que colocamos; outros versos interessantemente grotescos são “Fora: dia de Maio em luz/ E sol – dia brutal, provinciano e democrático [...]”. A interrupção semântica no primeiro verso se repete no seguinte – se o anacoluto é utilizado para expressividade verbal, aqui irrompe uma espécie de violência verbal e social que aflige a voz poemática no segundo verso – construção estilística soberba para uma linguagem grotesca, que é reafirmada a seguir: “Toda a minha sensibilidade/ Se ofende com este dia [...]”.

O dandismo inicial da voz poemática, incluso no título do poema, mostra que seus amigos escritores “militam” em causas diferentes que não a escrita, o que caracteriza uma preocupação com a poética que transcende o próprio limite da vida pessoal. Também grotesca é a imagem do eu lírico um tanto irônico e/ou paródico que pule ou pinta suas unhas na segunda estrofe do poema. Essa imagem abarca o flâneur e o irônico/ paródico olhar da tradição menipeia em um único ser. Em suma, os recursos literários utilizados pelos escritores analisados anteriormente são todos empregados também por Sá-Carneiro, mas a experiência de construção de linguagem grotesca em sua obra se torna mais visível através das subversões gramaticais constantes e do aspecto visual que a poesia pode adquirir, abandonando o tradicionalismo de sua forma. O propósito de explorar Manucure foi o de utilizar alguns recursos da poesia visual, e do dinamismo intimamente ligados às vanguardas Futurista e Dadaísta.

Além disso: a voz poemática sente e percebe a vida moderna de maneira indecifrável:

E tudo, tudo assim me é conduzido no espaço Por inúmeras intersecções de planos

Múltiplos, livres, resvalantes.

É lá, no grande Espelho de fantasmas

Que ondula e se entregolfa todo o meu passado, Se desmorona o meu presente,

E o meu futuro é já poeira...

As “intersecções de planos” nada mais são que a pulverização da física quântica até então pela teoria da relatividade de Albert Einstein. Mas a expressão “Espelho de fantasmas”, tal qual outras no universo poético de Sá-Carneiro, ainda que tenha alguma relação com o passado, portanto deduz-se que o espelho é antigo, não explica esses fantasmas do passado, do presente e do futuro. A desconstrução do ser poético perpassa não mais um intervalo de tempo, mas todos os intervalos conjuntamente.

Sá-Carneiro desenvolve uma poética de amalgamento de tempo, espaço e seres que se associa ao grotesco moderno. Muito além disso, o amalgamento também se dá na fragmentação. Amalgamento e fragmentação, antípodas, funcionam em Sá-Carneiro como complementariedade. Daí nosso entendimento de que a poesia do “esfinge gorda” é um oximoro, mas também não o é. A relativização sempre se faz necessária na obra dele, pois nem o todo, nem a parte são somente o que parecem ser. Neste autor temos a junção da poésie pure, com a moderna filosofia fragmentária e inacabada.

O movimento futurista proporciona uma nova poesia. Também esta diferente. As intersecções veem os limites do espaço-tempo se diluírem. O grotesco enquanto linguagem se manifesta numa velocidade em que não se tem tempo de contemplar as variantes. O simples ato de pestanejar, repouso momentâneo dos olhos, não é mais possível diante de tanto que se tem para olhar. No entanto, antes de tudo se tornar o que se é aos olhos e ao ser, a Beleza cansa:

-Meus olhos extenuaram de Beleza!

Inefável devaneio penumbroso-

Descem-me as pálpebras vislumbradamente...

No entanto, a Beleza também se vislumbra, como o último verso acima aponta. Ao mesmo tempo em que o cansaço dá ao eu poemático uma espécie de disforia, ver tudo maravilhosamente faz com que o vislumbre se transforme em deslumbre. O inacabamento do ser poemático parece se constituir de um contraditório acabamento. O ser lacunar é também um ser total, uma espécie de homem-deus, ou, conforme Nietzsche, o homem-além-do-homem. Assim como o homem, a linguagem é outra. O analogismo não possibilita essa expressão total de que o eu poemático necessita algures da linguagem.

Na verdade, dentro do universo construído pelo poema, a linguagem sequencial e pragmática é grotesca no simples fato de não conseguir expressar tal beleza veloz – e aqui o grotesco é o outro e o eu, tudo ao mesmo tempo. Obviamente que para tanto, vemos aqui a questão da recepção da escrita como elemento basilar na interação que se estabelece entre leitor e texto. A língua se manifesta lentamente na escrita, esta sua deformação. Daí o trecho anterior ser, como é colocado no poema, a “ASSUNÇÃO DA BELEZA NUMÉRICA”, que vemos a seguir:

Como vemos, além da adoção de números em um poema, o que já destacamos na análise anterior, os números formam um código poético novo, não desvendado pelo leitor. O uso dos números obviamente não codifica a poesia. O que se faz é questionar os ditames linguísticos, as limitações verbais. Se há uma forma grotesca de nova linguagem que questiona a grotesca linguagem antiga, ela o faz aproveitando a espacialidade da folha em branco. Com o latente papel de crítico literário que tudo quer desvendar no poema, observamos que o único número que não se repete é o “2”. Por quê? Não conseguimos decodificar. O poema parece brincar com os códigos secretos de guerra. Além disso, o símbolo adotado pela matemática para infinito é o “8” deitado. Seria um indício de que o poema (ou seria a linguagem?) ruma para o infinito?

O processo de construção da linguagem perpassa a técnica da bricolagem. A poesia é feita também com números, tal qual fez Rimbaud em sua sinestesia limite. O

código é outro, desconhecido, alheado, enfim absolutamente moderno e grotesco. Sua modernidade futurista parece encerrar em si a expressão de Marinetti: “Les mots em liberté futuristes” (As palavras em liberdade futuristas). O encanto em romper com a sintaxe da língua se dá no fato de que a língua não exprime o necessário. Já a semântica, incompreensível e grotesca nos números acima, ganham um sentido absoluto num trecho anterior do poema. As palavras se ondeiam no momento em que o signo “ondeia” aparece:

A metalinguagem ainda é uma preocupação da poesia, mas se concretiza de outra maneira. A ondulação é uma força-em-si. A reflexão metalinguística perpassa o poema sem mesmo se preocupar com a poesia em si, afinal a lógica futurista de movimento e velocidade faz com que o uso dos recursos tecnológicos seja ainda uma preocupação com o trabalho poético. Se é inovador e chocante para a época, não é necessariamente grotesco. O espaço ocupado pelos signos na folha também significam. Além da relação de significante e significado, a construção de sentido do signo também se consolida na consideração do espaço ocupado pelo caractere e sua própria forma. O grotesco espetáculo de números que ganham vida e tentam significar tal qual letras desconstrói a lógica do idioma. Portanto, o grotesco se faz no cerne da linguagem, na relação entre signo, significante e significado. Se no exemplo acima a espacialidade da palavra não se fez grotesca, o mesmo artifício poderia ser constitutivo de tal categoria literária.

Manucure é uma contestação ao analogismo do idioma, é uma expressão outra

das palavras. De alto calibre grotesco no uso de palavras em outra perspectiva, mais ligada ao espacial. No entanto, por qual motivo os poetas portugueses do período não adotaram tal artifício da propaganda de maneira mais incisiva? Uma das explicações está no fato de que a indústria gráfica portuguesa, ao contrário de outros países, não estava preparada para tais mudanças, conforme indica Jorge Bacelar174. No entanto, absolutamente moderna, a tipografia também é uma preocupação do poeta agora:

174 BACELAR, Jorge. Poesia visual. In: http://www.bocc.ubi.pt/pag/bacelar-jorge-poesia-visual.pdf. Acesso em: 05/09/2011. p. 20.

Eh-lá! Grosso normando das manchettes em sensação! Itálico afilado das crônicas diárias!

Corpo 12 romano, instalado, burguês e confortável! Góticos, cursivos, rondas, inglesas, capitais! Tipo miudinho dos pequenos anúncios! Meu elzevir de curvas pederastas!... E os ornamentos tipográficos, as vinhetas, As grossas tarjas negras,

Os puzzles frívolos - e as aspas... os acentos... Eh-lá! Eh-lá! Eh-lá!

A sensibilidade da voz poemática carrega os tipos de letra característicos, personifica-os e o clímax da reflexão metalinguística é quando símbolos que não pertencem ao alfabeto oficial também se efetivam como são, signos em si, porém, dentro do contexto do poema, sem representar nada. O poeta esvazia o significado dos símbolos, e a vacuidade de significados e de sentidos torna o trecho ilegível, mas visível. Torna-se a visualidade das letras uma busca pela assunção da palavra moderna, um non sequitur, sem sentido e grotesco, mas com uma beleza inerente a ele. No trecho seguinte, não menos grotesco, a visualidade perde intensidade e a reflexão metalinguística se depara com a “nova simpatia onomatopaica”:

- Abecedários antigos e modernos, Gregos, góticos,

Eslavos, árabes, latinos -, Eia-hô! Eia-hô! Eia-hô!...

(Hip! Hip-lá! Nova simpatia onomatopaica, Recendente da beleza alfabética pura:

Uu-um... kess-kress... vliiim... tlin... blong… flong… flak… Pâ-am-pam! Pam... pam... pum... pum... Hurrah!)

Primeiramente, a mescla de signos reconhecíveis e de outros pertencentes a outras linguagens, dá-nos a ideia de que a representação em si não faz nenhum sentido. O signo é coisa em si, sem significantes e significados. Sob tais ditames, a língua, a palavra e a poesia são inconcebíveis. Assim, vislumbra-se a construção de uma linguagem grotesca esvaziada de significado. Temos aqui o nonsense, portanto, não o grotesco ligado à cultura popular ou ao sinistro. Retomando os caracteres representativos do código cuja forma é reconhecida em língua portuguesa, forma-se uma “nova simpatia onomatopaica”, também ela grotesca.

A seguir, o poeta utiliza nomes de estabelecimentos jornalísticos e comerciais, tal qual recomenda o movimento futurista, os dadaístas e até o posterior surrealismo. O novo sentido da linguagem está na lógica da linguagem da propaganda e da indústria jornalística:

A simples colagem de nomes de jornais de destaque mundial forma parte do poema. É observável que o autor adota a colagem para manter a tipografia exata dos nomes dos jornais. Nessa variável tipologia está a poeticidade das palavras. Dentro dessa proposta radical e grotesca de linguagem, o trecho não carece de logicidade. Assim sendo, o eu lírico incute em si uma imagem de louco moderno com força expressiva. Para tanto, ele se concretiza em palavra-loucura, afinal sua representação é o poema em si. Esse tipo de construção carrega em si um estranhamento característico do período moderno.

Duas questões se fazem necessárias: no contexto em que estão inseridos os poetas desse período expressam a loucura e desnecessidade das guerras? O experimentalismo dadá futurista é altamente grotesco no sentido moderno que o termo

carrega? Os dadaístas elaboraram seu Manifesto em plena Primeira Guerra. Escrever um manifesto enquanto não se sabe ao certo se uma bomba vai cair sobre o ambiente em que se está e/ou temendo pela própria vida indica que não é seu experimentalismo que é grotesco, mas o mundo real.

O que se depreende daí é a tênue separação que se dá entre a história e o grotesco. Se o mundo real é grotesco, a obra de arte também o é? Se a história é absurda enquanto experiência empírica, há absurdidade na obra de arte? O grotesco, já o vimos no primeiro capítulo, tem uma atuação política. Daí sua atuação política contra a inevitabilidade da guerra. Nessa atmosfera, o automatismo psíquico, o absurdo e a desordem fazem com que a poesia vire uma fórmula matemática:

Marinetti + Picasso = Paris <Santa Rita Pin-