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Álvaro de Campos !!!!

3.2. CORPO EXAGERADO, LASCIVO, QUIMÉRICO E O NÃO-CORPO

3.2.2. Satíricos Barrocos

O corpo barroco é uma complexa construção coletiva. Destarte, uma visada pela obra de Gregório de Matos se faz necessária para mostrar alguns aspectos salutares. No caso dos autores portugueses, há uma mudança: D. Tomás de Noronha, amplamente estudado na parte concernente à linguagem, não será estudado aqui, apesar de o corpo grotesco também abundar na obra do Marcial de Alenquer. Com isso, optamos por demonstrar como o corpo grotesco se manifesta em outros autores satíricos portugueses, como Jerônimo Baía e Barbosa Barcelar, entre outros.

A opção em ver como o corpo grotesco se constrói na poesia de Gregório de Matos também tem a ver com a apurada análise que João A. Hansen faz deste aspecto

no poeta baiano, servindo como norte ao trabalho. Se a sátira é um discurso performativo, o corpo é parte fundamental nesse processo. Comparando os textos satíricos com as Atas da Câmara e com as Cartas do Senado, contemporâneas à escrita dos poemas de Gregório de Matos, Hansen chega à seguinte conclusão:

A Câmara fixa os eventos enquanto os move no discurso; a sátira os teatraliza segundo várias perspectivas. Em ambos os gêneros, contudo, epistolar e satírico, sujeitos discursivos se auto-investem como autoridades na hierarquia, que figuram como natural e, portanto, convencional. Na posição do privilégio donde agem para levar a ação proposta a um termo efetivo ou para realizá-la no verossímil, doam um sentido corretivo à Cidade, lugar de intervenção. 199

Os discursos se cruzam e fazem parte do “corpo místico do Estado”. Essa visão escolástica-aristotélica do corpo como local de integração e multiplicidade pensa o corpo individual de uma maneira bem parecida:

Partes de um todo, os membros do corpo humano são instrumentos para um princípio superior, a alma. O tema é comum na poesia dos séculos XV, XVI e XVII [...]. Unidade do corpo, pluralidade dos membros, diversidade das funções diferentes partes são as três articulações com que Santo Tomás propõe o corpo, de modo que a integração de suas partes num todo harmônico é ordem: o pé é instrumento do olho, pois o leva de lugar a lugar; o olho, instrumento do pé, porque o guia em sua marcha.200

Nessa miscelânea de parte corporais, a Cidade, representação empírica do Estado, vê os mais diversos tipos circularem por ela. O discurso satírico, também parte deste “corpo místico”, utiliza-se de recursos linguísticos grotescos para demonstrar algumas aberrações corpóreas na mundividência daquela sociedade. Seja por preconceito, ou por desavença política com outrem, o caráter ambivalente do realismo grotesco em alguns momentos se perde, ficando apenas o elemento satírico dotado de negatividade:

Em outros termos, a sátira é reguladora: circulando como o sangue por todo o corpo da República, prescreve as posições e as trocas hierárquicas adequadas para sua boa saúde, criticando a falta e o excesso. Os efeitos grotescos da vituperação subentendem, assim, a racionalidade das leis positivas da Cidade.201

199 HANSEN, João Adolfo. Op. Cit. p. 109. 200 Idem, Ibidem.p. 267.

201

No entanto, esta pesquisa foca apenas as concepções ligadas ao universo grotesco ambivalente e ao caráter abismal do grotesco. O segundo caso será mais bem detalhado na parte relativa ao estranho, vista a seguir. Sobre o grotesco ligado à cultura popular e ao mundo carnavalizado, Gregório de Matos constrói corpos grotescos constantemente. O ataque a um adversário muitas vezes demonstra um caráter preconceituoso, mas “a sátira opera com os topoi medievais da avareza, glutoneria, luxúria e simonia dos frades e padres.”202

Segundo Hansen, a sátira contra eclesiásticos é de interesse dos senhores de engenho, pois, de maneira genérica, ambas as classes disputavam um espaço de poder. No entanto, é a expressão estética grotesca de per si que buscamos aqui. Em Ao vigario

da Madre de Deos Manuel Rodrigues se queyxa o poeta de trez clerigos que lhe foram a casa pela festa do natal, onde tambem elle estava e com galantaria o persuade, a que sacuda os hospedes fora de casa pelo gasto, que faziam, um padre deve expulsar outros

três da ceia de Natal, pois “[...] é mais danosa empresa/ pôr três bocas numa mesa,/ que trezentas numa espada:/ [...]”. A partir daí, não se compreende muito bem se a “casa que alimenta” é do padre ou do eu lírico.

A garantia do alimento para ambos ocorre com uma paródia do episódio bíblico dos Reis Magos, que ocorre na terceira décima do poema: “Se estamos na Epifania,/ e os três coroas são Magos,/ hão de fazer mil estragos/ no caju, na valancia:/ mágica é feitiçaria,/ e a terra é tão pouco esperta,/ e a gentinha tão incerta,/ que os três a vosso pesar/ não vos hão de oferta dar,/ e hão de mamar-vos a oferta.” Além disso, a avareza se dá por condenar no alheio o que lhe é característico, a glutonaria. A derrisão do outro é também derrisão do eu, o corpo individual é parte do coletivo.

A última décima se inicia com um típico recurso grotesco que proporciona o riso: a inversão de sentido através do trocadilho sonoro e a sonoridade hilária da rima constroem um calemburgo de sentido jocoso: “O incenso, o ouro, a mirra/ que eles vos hão de deixar,/ é, que vos hão de mirrar,/ se vos não defende um irra:” Em um mesmo poema, Gregório de Matos alia dois típicos defeitos que, no mundo às avessas do riso, tornam-se qualidades de qualquer ente, afinal, quem não deseja ter muito dinheiro para bem comer e beber? A diferença é que no universo carnavalizado não haveria exclusão de nenhum partícipe no banquete.

202

Em poemas dirigidos a um seu desafeto, o então Governador-Geral, Antônio Luís da Câmara Coutinho, os elementos grotescos são pungentes. Dada a extensão do poema, citaremos apenas os trechos que se relacionam com a corporalidade grotesca: “Vá de retrato/ por consoantes,/ que e eu sou Timantes/ de um nariz de tucano/ pés de Pato.// Pelo cabelo/ começo a obra,/ que o tempo sobra/ para pintar a giba/ do camelo.// Causa-me engulho/ o pêlo untado,/ que de molhado/ parece, que sai sempre/ de mergulho.// [...] //Nariz de embono/ com tal sacada,/ que entra na escada/ duas horas primeiro/ que seu dono.// Nariz, que fala/ longe do rosto,/ pois na Sé posto/ na Praça manda pôr/ a guarda em ala.// [...]”

É notável nesse caso que a figura pública do governador, representante do mundo real e sério, fosse atacada. Seu corpo é desconstruído através de comparações esdrúxulas e o rebaixamento físico o reconstrói nesse mundo às avessas em que as deformações físicas são metaforizadas com animália e exageradas na extensão. A dessacralização da figura pública ocorre com o rebaixamento topográfico de seu corpo. O nariz, maior objeto de análise em toda a extensão do poema, é inicialmente comparado com um tucano e depois com uma viga de madeira, chega a ser a personificação do homem. A hiperbolização de seu tamanho remonta-lhe outras características, todas elas risíveis.

Com a expressão “pintar a giba do camelo”, talvez se refira a uma proeminência capilar, ou mesmo à calvície. Destaque-se que além do trecho indicar tal possibilidade, “camelo” funciona como um trocadilho de “cabelo”. Na estrofe “Causa- me engulho/ o pêlo untado,/ que de molhado/ parece, que sai sempre/ de mergulho” a rima /ulho/ combinada com o particípio /ado/ forma uma sonoridade burlesca que, coadunada ao universo grotesco, faz com que o substantivo “engulho” torne os cabelos do governador não apenas nauseabundos, mas também risíveis.

Em outro trecho do poema, é a questão da sexualidade do governador que é atacada: “Vamos voltando/ para a dianteira,/ que na traseira/ o cu vejo açoitado/ por nefando.” Tal qual ocorre no escárnio medieval, o corpo travestido é um dos temas favoritos para o riso desbragado da praça pública. Se o intuito era satirizar e dar um caráter negativo ao governador, a maledicência grotesca aliada ao travestimento do corpo alheio cria uma recepção do texto que permite compreendê-lo mais como ambivalente do que crítico. A figura pública é dessacralizada e imersa nos “infernos corporais”, para adotarmos a expressão de Bakhtin, e reconfigura um corpo outro, completamente inserido no universo do carnavalizado do mundo às avessas.

A mesma temática aparece em outros poemas dirigidos ao governador, mas o “pecado nefando” se manifesta em duas mulheres. Em Pança farta e pé dormente, seleção de poemas relacionados a festas populares da Bahia daquela época, o poema

Descreve com admirável propriedade os effeytos, que causou o vinho no banquete, que se deo na mesma festa entre as juizas, e mordomas onde se embebedaram, revela a

comemoração feita por mulatas no dia de Nossa Senhora do Amparo.

A primeira estrofe revela um verdadeiro banquete pantagruélico e uma atmosfera ébria. Na segunda estrofe, vê-se o resultado: “Macotinha a foliona/ bailou robolando o cu/ duas horas com Jelu/ mulata também bailona:/ senão quando outra putona/ tomou posse do terreiro,/ e porque ao seu pandeiro/ não quis Macota sair,/ outra saiu a renhir,/ cujo nome é Domingueiro.” Os nomes, na verdade epítetos e/ ou apelidos, são paródicos e pertencem ao discurso da praça pública. Além disso, a dança de Macotinha é descrita a partir do cu, característico orifício de entrada do baixo material corporal. Além disso, a dança erótico-homossexual é confundida com um combate.

No universo carnavalesco, “dançar” e “lutar” fazem parte de uma junção do corpo individual com o universal, então o aspecto negativo que ambos carregam por estarem em uma ambiência marginalizada, de prostitutas, é também positivo. Na estrofe seguinte, com o alvoroço da briga, Marotinha tumultua o ambiente, mas Jelu, sua parceira de dança, acalma-a com unhadas. A Puta matrona, sem nome, ataca Jelu e a briga que deveria acabar é retomada, mas toda a confusão é uma paródia das danças de salão feita em palavras. O próprio poema é nas estrofes subsequentes uma dança-luta, controlada por uma puta veterana.

Da sétima até a nona estrofe, descreve-se o exagero da bebelança e da comilança até que o mundo carnavalizado se torna repleto. Com isso, a décima estrofe é o clímax do poema narrativo: “Maribonda, minha ingrata/ tão pesada ali se viu,/ que desmaiada caiu/ sobre Luzia Sapata:/ viu-se uma, e outra Mulata/ em forma de Sodomia,/ e como na casa havia/ tal grita, e tal contusão/ não se advertiu por então/ o ferrão, que lhe metia.” A bebedeira fez com que Maribonda “caísse” sobre Luzia Sapata. Além do nome paródico sugestivo de homossexualdiade que ambas possuem, “Luzia Sapata” é óbvio e “Maribonda” seria uma espécie de apelido-metáfora em que, como inseto, a mulher possui um “ferrão”. O “cair”, então, constitui um equívoco que sugere uma relação homossexual entre ambas no meio do banquete.

Como numa orgia báquica, ninguém sabe o que se enfia nem o que se recebe em seus orifícios sexuais. Estes, limiares de entrada na relação contígua entre o corpo

interior e o corpo exterior, demonstram que a conjunção carnal universal está consumada. Por este motivo, o comer e o beber, eterno retorno da mesma universalidade grotesca, voltam à tona na figura de “Tereza a da cutilada”. Depois de todos os aspectos do ritual estarem concretizados, a voz poemática aponta uma elevação um tanto irônica aos céus: “[...] votaram com todo anelo/ emenda à Virgem do Amparo,/ que no seu dia preclaro/ nunca mais bodas al cielo.”

Acima, foi dito brevemente que o poema é em prosa. Assim, ele é um gênero discursivo híbrido:

Mista, como mescla de alto e baixo, grave e livre, trágico e cômico, sério e burlesco. É, por isso, composta de duas vozes básicas: uma, alta e grave, icástica; a outra, baixa e mista, fantástica. Basicamente inclusiva –

“dependente” ou “polifônica” –, a sátira mistura tópicas variadas da invenção

retórico-poética, amplificando e deformando procedimentos e estilos da elocução. Ressalta, na sua voz fantástica, o hibridismo, na medida mesma em que é construída de citações eruditas, de sentenças irônicas, de descrições hiperbólicas, de agudezas baixas, de vilezas sórdidas, de paródias dos gêneros elevados etc.203

No entanto, não podemos esquecer, nesta miscelânea de discursos, a voz discursiva possibilita através do rebaixamento um vislumbre do elevado, ainda que transformado em algo completamente novo. Para encerrar, alguns elementos da corporalidade grotesca associadas à sátira, à poesia de agudeza e ao jocossério barrocos, que se fazem presentes na poesia de Gregório de Matos são: um poema paródico enquanto corpo escrito é uma deformação do corpo lírico “plagiado”; “a representação fantástica e deformante do estilo baixo, pois seu trabalho é a adulteração das “naturezas” de casos retóricos”204

; uma mimese fantástica, onde qualquer caráter vicioso é analisado, seja numa ótica negativa, ou ambivalente, ela possibilita um olhar sobre o corpo grotesco; uma estranheza na associação de palavras, trazendo à tona o hibridismo; e, entre tantas outras características, formas representativas de um corpo deformado e monstruoso, geralmente estereotipado e compreensível na cultura popular.

Assim, o corpo grotesco se pauta no uso satírico da ferramenta retórica designada como evidentia:

[...] descrição minuciosa e viva de um objeto pela enumeração de suas partes sensíveis, reais ou inventadas pela fantasia poética. Geralmente, a função do evidentia é pôr em relevo o caráter grotesco de tipos caricaturais: à

203 HANSEN, João Adolfo. Op. Cit. p. 292. 204

deformação física da descrição hiperbólica correspondem o ridículo e a deformidade moral, postulados do vício.205

O corpo grotesco, então, se consuma enquanto fenômeno na poesia de Gregório de Matos. Veremos como ele se constitui na poesia satírica produzida em Portugal. O primeiro poema que vemos aqui é de um anônimo, antologizado por Natália Correia: “Meu Monarca e Meu Senhor,/ que já nada sois aqui,/ maravilha-me o que vi/ nos desatinos do Amor;/ vós, que mostrastes valor/ a montear o veado,/ acabastes monteado/ por vos falhar a espingarda/ na caça dessa abetarda/ que tínheis a vosso lado.”206

Antes do poema, temos uma nota explicativa que não sabemos se de Natália Correia ou do manuscrito: “O poeta refere-se à infelicidade conjugal de D. Afonso VI.” A décima possui elementos grotescos, mas o ocorrido é ainda mais interessante nessa ótica. É sabido que D. Afonso VI, que carrega na história a alcunha de “O Vitorioso”, por vencer as batalhas contra Espanha pela Restauração da Independência, possuía uma doença que, de algum modo, afetava seus movimentos no lado direito do corpo. Esta atrapalhou também sua vida política, social e sexual.

“O vitorioso” não possuía mérito algum em suas vitórias, pois à época era manipulado pelo Conde de Castelo Melhor, quem realmente tomava as decisões políticas importantes do país, e, antes disso, pela mãe, D. Luísa de Gusmão. O que realmente nos interessa, no entanto, é a vida matrimonial do rei, alvo do poema acima. Pelos autos das audiências públicas instauradas para averiguar a capacidade sexual do rei, a rainha, D. Maria Francisca de Saboia, revelou a seu confessor dois dias após o contato com o rei que Portugal não conseguiria um herdeiro dele.

As audiências públicas para averiguar a virilidade do rei parecem-nos mais grotescas do que o poema em si. Apesar do som aliterado /m/ na primeira parte do poema, o que o deixaria com uma melodia mais lírica, o som redondilho parece ser uma escolha mais feliz para dar ritmo de diálogo entre o eu poemático e D. Afonso VI. A despeito de ser o rei seu interlocutor, a voz poemática não tem o menor pudor em rebaixá-lo e desmerecê-lo no segundo verso. A destituição paródica do monarca continua nos versos seguintes, pois um homem comum conhece mais sobre os “desatinos do Amor” do que seu monarca.

205 HANSEN, João Adolfo. Op. Cit. p. 339. 206