• Nenhum resultado encontrado

3. RECORTES DO GROTESCO NA HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA

3.1. O DISCURSO ANTICANÔNICO

3.1.1. Cantigas de maldizer

A gênese da linguagem grotesca se dá exatamente no nascimento da língua e da literatura portuguesa. O prefácio do professor Manuel Rodrigues Lapa expressa exatamente a carência de uma publicação reversa à idealização da língua:

[...] os nossos trovadores não tinham só os olhos postos no ideal; também fitavam as realidades quotidianas, com olhos de ver; e a argúcia e o engenho que punham na casuística do amor, sabiam empregá-los outrossim na descrição e repreensão dos ridículos e mazelas dos contemporâneos. Por variadas razões, só hoje, para que fomos carreando materiais.119

No entanto, seria essa linguagem ligada ao baixo material e corporal de maneira marginal, como o dissemos acima? Segundo Graça Videira Lopes, não:

‘Dissolutas pasquinadas carnavalescas’ e ‘lixos verbais’, eis como dois dos

mais sérios e reputados especialistas de literatura medieval referem a matéria satírica dos Cancioneiros (que tiveram, aliás, o mérito de dar a conhecer). Se exceptuarmos o tom moralista, vemos, aliás, que Carolina Michaellis pressente a relação que une muitas destas cantigas ao universo carnavalesco popular – e acaba por ter de reconhecer, ainda que a contra gosto, a profunda

penetração deste universo ‘vulgar’ na vida quotidiana medieval,

nomeadamente em cortes tão brilhantes como a de Afonso X.120

O que mais caracteriza a linguagem dos textos satíricos medievais, no entanto, é o amplo contato entre os dois tipos de manifestação linguística: “É a coexistência simultânea destes dois registos, tão profundamente opostos, num mesmo espaço e pelas mesmas vozes, mas sem aparente contacto entre si, que torna mais marcante a violência verbal de um deles.”121

Além disso, a autora cita a seguir a estreita relação existente entre a nobreza medieval e as classes mais populares, o que aproxima as castas não apenas pela cultura e pela educação, mas fundamentalmente pela mundividência.

Ao contrário do que se pensa, o estatuto da linguagem satírica dos medievais é fruto de reflexão sobre a linguagem e até mesmo sobre os gêneros, mais ou menos flutuantes na sátira, como a autora indica ao analisar os fragmentos da Arte de Trovar, texto de autoria desconhecida que introduz o Cancioneiro da Biblioteca Nacional.

119 LAPA, Manuel Rodrigues. Cantigas de Escarnho e de mal dizer dos cancioneiros medievais galego- portugueses. Coimbra: Editorial Galáxia: 1965. p. VII.

120 LOPES, Graça Videira. A sátira nos cancioneiros medievais portugueses. 2ª edição. Lisboa: Editorial Estampa, 1998. p. 76.

Rodrigues Lapa faz uma síntese dos seis principais temas e das características das cantigas de escárnio e maldizer:

Deserção dos cavaleiros na guerra de Granada; 2) Traição dos alcaides de D. Sancho II; 3) Chacotas a Maria Balteira; 4) O escândalo das amas e tecedeiras; 5) As impertinências do jogral Lourenço; 6) A decadência dos infanções, fenômeno social e econômico, que os cantares de maldizer perfeitamente documentam. [...] A presente coleção permitirá acrescentar a esses núcleos outras séries mais ou menos consideráveis: as facécias que

visam Joan Fernandes, o ‘mouro batizado’; a viagem de Pero d’Ambroa ao

Ultramar; o pederasta Fernan Dias, alvo de ironias e jogos verbais interessantes; o pitacego D. Estêvan Anes; o trovador avilanado Sueir’Anes; enfim, um número razoável de jograis e soldadeiras que, por seus ridículos ou excentricidades, despertavam a vis cômica dos seus contemporâneos.122

Para que os principais temas não se tornem incompreensíveis ao leitor não especializado em galego-português, fizemos uma versão de todos os poemas analisados aqui. Partindo das paráfrases feitas pelo professor Rodrigues Lapa em seu notável trabalho de recuperação das cantigas de escárnio e maldizer e do dicionário de galego português que o autor nos legou, adotamos tal empreitada com o intuito de facilitar a leitura dos textos em língua brasileira contemporânea. Ressalte-se que as versões feitas aqui não têm uma pesquisa filológica apurada. Além disso, o tempo exíguo para uma pesquisa com o escopo que selecionamos não permite um trabalho mais apurado, no sentido de considerar a rima, os metros, enfim todo o trabalho sonoro do poema em consideração.

Depois de uma breve exposição de nossas limitações no trato com as cantigas, retomamos R. Lapa que observa a presença de cantigas satíricas de tendência abstrata, religiosa ou moral, talvez inspiradas no famoso trovador francês Peire Cardenal. De maneira geral, as cantigas de escárnio e maldizer portuguesas adotadas aqui estão mais próximas ao plano da vida concreta. As pequenas escaramuças diárias, constituição básica do acervo satírico medievo, estão carregadas daquela ambivalência que Bakhtin identifica na cultura popular – destronamento e reificação. A primeira cantiga que selecionamos para análise foi a de número sete (07) no livro que Rodrigues Lapa organizou dedicado apenas às cantigas satíricas:

Cantiga 07

Non quer'eu donzela fea

Versão

Não quero eu donzela feia

122

que ant'a mia porta pea.

Non quer'eu donzela fea e negra come carvón, que ant'a mia porta pea nen faça come sisón. Non quer'eu donzela fea que ant'a mia porta pea.

Non quer'eu donzela fea e velosa come can, que ant'a mia porta pea nen faça come alermã (alacran). Non quer'eu donzela fea que ant'a mia porta pea.

Non quer'eu donzela fea que ha brancos os cabelos, que ant'a mia porta pea nen faça come camelos. Non quer'eu donzela fea que ant'a mia porta pea.

Non quer'eu donzela fea, velha de maa coor, que ant'a mia porta pea nen me faça i peior Non quer'eu donzela fea que ant'a mia porta pea. Dom Afonso X123

Que ante a minha porta peida.

Não quero eu donzela feia E negra como carvão Que ante a minha porta peida Nem faça como o sisão Não quero eu donzela feia Que ante a minha porta peida.

Não quero eu donzela feia E peluda como o cão Que ante a minha porta peida

Nem faça como um arrudão (o alacrão). Não quero eu donzela feia

Que ante a minha porta peida.

Não quero eu donzela feia Que tem brancos os cabelos, Que ante a minha porta peida Nem faça como os camelos. Não quero eu donzela feia Que ante a minha porta peida.

Não quero eu donzela feia, Velha que peida e caga, Que ante a minha porta peida Nem me faça o pior

Não quero eu donzela feia Que ante a minha porta peida.

No caso desta cantiga, Rodrigues Lapa insere o seguinte comentário: “Estranha composição, em que o régio trovador infringe todas as regras da cortesia, rebaixando a mulher a um nível perfeitamente animal, o que se vê das próprias comparações que estabelece na escala zoológica.”124

123 Este e os demais poemas escolhidos para análise da parte “Cantigas de maldizer” foram extraídos de: LAPA, Manuel Rodrigues. Cantigas de Escarnho e de mal dizer dos cancioneiros medievais galego- portugueses. Coimbra: Editorial Galáxia: 1965.

124

O mote que o rei D. Afonso de Castela e Leão utiliza “Non quer'eu donzela fea/ que ant'a mia porta pea” ganha uma constante repetição anafórica no poema, sendo também um refrão ao final de cada estrofe. É notável, novamente, que os ‘excrementos linguísticos’ tenham saído da própria boca da nobreza do período; ou seja, o porta-voz da língua oficial, o rei, é anticanônico. A mulher a quem o rei se refere tem uma conotação tão vasta, que só o conviva poderia compreender a quem ou a que situação se referia. Infere-se pelo uso do substantivo “donzela” que poderia ser uma jovem vilã, com hábitos higiênicos desregrados, ou pelo menos divergentes dos da voz poemática; por outro lado, poderíamos pensar em “donzelas” como uma ironia, ou antinomia do “velha” que aparece subentendido na penúltima estrofe e de maneira direta na última, o que caracterizaria uma sátira às velhas agourentas. Além do rebaixamento da mulher, a comparação com os animais dá azo a interpretações outras, como veremos a seguir.

Rodrigues Lapa explica que a palavra “sison” é um substantivo que indica um tipo de ave da família das abetardas. A comparação com a ave, esta bem comum em Portugal, não é absolutamente compreensível, segundo Lapa. No entanto, outra palavra pertencente à estrofe pode ajudar: provavelmente a comparação com o “carvão” rebaixa a mulher a uma condição social inferior e a aproxima do pássaro, que pode possuir sua penugem na cor do material calcinado. O carvão simboliza matéria suja terrestre, o baixo material corporal bakhtiniano. Hoje, na injúria popular, também rebaixadora, há um sentido pejorativo que se faz na comparação de pessoas negras com a substância orgânica. Desconhecendo-se o caráter preconceituoso de tipo racial naquela sociedade, pode-se associar novamente à falta de higiene da mulher, o que a associação com os animais que aparecem a seguir corrobora devido ao odor fétido que lançam ao ar.

Lapa revela que a comparação com a ave não tem sentido completo, mas podemos pressupor, pelos hábitos sexuais da espécie, que a poliginia (acasalamento do macho com várias fêmeas) faça com que o eu lírico construa uma autoderrisão – a pressuposição levaria em conta aqui o fato de o homem não suportar mais de uma mulher para a conjunção carnal.

Na segunda estrofe a comparação se realiza com outros dois animais: o cão e o alacran (segundo Lapa, uma espécie de Falcão). Antes de aprofundarmos a análise, ressaltamos que a palavra original da cantiga, no lugar de alacran era alermã. Na segunda edição de sua obra, Lapa corrige a análise que faz da cantiga e insere alermã para, depois, explicar que a palavra fica descontextualizada por ser o nome arábico da

arruda-silvestre, caracterizada por um odor forte e desagradável. Ambas as palavras serão analisadas no contexto da cantiga, pois são centrais na interpretação.

A primeira interpretação é a mais óbvia: refere-se à quantidade de pelos da mulher. Os cães simbolizam a fidelidade em qualquer bestiário. Em um sentido satírico, a mulher poderia ser uma daquelas amantes que se apegam acerbamente. Por outro lado, na heráldica medieval, o falcão despedaça a lebre, símbolo da luxúria, o que o faz carregar um significado de vitória sobre o desejo e o princípio feminino, mas na cultura popular, o falcão (arrogância) come o pinto (pênis e/ ou simplicidade). Esta segunda referência dá azo a uma leitura de que a posição topográfica elevada do falcão não o faz ver as coisas como elas realmente são na terra – uma forma de falar que a arrogância é tão grande, que não vê o que come. Condizente com a segunda edição da obra de Lapa, substituindo então alacran por alermã, a segunda interpretação é de que a mulher é peluda como um cão e cheira mal como uma arruda-fedida.

Outro animal presente é o camelo. A referência a este é a do animal que carrega uma carga extremamente pesada, é a ironia à ignorância que faz o ser se tornar subserviente. Como tal interpretação foge dos ditames da cantiga, a questão se transporta para o odor exalado pelo animal quando no cio. Ele aparece na terceira estrofe do poema rimando com cabelo. O cabelo simboliza a traição de si mesmo, como ocorre no episódio bíblico de Absalão. Na cantiga, os brancos cabelos representam a velhice, e o camelo, o fedor. Então, pensamos numa mulher velha e fedida. Na última estrofe não há referência alguma a um tipo de animal, mas há a expressão “velha de maa coor”, que segundo Rodrigues Lapa poderia ser traduzido como “que, além de traquejar, deixasse à porta o produto da digestão”125

.

Comecemos a análise pelo termo “peidar”, grande mote do poema. Conforme nota anterior deste trabalho, Bakhtin revela que as excrescências corporais e a satisfação das necessidades fisiológicas demonstram que a essência do corpo é transcender seus próprios limites, ultrapassá-los. A mulher então peida para ampliar-se no mundo, conseguir mais um homem para satisfação de outra necessidade, a sexual. Esta se coaduna com a rica comparação com animais que o autor faz. A alegoria estabelecida pelo eu poemático é a seguinte: a mulher exala um odor igual ao dos animais quando está no cio. A flatulência, e esta só se efetiva no poema na excessiva repetição do termo

125

“pea”, é a demonstração de que a mulher está viciada, como diz a linguagem popular, ou seja, no cio.

Afora as interpretações simbólicas que descrevemos acima, a comparação com animais é grotesca por si só, afinal é uma mulher que além de se apegar demais ao homem, deseja que ele dê conta de se relacionar com ela e com outras (no caso da comparação com o pássaro), afora o fato de ser sua besta de carga (no uso do camelo). No entanto, ela tem um impulso baixo, inferior, em matéria corporal, que é a cópula. Este acasalamento se liga não apenas ao baixo material corporal que universaliza o corpo através de seus orifícios, afinal também coloca o corpo da mulher como universal e então o autor fecha o poema com uma chave de ouro grotesca: a mulher caga; não defeca pois a carga semântica do baixo calão se perde. As fezes, segundo Bakhtin, são a matéria morta que serve como esterco, volta à terra para dar vida, comida, etc. A universalização, a transcendência do corpo se realiza plenamente através da palavra.

O discurso anticanônico ou as comparações que a voz poemática faz com animais transformam essa mulher em um animal. Podemos até pensar na repetição anafórica do poema como uma espécie de eco dos traquejos da mulher velha, ou ainda um latido ou zurro animal. Aliás, as mulheres velhas aparecem com grande constância nas cantigas medievais como estereótipo alegórico da parvoíce, de estar sempre xingando alguém aos berros. O próprio refrão do poema ecoa o que foi dito nos versos anteriores. Se a repetição é uma característica comum das cantigas pelo fato de haver um vocabulário ainda restrito, nesta cantiga o efeito disso é a reprodução de uma blateração, humana ou animal, com efeito rebaixador.

Ao levarmos em conta que a performance do trovador não é considerada em nossa análise, percebemos que possíveis gestualizações ou onomatopeias poderiam criar um efeito grotesco mais intenso ainda. Ao contrário do que pensa W. Kayser, a poesia pode ser grotesca sob qualquer condição, e isso não ocorre no simples fato de a poesia ser satírica ou não; ela não precisa ter uma profunda dimensão do sinistro, pois há uma outra profundidade a ser considerada aqui – a profundidade do riso dionisíaco, aquele que aproxima o homem de Deus ou dos deuses, ou ainda transforma esse mesmo homem em um deus, mesmo que temporariamente. Curioso e paródico o fato de que uma voz animal ou um xingamento faça com que o homem se recrie e se torne um deus. É a inversão topográfica do universo do carnaval que permite isso.

O grotesco da cantiga se faz através de uma mulher invertida topograficamente. Seja enquanto uma donzela apaixonada, ou uma velha tresloucada, seja por deixar sua

matéria baixa exposta, ou por ter sua flatulência comparada com frequência ao odor dos animais, suas características a vinculam ao universo do baixo material e corporal, que o eu lírico faz questão de satirizar. No entanto, Bakhtin frisa sempre o aspecto ambivalente de tal rebaixamento. O destronamento da mulher através de sua aparência, de seu odor, de seus detritos é a condição para sua elevação. Nessa perspectiva, inconscientemente ou não, a necessidade de cópula a faz ser entronizada. Ela deseja dar à luz uma outra vida. O corpo se transforma. A materialidade cósmica a faz odorizar o ambiente, tal a animália no cio. Suas blaterações grotescas não são diferentes das explosões da natureza, do grito gutural do instinto, da necessidade de talvez ser mãe.

Licenciando-nos um pouco da materialidade grotesca de Bakhtin, temos um corpo que gera outro. A mulher carrega em si a capacidade de renovar a vida, dar à luz, em um corpo que, na cantiga, é, contraditoriamente, apenas excrescência. Além disso, a matéria cósmica ganha um substrato metafísico quando o corpo se torna linguagem. A troca da matéria carnal pela matéria linguística a torna outra. A palavra satírica, ainda que não inteiramente marginal e excluída, descreve uma mulher às avessas. Seus odores, sua aparência, suas excrescências e até suas blaterações são descritas como discurso possível e impossível. Possível na linguagem hiperbólica e impossível na realidade de tão bestial que se faz. O fato de pensarmos na impossibilidade de um ser tão repugnante já a faz ambivalente. Se possível, talvez a figura seria digna de pena, misericórdia, nojo, enfim, sentimentos que contrastam com os que nos são dados quando da leitura do poema: um riso aberto e despojado.

Essa mulher só pode ser, contraditoriamente, idealizada. Entre velha e virgem, limpa e fétida, frígida e licenciosa, animalesca e humana, suja e limpa, ela é a palavra construída com perfeição para ser-o-que-se-é. Então, a palavra a torna sublime. Neste caso, a ambivalência de Bakhtin está permeada por um curioso paradoxo: a mulher é grotesca, por ser uma mulher-discurso sublime e a mulher-discurso sublime é grotesca porque transformada em palavra, quando pensada no real.

O grotesco ambivalente necessita de um rebaixamento e de uma regeneração para se efetivar completamente. O aspecto risível é fulcral para que obtenhamos uma reconstituição da mulher em sentido completo. No entanto, esta completude só se compõe através da mescla entre o riso despojado e a isenção de preconceitos proporcionada pela linguagem. O refrão necessita, na tradução, de um solecismo para o tempo do verbo “peidar”, pois a estrutura frasal exigiria o subjuntivo, mas a sonoridade pede o presente do indicativo. Além disso, o queísmo aparece em toda a extensão do

poema e fica mais evidente na última estrofe. O que parece uma lacuna do autor ajuda a aproximar a voz da mulher personagem à blateração de uma fêmea de camelo, ou ao latido de uma cadela no cio. Novamente: na performance, todos esses aspectos poderiam ser exagerados para o riso dos ouvintes se reverberar pela praça ou pelo paço da nobreza.

Já estabelecemos a relação entre o cheiro dos animais quando no cio e o mal odor exalado pela planta. Apesar de parecer absolutamente zoomorfizada, a mulher torna também o eu poemático risível. Tanto no camelo quanto no cão, a aproximação à fêmea se dá através do ato de cheirar o ânus. Ora, se a mulher peida e o homem exala, a autoderrisão ocorre como um reconhecimento constante da também animalizada condição do homem. Apesar da negativa do eu lírico, através da linguagem, identificamos que a cópula está próxima de se efetivar e, justamente por esse princípio de vida, quase se despreza o peido como matéria baixa. Sobre os gases intestinais, Graça Videira Lopes sintetiza o dito aqui: “a libertação de gases intestinais, manifestação carnavalesca típica, está relacionada com um primitivo sentido mágico da crença na libertação das almas dos mortos.”126

, ou seja, é parte da matéria baixa que se associa ao cosmos.

Não que ele se torne matéria elevada, mas é através dele que a cópula e, consequentemente, a vida, tornam-se possíveis, constituindo assim um eixo de ambivalência que se consuma também na esfera linguística. Nas duas últimas estrofes há o aparecimento de uma possível mulher velha. Segundo Bakhtin, a idade avançada representa também a ambivalência por carregar o paradoxal sentido de existência do realismo grotesco: a morte está grávida de vida.

Outra cantiga de Afonso X, o sábio, trabalha com o duplo sentido do substantivo madeira. Antes mesmo de iniciarmos a análise, constata-se que esse duplo sentido permanece na cultura popular até os dias de hoje, não perdendo seu efeito cômico, nem sua lógica ambivalente. Ela aparece no livro de Rodrigues Lapa como cantiga número onze (11). Vejamos:

Cantiga 11

Joán Rodríguiz foy osmar á Balteira sa midida, per que colha sa madeira;

Versão

João Rodrigues foi esmar a Balteira à medida, pra que colha sua madeira;

126

e diss'ele: «Se ben queredes fazer, de tal midid' a devedes a colher, assí e non meor, per nulha maneira».

E disse: «Esta é a madeira certeira, e, de mais, non na dei eu a vós sinlheira; e, pois que s'en compasso á de meter, e, de mais, non na dei eu a vós sinlheira.

A Maior Moniz dei ja outra tamanha, e foi-a ela colher logo sen sanha; e Mari'Airas feze-o logo outro tal, a Alvela, que andou en Portugal; e elas x’a colheron e na montanha». E diss': «Esta é a midida d'Espanha, ca non de Lombardía nen d'Alamanha; e porque é grossa, non vos seja mal, ca delgada pera greta ren non val; e desto mui mais sei eu ca Abondanha».