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O GROTESCO E O RISO: COMÉDIA, SÁTIRA, PARÓDIA E OUTROS ESCÁRNIOS

Conforme Mikhail Bakhtin diz, o grotesco possui uma proximidade enorme com categorias ligadas ao cômico e à sátira. No entanto, o autor fala sobre os imitadores de Rabelais:

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Seu universalismo se enfraquece brutalmente. A outra face desse processo se manifesta quando as imagens rabelaisianas são empregadas com fins satíricos. Isso conduz, nesse caso, à debilitação do pólo positivo das imagens ambivalentes. Quando o grotesco se põe a serviço de uma tendência abstrata, desnaturaliza-se fatalmente. Sua verdadeira natureza é a expressão da plenitude contraditória e dual da vida, que contém a negação e a destruição (morte do antigo) consideradas como uma fase indispensável, inseparável da afirmação, do nascimento de algo novo e melhor. Nesse sentido, o substrato material e corporal da imagem grotesca (alimento, vinho, virilidade e órgãos do corpo) adquire um caráter profundamente positivo. O princípio material e corporal triunfa assim através da exuberância.79

Com isso, far-se-á um comparativo do grotesco com outras categorias ligadas ao riso. “Por que estudar o riso?” – Esta é a pergunta que Georges Minois faz na introdução de seu livro e a resposta da importância que o riso tem em nossas vidas é dada pelo próprio autor:

Não é curioso [...] constatar que atualmente vivemos uma dupla contradição: de um lado, muitos têm a impressão de que o riso está voltando, já que ele se ostenta por toda parte; por outro lado, rimos cada vez menos, apesar de todas as ciências alardearem os méritos quase milagrosos do riso.80

O autor antevê que “o riso faz parte das respostas fundamentais do homem confrontado com sua existência”81

, tal sua importância que um papiro da Universidade de Leyde (séc. III) nos dá o nascimento do universo através de gargalhadas. Em todo caso, o estudo que faz do riso aponta para possibilidades antitéticas, afinal o riso pode ser tanto sério e conservador quanto libertário e subversivo. Neste momento é o segundo padrão que nos interessa, pois se liga intimamente com as categorias sátira, humor, chiste, paródia, ironia, alegoria, enfim as que se relacionam com o cômico.

Há diversos relatos na história ocidental de escritores satíricos que foram perseguidos, punidos, processados e até assassinados. Assim, o riso e suas subdivisões é tão marginal quanto o grotesco; o riso e o grotesco também pertencem à “ordem social” desde Demócrito e Alcibíades, mas se destacam enquanto elementos marginais e muitas vezes “subculturais”. O maior exemplo disso é Rabelais e tantos outros escritores mais ou menos cômicos estarem no Index inquisitorial até 1966, juntamente com autores que pensaram o grotesco, tais Victor Hugo e Henri Bergson.

79 BAKHTIN, Mikhail.. Op. Cit. p. 53-54.

80 MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Trad. de Maria Elena O. Ortiz Assumpção. São Paulo: Unesp, 2003. p. 18.

81

Em síntese, para Minois, os gregos tinham uma visão contraditória do riso; os romanos riam muito e eram muito menos sérios do que se pinta a ponto de suas tragédias serem posteriores às sátiras; para o primeiro cristianismo o riso era satânico, só os gnósticos o aceitavam na criação e em Cristo; no final da Idade Média, e diferente do que diz Bakhtin, o riso é uma arma opressora da coletividade, ele exclui e marginaliza; o Renascimento é a libertação do riso; do séc. XVI até o final do XVIII, o riso é atacado pela maioria dos pensadores desde Pe. Vieira até Pascal e é absolutamente marginalizado; no século XIX o riso volta a ser agressor, o que persiste até o século XX afora governos totalitários que passaram por quase todos os lugares e controlaram o riso; acresça-se ao século XX, por fim, um riso nervoso e absurdo, um riso que ri tanto até anunciar a morte do próprio riso e então torna-se um nonsense. O riso é o humor que adquire formas variadas.

A questão do caráter popular do riso medieval, visto em Bakhtin, é contestado aqui pelo outro viés que ele assume no período medieval. A citação abaixo, apesar de longa, apresenta uma síntese de Umberto Eco sobre a questão:

A Idade Média era uma época cheia de contradições, em que as manifestações públicas de piedade e rigidez se faziam acompanhar de generosas concessões ao pecado, conforme se vê em grande parte da novelística da época, e existiam locais onde a prostituição era tolerada [...]. Não devemos esquecer o erotismo da poesia cortês ou os cantos dos goliardos, que eram clérigos também. Além disso, o senso do pudor era bem diferente daquele moderno, sobretudo entre os pobres, onde as famílias viviam promiscuamente, dormindo todos no mesmo aposento ou até no mesmo leito, e as necessidades corporais eram satisfeitas nos campos, sem grandes preocupações de privacidade.

A obscenidade (e a magnificação do disforme e do grotesco) aparece nas sátiras contra o aldeão e nas festas carnavalescas em relação à vida dos humildes. Trata-se de dois fenômenos bastante diversos. Existem textos, [...], nos quais o aldeão é apresentado como um tolo, sempre pronto a ludibriar seu senhor, sujo, fedorento, [..] e, às vezes, como um Príapo, desfigurado por repulsivos atributos genitais. Isso não era, contudo, um exemplo da comicidade popular; era antes a expressão do desprezo e da desconfiança do mundo feudal e do mundo eclesiástico em relação aos camponeses. As deformidades do aldeão eram apreciadas com sadismo e ria-se deles e não com eles.82

É incontestável que a opinião de Eco é absolutamente divergente da de Bakhtin, tal qual ocorre, em menor grau, com Minois. Apesar de termos duas leituras contraditórias do realismo grotesco medieval, tanto uma quanto outra será levada em conta nas análises a seguir. O aspecto marginal da ambivalência bakhtiniana faz com

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que o riso se torne bastante diferente do padrão de humor apenas rebaixador aceito contemporaneamente, assim sendo aceitamos a leitura inicial de Eco sobre a contraditoriedade medieval e a adotamos como metodologia para análise do grotesco e do riso nos textos a seguir. Talvez tenhamos aqui uma “embreagem paratópica”83

, de Dominique Maingueneau.

Frequentemente, o humor aparece muito próximo ao riso e ao grotesco. Pierre Daninos dá alta maleabilidade para o uso da palavra “humor”, que é, na verdade, indefinível. Então, “o humor surge quando o homem se dá conta de que é estranho perante si mesmo; ou seja, o humor nasceu com o primeiro homem, o primeiro animal que se destacou da animalidade, que tomou distância em relação a si próprio e achou que era derrisório e incompreensível”84

. Assim, o humor cinde o sujeito que faz uma autoderrisão ou o faz estranho em relação ao que analisa. De outra maneira, se o humor é dotado de ambivalência, há como uma espécie de hibridização do sujeito – o estranho e irreconhecível se torna parte do eu.

Outro estudioso que identifica o hibridismo nas obras satíricas é Enylton de Sá Rego. Em seu estudo sobre a presença da Sátira Menipeia em Machado de Assis, o autor identifica como principais características do Diálogo dos Mortos, obra de Luciano de Samósata: mescla de gêneros; paródia; liberdade de imaginação; caráter satírico não- moralizante; e, ponto de vista distanciado e irônico do observador. Nunca se sabe se o narrador da obra machadiana está dizendo “a”, “b” ou “a e b”. Nesse aspecto, há uma profunda semelhança entre o humor e o grotesco. A afinidade dos termos não se limita a esse aspecto, pois Catarina de Castro aponta que “o humor implica uma atitude do Homem perante a vida e si próprio enquanto ser humano, pressupondo a consciência do seu carácter ridículo mas também sublime”85

.

A tensão entre ridículo e sublime, dentro do contexto bakhtiniano, não pertence ao grotesco, afinal este não quer perpetrar o crime de adentrar no cânone. Entretanto, uma visada contemporânea permite que tanto uma coisa quanto outra sejam do universo grotesco de forma inevitável, justamente pelo fato de este ser um gênero discursivo híbrido, tal qual o universo, em constante expansão.

83 Embreagem paratópica: “[...] estamos diante de elementos de ordens variadas que participam ao mesmo tempo do mundo representado pela obra e da situação paratópica através da qual se define o autor

que constrói esse mundo.” In: MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária. Trad. Marina

Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 174. 84 MINOIS, Georges. Op. Cit. p. 79.

85 In: http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=257&Itemid=2 . Acesso em: 30/05/2011.

A palavra “sátira”, conforme Houaiss, origina-se na expressão latina lanx

satura, que em tradução literal significa “prato cheio” de frutos. Sabe-se que na

Antiguidade Clássica havia dois tipos de sátira: a horaciana e a juvenaliana – uma mais amena a outra mais áspera. De uma maneira ou de outra, conforme conferimos, há uma ofensiva a outrem. Sob uma ótica, isso ocorre “para evitar de ressentir-se com o meio ambiente, ou que, malferida, se volta implacavelmente contra o agressor”86.

Dentro da perspectiva bakhtiniana do grotesco, este não pode ser vinculado à sátira, afinal apenas um de seus aspectos ambivalentes é considerado – o negativo – seja a sátira moralizante ou não. A ideia de regeneração do que está morto (ou daquilo que é criticado) é desprezada pela sátira. O crítico russo prova que essa ambivalência era muito bem compreendida na Idade Média e no Renascimento, mas indica que posteriormente ela não é percebida.

A sátira, então, “ataca de forma incisiva ou ridiculariza os vícios e imperfeições”, como destaca Houaiss, e a palavra que orbita seu significado com maior atração é zombaria. Umberto Eco, em seu História da Feiúra, determina a sátira como um cômico de perda ou rebaixamento:

Falamos aqui de formas de arte que exprimem a harmonia perdida [...], a harmonia possuída [...] ou ainda a harmonia perdida e malograda, e aí temos o cômico como perda e rebaixamento ou ainda como mecanização dos comportamentos normais. Desse modo, pode-se rir daquela pessoa empertigada e presunçosa que escorrega numa casca de banana, dos movimentos rígidos de uma marionete, mas pode-se rir também com as várias formas de frustração das expectativas, com a animalização dos traços humanos, com a inabilidade de um trapalhão e com muitos jogos de palavra.87

O autor destaca ainda que essas formas de comicidade se aproximam da deformação. É exatamente nessa deformação, nessa perda, nesse rebaixamento que encontramos a presença do grotesco. Assim sendo, o grotesco permeia a sátira, o que é óbvio, e torna-se um elemento construtivo da zombaria; na verdade, está em seu cerne. Mas e o lado positivo que Bakhtin reivindica para o grotesco está presente na sátira ou o russo estava certo sobre a inexistência desse aspecto regenerador na literatura a partir do século XIX? Em nossa perspectiva, não pode haver essa divisão maniqueísta entre o positivo e o negativo, o ético e o antiético, o centro e a margem, o certo e o errado, pois

86 MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 15ª Ed. São Paulo: Cultrix, 2004. p. 471. 87

em um fenômeno tão homogêneo tal é o grotesco, o positivo permeia o negativo e vice- versa mesmo na modernidade e na pós-modernidade.

Ainda que a sátira tenha apenas o aspecto rebaixador, portanto sem a ambivalência tão característica do realismo grotesco, ele não pode ser desconsiderado de tal universo. Além disso, o próprio Bakhtin reconhece a perda da ambivalência a partir do século XVII, o que descaracteriza o realismo grotesco, mas não o grotesco. Então a sátira é autônoma ao grotesco? Não. A questão é que em alguns momentos a sátira grotesca é dotada de ambivalência; em outros, não. A sátira pertence ao grotesco até mesmo em sua veia pessimista, podendo aí se aproximar da perspectiva grotesca de W. Kayser.

Ainda assim, o grotesco e a sátira são gêneros discursivos que se mesclam formando um gênero híbrido com a tarefa de justapor elementos irreconciliáveis. A peculiaridade de cada um já não pode mais ser identificada. Para ilustrar, pensamos na pintura: quando vemos a cor verde, não pensamos na mescla entre o azul e o amarelo para sua formação. A única diferença entre a sátira e o grotesco é que a segunda, nos moldes bakhtinianos, possui a ambivalência regeneradora. O aspecto negativo do grotesco, a sátira explora exaustivamente. No entanto, a ambivalência está implícita em alguns tipos de sátira, como indica o russo. Assim sendo, a sátira é parte da constituição do grotesco. Outro termo muito recorrente nas discussões acerca do grotesco é o cômico.

O Cômico pertence ao mesmo campo semântico do riso, da sátira e do grotesco. Segundo Ivo Bender, o cômico é sempre coletivo e ruidoso o que em nossa opinião se coaduna com o grotesco. Já Vilma Arêas, falando mais especificamente do teatro, prefere não teorizar a comédia, mas demonstrar como esta se estabelece na relação entre o sujeito da comicidade (autor), o objeto cômico (material utilizado para provocar comicidade) e o espectador (quem ri). A lógica do teatro é outra que não a estudada aqui, mas vale lembrar a semelhança estabelecida com o literário e, novamente, há uma presença da paratopia. No texto poético também se valoriza a recepção que a obra tem. Por mais que se diga que a obra é fechada nela mesma ou o autor não se preocupa com respostas alheias, parece-nos que essa reação de desdém não combina com o caráter humano intrínseco à arte e à literatura, campos discursivos que se equivalem e se chocam com outros. Tal qual no teatro, a relação entre o autor, o leitor e a obra cria um universo outro, às avessas ou não, um mundo próprio, grotesco. É

assim que V. Meyerhold constrói seu teatro grotesco e Ramón del Valle-Inclán concebe o esperpento.

O teatrólogo russo desenvolve uma teoria do grotesco para o teatro, tal qual o fenômeno é: inacabado. O tragicômico é um espelho deformante que enceta para um novo gênero cênico:

A montagem de O Inspetor Geral, de Meyerhold, com suas linhas estéticas deformantes e deformadas, suas proporções aumentadas e suas imagens exageradas e de traços distorcidos aponta certamente para uma espécie de

“bufonaria trágica” que o próprio Meyerhold já tentava definir, em seus

escritos teóricos de 1912, onde trata a questão do grotesco cênico.88

Ainda em Arlete Cavaliere, a harmonia plástica que gera uma espécie de encantamento no telespectador, é o resultado da mescla entre a reprodução do real e a instauração de um mundo encantatório, sendo o último predominante. Com isso, o grotesco ligado ao riso parece ser esquecido. A explicação da professora, no entanto, atina para uma outra possibilidade de leitura do grotesco, que pode se plasmar em poesia também:

Mas se o grotesco nasce da face cômica das farsas populares representadas nas feiras pelos atores ambulantes de todos os tempos, ele corresponde também à outra face do riso, o silêncio que oculta a tragédia eterna da humanidade e que esconde seu sofrimento por detrás das gargalhadas para, talvez, contrabalançar de forma audaciosa a decadência trágica de todos os tempos. Meyerhold encontra no ritmo contemporâneo, na alucinação das novas e grandes descobertas e na velocidade febril de todas as mutações o terreno fértil para o teatro grotesco onde o cômico e o trágico se revezam, alternam-se diabolicamente, para fazer a cena resvalar, de um minuto para outro, da mais terna e sentimental cantiga para a mais cruel e violenta sátira.89

O cômico, e o riso inerente, a ele tem uma antinomia em teatro: a tragédia. Sob a égide discursiva, esses elementos se misturam quando atingem uma reflexão metafísica, ou quando ele se personifica no teatro. A gravidade da tragédia e a burla cômica, quando unidas, formam o grotesco. Portanto, é certo que o grotesco existe na contradição entre o cômico e o sério. O mesmo ocorre na teoria esperpêntica de Ramón de Valle-Inclán. Ocorre que Bakhtin nega qualquer influência metafísica no realismo grotesco tratando-o como um fenômeno popular, no entanto o grotesco não pode ser um só – ele é contraditório e paradoxal.

88 CAVALIERE, Arlete Orlando. O Inspetor Geral de Gogol-Meyerhold: um espetáculo síntese. São Paulo: USP. Tese de Doutoramento. 1991. p. 191.

89

A linguagem esperpêntica é similar à grotesca e cômica: uso de neologismos e estrangeirismos, linguagem coloquial, perífrases, redundâncias, paródias e confronto entre diferentes níveis de linguagem. O próprio teatrólogo, antes de teorizar o esperpento, chamava-o de ridículo, feio e até grotesco. Este último, ligado à tradição espanhola desde Quevedo, é construído através de uma deformação da realidade. Sem o princípio ambivalente, a teoria esperpêntica faz uma crítica a toda a degeneração moral da sociedade espanhola desde políticos até artistas omissos no início do século XX. O autor faz uma peça esperpêntica, Luces de Bohemia.

Se o grotesco é muito próximo do cômico e do dito espirituoso, Concetta D’Angelli demonstra como outro estudioso separa o cômico do dito espirituoso (Witz) retomando Freud: “A distinção entre comicidade e Witz é interpretada por Francesco Orlando [...] em uma relação diferente com o inconsciente, já que a comicidade tem que ver com a repressão, enquanto o disfarce permitido pelo Witz libera o reprimido.”90

Consonante a essa opinião, temos a de Vladimir Propp. Para ele o cômico não se diferencia do ridículo. Além disso, o autor de Comicidade e riso aproveita a ideia aristotélica de que o disforme é cômico e aprofunda o sentido com o defeito, a deformação física, a reificação do homem com o apontamento de uma aberração, o automatismo pura e simplesmente, o exagero (dividido em três formas, a saber: caricatura, hipérbole e grotesco), a alogia (absurdo e nonsense) e a paródia. Os pontos de vista de Propp são discutíveis em vários aspectos, mas não adentramos a essa questão. O que interessa aqui é que tudo o que o autor refere como pertencente ao cômico se aproxima muito do grotesco, mais especificamente do de W. Kayser. Propp também define o grotesco:

O grotesco é a forma da comicidade preferida pela arte popular desde a Antiguidade. As máscaras da comédia grega antiga são grotescas. O descomedimento violento na comédia contrapõe-se ao comedimento e ao majestoso na tragédia.

Porém, o exagero não é a característica única do grotesco. O grotesco nos faz sair dos limites de um mundo realmente possível. [...]

O grotesco é cômico quando, como tudo o que é cômico, encobre o princípio espiritual e revela os defeitos. Ele se torna terrível quando o princípio espiritual se anula no homem.91

90 D’ANGELLI, Concetta e PADUANO, Guido. O cômico. Trad. de Caetano W. Galindo. Curitiba:Editora UFPR, 2007. p. 274.

91 PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. Trad. de Aurora Bernardini e Homero F. de Andrade. São Paulo: Ática, 1992. p. 92. (grifo nosso)

Então, tudo o que é cômico, tal qual o grotesco, encobre o princípio espiritual e revela os defeitos. Tudo que é cômico, é grotesco; mas nem todo grotesco é cômico. Destacamos que Propp não considera o grotesco como uma manifestação da vida. Para ele, o grotesco só é possível na arte, opinião tipicamente estruturalista completamente antagônica à nossa: “Os horrores da guerra, fotografados para fins documentais, não têm e não podem ter caráter de grotesco”92

. Quando se fala de uma guerra, normalmente remete-se ao caráter assustador e abismal que W. Kayser teorizou no grotesco e novamente o princípio bakhtiniano de um mundo dual deve ser deixado de lado para que se compreenda o grotesco.

Conforme Bakhtin avista, o grotesco perde sua duplicidade, mas não necessariamente é o que ocorre - mesmo nos dias de hoje. A poesia, por exemplo, pode satirizar um defeito ou um vício e estes serão compreendidos de forma bem diversa por um leitor que não exige um entendimento único aos poemas que escolheu ler. Mesmo a explosão da bomba de Hiroshima foi transformada em rosa por Carlos Drummond de Andrade, o que lembra um artifício do grotesco que é a inversão topográfica – é o grotesco que se transforma em lirismo puro, é a inversão da inversão.

Apesar de Bakhtin ser magistral em seu estudo sobre a recepção do grotesco na Idade Média e no Renascimento, o autor esqueceu-se de levar em conta que paralelamente à ironia contemporânea corre também um riso universal e ambivalente que não sulca apenas a poesia, mas também a vida cotidiana.

A ironia é reconhecidamente uma das mais importantes ferramentas de construção do grotesco moderno, e isso será retomado logo a seguir, mas antes dela temos outro poderoso artifício grotesco que é a paródia. Segundo Affonso Romano de Sant´Anna, a paródia é parricida. O autor explica que o texto parodiado é destruído para ser reconstruído com sentido completamente diferente. É a ode versus a para-ode.

Considerando a proximidade entre paródia e estilização, Sant´Anna exemplifica com as reescritas feitas da Canção do Exílio:

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Original: Estilização: Paródia:

Minha terra tem palmeiras Onde canta o sabiá, As aves que aqui gorjeiam Não gorjeiam como lá.

(Gonçalves Dias)

Esta saudade que fere Mais do que as outras quiçá, Sem exílio nem palmeira Onde cante um sabiá. (Cassiano Ricardo)

Minha terra tem palmares onde gorjeia o mar os passarinhos daqui não cantam como os de lá. (Oswald de Andrade)93

A estilização respeita o original, enquanto a paródia insere um elemento de