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3. RECORTES DO GROTESCO NA HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA

3.1. O DISCURSO ANTICANÔNICO

3.1.2. Satíricos barrocos

A maior dificuldade na execução desta pesquisa foi encontrar os poemas satíricos do perído denominado genericamente como Barroco. Todos os notáveis estudos feitos sobre o período que abrange os séculos XVII e parte do XVIII ressaltam a dificuldade de encontrar os textos, em maioria ainda manuscritos em biblitecas públicas e particulares de Portugal. Dado o fato de que a pesquisa abarca um enorme escopo de autores para possibilitar um panorama do grotesco na literatura portuguesa ao longo dos

135 BAKHTIN, Mikhail. Op. Cit. p. 169. 136

séculos como algo orgânico e vivo, contentamo-nos em usar algumas coletâneas que possuem poemas satíricos barrocos e alguns livros que fortuitamente foram adquiridos.

O estudo de Maria do Socorro Fernandes de Carvalho direciona uma análise para a poesia de agudeza em Portugal. Partindo de Aristóteles e Baltazar Gracián, o caminho da agudeza não possui uma definição muito objetiva e permeia tanto o discurso poético elevado quanto o baixo, conforme vemos no prefácio da Profa. Adma Muhana:

Identificar na agudeza o denominador comum entre tantas poesias satíricas e doutrinárias, vulgares e místicas, baixas e elevadas, de vitupérios e louvores, em suma, foi resultado de uma longa convivência com textos impressos e manuscritos que vinculam a poesia seiscentista a estruturas retóricas de pensamento, [...] 137

Apesar de a poesia lírica possuir diversos elementos grotescos, como podemos ver na famosa metáfora barroca que intitula livros e estudos - “ladrão cristalino” -, ela será vista apenas na parte ligada ao estranho. Os textos satíricos, construídos com a mesma intenção mimética do discurso engenhoso barroco, são denominados “contrafações jocosas”, vistos desde a Antiguidade Clássica como gêneros menores e/ou elementos pertencentes à retórica. Se Cícero e Quintiliano são os mais emulados, a sátira adota autores como Luciano de Samósata, Horácio, Catulo, Ovídio, Juvenal e Marcial, entre outros, como exemplos a serem copiados.

No entanto, é sabido que a Fênix Renascida, coletânea de poemas de diversos gêneros, censurava composições por vários motivos. A sátira atroz e o grotesco, então, tiveram um espaço de publicação muito reduzido, apesar de uma ampla circulação. Ao sopesar sobre a presença de Camões no Barroco, Maria dos Prazeres Gomes indica elementos fulcrais na construção do grotesco, como a paródia e a paráfrase. No Barroco, basilar também é o jocoso, a valorização do lúdico, a polifonia, o estranhamento, o hiperbolismo e a utilização de uma linguagem ligada à praça pública.

O pouco espaço que a poesia satírica teve na Fénix não necessariamente está vinculado a algum tipo de controle. A perfeita noção do valor que a poesia satírica possui no contexto do período seiscentista nos é dada por João Adolfo Hansen: “Na sátira, esta (a penitência) vem sempre acoplada à reciclagem da catarse aristotélica como dirigismo ‘pedagógico’ próprio das práticas poéticas do século XVII. Por isso,

137 CARVALHO, Maria do Socorro Fernandes de. Poesia de agudeza em Portugal – estudo retórico da poesia lírica e satírica escrita em Portugal no século XVII. São Paulo: Humanitas; Edusp; Fapesp, 2007. p. 10.

como a peste e como a fome, a sátira é guerra caritativa: fere para curar.”138

Então, o conteúdo satírico possui uma função social e não é completamente marginalizado. Além disso, diz-nos o mesmo estudioso, a sátira possui um caráter sério:

Já se viu com Tesauro, que as deformações satíricas não são meramente ridículas, no sentido aristotélico da deformidade que faz rir sem dor, pois trabalham para um ponto de vista sério, movido pelo interesse ético e político. A deformação é cômica porque viciosa, apaixonada, embora não necessariamente ridícula, uma vez que nem todo vício é matéria ridícula. 139

Não diferindo de outros momentos estudados, o seiscentismo possui as especificidades históricas, englobadas também por aspectos sócio-culturais, que tornam o relativismo necessário para análise dos textos. A importância de Gregório de Matos na literatura brasileira que, à época, ainda era parte da cultura portuguesa pelo fato de o Brasil ser colônia, fez-nos inseri-lo no estudo. No que tange à linguagem, Gregório de Matos manifesta múltiplos aspectos grotescos. Por exemplo, Hansen destaca o uso de provérbios e frases feitas.

No entanto, o uso do baixo calão e de expressões vulgares em Gregório de Matos possui a ambivalência da galhofa da cultura popular e é, ao mesmo tempo, uma espécie de censor dos maus costumes e detentor de um discurso moralista: “Neste mundo é mais rico, o que mais rapa:/ Quem mais limpo se faz, tem mais carepa:/ Com sua língua ao nobre o vil decepa:/ O Velhaco maior sempre tem capa.// Mostra o patife da nobreza o mapa:/ Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;/ Quem menos falar pode, mais increpa:/ Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.”140

Os dois quartetos do poema inserido em A musa praguejadora estão carregados de expressões vulgares – rapa, carepa, capa, trepa, increpa –. Todas elas aparecem ao final dos versos. Com isso, ganham destaque visual e sonoro. A aliteração do /p/ dá um tom de vulgaridade ao final dos versos assomados à vogal aberta /a/. Se o tema geral é a corrupção e/ou o roubo, característicos temas de noticiários populares do século XXI, o poema não acusa nenhum contemporâneo seu, apesar de ser risível pela

138 HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVIII. 2ª Edição. Cotia; Campinas: Ateliê; Editora da UNICAMP, 2004. p. 48.

139

Idem, Ibidem.p. 383.

140 Todos os poemas de Gregório de Matos analisados aqui estão em: MATOS, Gregório de. Obras completas (Crônicas do Viver Baiano Seiscentista). Estudos e elaboração de apógrafos de James Amado. Salvador: Editora Janaína, 1968. 7 volumes.

forma como as palavras estão dispostas. Nos dois tercetos, o poema mantém essa unidade, ampliando a vulgaridade sonora com acréscimo do também oclusivo /t/.

De outra maneira, a voz poemática se mostra indignada e impossibilitada de qualquer ação. É como se a corrupção fosse parte inerente do sistema político- econômico colonial. Sobejamente moralista, mas ao mesmo tempo com uma sonoridade e com uma seleção vocabular grotesca, o poema se insere numa categoria muito específica da produção seiscentista, o jocossério.

No entanto, o primeiro poema de Musa praguejadora, que parece incompleto, mostra quão importante é adotar tal tipo de composição naquele universo: “E bem que os descantei bastantemente/ canto segunda vez na mesma lira/ o mesmo assunto, em plectro diferente.// Que a mudez canoniza bestas feras.// Oh que cansado trago o sofrimento. (grifo nosso)” Uma sociedade carregada de aberrações necessita, para a voz poemática, de um discurso que não canonize as bestas-feras. Um discurso grotesco- moralista, jocossério, desconstrói elementos grotescos da realidade. Se as bestas-feras pertencem ao campo do estranho e fantástico, não se pode esquecer que o período barroco é fértil em tais construções imagéticas.

O baixo calão, típico do discurso da praça pública medieval, é uma ferramenta discursiva poderosa indicativa da ambivalência corporal onde o baixo material se mescla ao elevado. Na série de três poemas dedicados a Maria Viegas, o baixo calão se mescla à degeneração do corpo para construir uma paródia de mulher. Se a série de poemas elogiosos a D. Ângela eleva os pressupostos da feminilidade, ocorre o contrário com a Maria Viegas, também chamada de Cota ou Coda Vieira. Além disso, o aspecto paródico se delimita como definitivo quando vemos que o trecho inicial do primeiro poema rememora às construções poéticas medievais, seja pelo metro ou pelo estilo adotado, que configura um equívoco: “Senhora Cota Vieira,/ Deus me não salve a minha alma,/ se vós não me pareceis/ uma linda, e gentil dama./ Tão risonha como a Aurora,/ tão alegre como a Páscoa,/ mais belicosa, que o fogo,/ e mais corrente, que a água.”

A estratégia de começar o poema elogiando a senhora só é desmacarada no apelido dela, retirando-a de um patamar elevado; e, também chã, a perspectiva de que é fogosa. “Risonha” e “corrente” são termo ambíguos, o que ajuda a caracterizar o discurso de louvor-injúria do grotesco, mas depois dessa inicial elevação, vem o rebaixamento: “[...] Há cousa como falar,/ como o Pai Adão falava,/ pão por pão, vinho

por vinho,/ e caralho por caralha./ Quem pôs o nome de crica/ à crica, que se esparralha,/ senão nosso Pai Adão/ quando com Eva brincava? [...]”

Ele ocorre na acepção das palavras. Os dois termos comparados com “caralho” são importantíssimos para o imaginário católico de língua portuguesa: pão (o corpo de Cristo) e vinho (o sangue de Cristo). Já o caralho é a subversão linguística da ordem estabelecida, e a representação máxima do falo na escrita. Se os dois primeiros não trocam de gênero, o último passa para o feminino. É no lúdico jogo com o gênero das palavras que o autor denuncia o homossexualismo de Cota Vieira. No mesmo trecho, a ligação com a tradição católica permanece e Adão e Eva se corporificam através do sexo. A crica de Eva materializa-os, tal qual quando saídos do Paraíso. O poema, em alguns momentos, faz uma paródia do primeiro livro da Bíblia, e também nesse aspecto é grotesco.

O segundo poema dedicado a ela também rebaixa o corpo, mas a conexão com o realismo grotesco é mais intensa: “Dize-me, Maria Viegas/ qual é a causa, que te move,/ a quereres, que te prove/ todo o home, a quem te entregas?/ jamais a ninguém te negas,/ tendo um vaso vaganau,/ e sobretudo tão mau,/ que afirma toda a pessoa,/ que o fornicou já, que enjoa,/ por feder a bacalhau.” O vaso de má qualidade, depois compreende-se, é o órgão sexual da mulher. Além de rebaixar sua interlocutora ao condená-la por se relacionar excessivamente, o eu poemático ainda apresenta seu orifício corporal com odores nauseabundos.

A expressão “feder a bacalhau” resiste até hoje na linguagem popular e, no poema, está associada à genitália feminina. Dados os primeiros indícios de um mundo às avessas, a descrição aumenta seu caráter hiperbólico e as metáforas ictiológicas continuam: “Diz, que achou tal apicu/ tão tremendo, e temerário,/ que só membro extraordinário/ abalaria esse cu:/ com guelras de Baiacu/ (diz) que se farta o teu Tordo,/ e assim que vaso tão gordo,/ tão grande, e com tal bocaina/ busque maior partezaina,/ que eu por isso é, que vos mordo.” A matéria baixa corporal se encontra com a terra em alguns momentos do poema, mas aqui o cu é um pântano. O universo se une para formar uma grande matéria heterogênea. O cu, parte de um todo corporal, é um peixe e se entrega para alimentar um pássaro.

Através dessa metonímia, o corpo se torna uma grande razão em que não há limites para a inventividade. O corpo autômato (vaso) também é zoomorfizado (bacalhau/ Baiacu) e serve suas partes à Natureza (“(diz) que se farta o teu Tordo”). Para tal universalismo grotesco se concretizar, falta entregar a interioridade do corpo. É

exatamente o que ocorre a seguir, sempre com a mesma seleção de um vocabulário ligado ao baixo: “Diz mais, que quando acabaste,/ deste peidos tão atrozes,/ que começou a dar vozes/ por ver, que te espeidorraste:/ e que também lhe rogaste,/ depois de se ter tirado,/ te fornicasse virado,/ pois de costas não podia,/ porque, quem tanto bolia,/ era força estar cansado.”

O peido é a matéria que emana de dentro do corpo. O mesmo tema é perpetrado no terceiro poema, então é desnecessário vê-lo aqui. O mundo às avessas está reconstruído no corpo de uma “mulher fácil”. Além disso, outros diversos elementos se relacionam com a linguagem grotesca na poesia seiscentista baiana:

[...] a sátira produzida na Bahia no século XVII tem tripla articulação: uma é metalingüística, entendendo-se pelo termo a tradução e a conexão do poema particular por determinada forma ou gênero retórico-poéticos, seus modelizadores: tópicas do louvor e da vituperação do gênero epidítico; formas poéticas; soneto, romance, décima, epílogo, mote e glosa, medida nova, medida velha, tipos e esquemas de rimas etc.; motivos tradicionais,

como o da Fortuna, o do marido corno, o do órgão feminino como “vaso”, o

do amor da freira, o do tamanho do pênis, os da escatologia etc. A outra articulação é a dos discursos locais, que tematizam personalidades e ações propostas como eventos desviantes da normalidade institucional [...]. Por exemplo, relação sodomita de Câmara Coutinho e seu secretário, Luís Ferreira; revolta da Infantária à falta das “farinhas tardas”; crítica à “justiça

bastarda” do Tribunal da Relação; ataque aos negociantes monopolistas da

Junta de Comércio; certa prostituta da Cajaíba; andanças por engenho do Recôncavo; festas da Igreja e tipos populares; o pseudofidalgo Pedralves da Neiva; as inúmeras putas; o deão Caveira; Frei Tomás dos Franciscanos; os índios descendentes do Caramuru; etc.141

Apesar de diversos desses temas nos interessarem como referenciais característicos do grotesco, principalmente os destacados por nós, a nota do Professor J. A. Hansen é apenas uma demonstração de como esse “mundo às avessas” está presente no Brasil. Em Portugal, não poderia ser diferente. A despeito de haver uma distância topográfica enorme, os valores culturais da colônia eram, na verdade, muito similares aos do reino.

Não obstante os elementos do grotesco estarem interligados, a linguagem grotesca do período será analisada apenas na obra de Dom Tomás de Noronha, também conhecido como Marcial de Alenquer. O precursor de Bocage carrega o mesmo problema de identificação dos textos de sua autoria que Gregório de Matos. Dada a profusão de poemas excluídos da Fénix Renascida, Mendes dos Remédios publica em 1899 uma antologia da obra de D. Tomás de Noronha, pouco usada aqui. No entanto, a

141

antologia de Natália Correia possui alguns inéditos do autor, e as Novas poesias inéditas

de D. Tomás de Noronha, de Teresa Paula L. Alves, são os livros que nos fornecem os

poemas do autor, destacando o último como central para esta parte do trabalho.

Partindo novamente do baixo calão e das expressões vulgares, temos em D. Tomás de Noronha notáveis exemplos de como aquém e além mar eram próximos em fazer uso de poéticas grotescas sofisticadas e inventivas quanto à linguagem e ao temário que rememora à veia epigramática da Antiguidade. Na décima A um

desconcerto de duas damas, o baixo calão funciona aparentemente como autoderrisão:

“Primo, acabado é já tudo/ e o ser que em nós soía;/ puta é a mãe, puta a tia,/ cornudo vós e eu cornudo./ Frade roliço e lombudo/ que desata em uma só ataca/ vos tem dado tal matraca/ que estou com suores frios;/ se sois capitão de brios/ mandai selar logo a faca.”142 As expressões “puta” e “cornudo” aparecem em qualquer receituário de linguagem satírica e grotesca.

Apesar de abrirem as portas do universo grotesco no poema, o baixo calão está longe de esgotar o trabalho inventivo do poeta. A décima começa se referindo a um primo. A aparente proximidade familiar é desconstruída em trechos subsequentes. Então, o uso de tal substantivo é para indicar a proximidade entre a voz poemática e seu interlocutor, ou aproximá-los. Uma típica brincadeira da linguagem popular é chamar um desconhecido por substantivos parentais, como irmão, tio e primo. A aproximação, em tom de brincadeira, é um artifício adotado pela voz poemática para “fazer uma fofoca”, ou seja, denunciar ao seu interlocutor um ataque a sua honra.

O segundo verso do poema indica que a honra de ambos foi aniquilada pela descoberta do eu poemático. Os dois versos seguintes, com o uso do baixo calão, corroboram a informação e direcionam o foco do discurso apenas para o interlocutor. Assim, o que inicialmente parece uma autoderrisão se transforma em uma denúncia paródica das relações sexuais de outras pessoas, sejam elas aparentadas com o interlocutor da voz poemática ou não. Então, a questão do poema não é necessariamente a honra. Esta serve como artifício para maldizer o padre, ou ainda, conforme vige à época, mostrar a torpeza moral em um ato obsceno.

142 ALVES, Teresa Paula L. Novas poesias inéditas de D. Tomás de Noronha. Braga: Editorial APPACDM, 1997. p. 73.

Talvez o padre que usava apenas uma ataca fosse facilmente identificado à época. Destaque-se que além da linguagem, o frade é descrito com um corpo grotesco, composto à época pela torpeza física (“roliço e lombudo”). O frade é carnavalizado. No mundo às avessas, o religioso é uma paródia do modelo mimético que a sociedade tem de si. Retornando ao uso grotesco da linguagem, o eu poemático promove uma dúvida ao seu interlocutor ao usar os parentais: seria realmente a mãe e a tia do primo as mulheres a fazerem o frade desamarrar sua ataca?

O interlocutor do eu poemático, que também pode ter sido reconhecido à época pelo uso da expressão “capitão de brios”, é provocado jocosamente pela própria voz do poema a se vingar usando uma faca. Contribui ainda para uma linguagem grotesca no poema as rimas do poema. Todas elas possuem uma palavra de uso mais popular, quando não inclusas no xingamento: “tia”, “cornudo”, “lombudo”, “ataca”, “matraca” e brios. O mesmo artifício o poeta adota em Levantando-se D. Tomás uma noite escura a

fazer câmara e se tornou encamarado. Apesar de ter no título a explicação do que

ocorre no poema, o sentido se perde nos dias de hoje. “Fazer câmara” é ser acometido por diarreia.

O trecho que nos interessa aqui é o seguinte: “[...] entrei numa estrebaria/ ou secreta, que a federem/ pestes e males geraria.// Sentando-me numa delas, logo me pus a cagar;/ quando me quis levantar,/ apegado estava a elas,/ sem me poder despegar.// Nunca tal me aconteceu/ ir cagar e vir cagado;/ por vida de homem honrado,/ nem me a mim tal pareceu/ que o lugar estava borrado. [...]”143

Os dois primeiros versos colocados aqui, que concluem a primeira estrofe, possuem uma notória preocupação em descrever o espaço. Se num primeiro momento a estrebaria gera asco, a partir do momento em que o verbo “cagar” se manifesta no poema, o espaço se torna risível. Um homem defecando no estábulo já faz o imaginário do leitor/ ouvinte voar até o cômico da situação de desespero do poeta, que aqui é a voz poemática, para aliviar sua natureza. No universo paródico carnavalizado, o homem é igualado a um animal. Ambos, “sem freio no cu”, como diz a expressão popular, cagam em qualquer ambiente. Sem conseguir se desvencilhar da sujeira, o poeta não imaginava voltar sujo.

O uso alegre do termo câmara desfigura-o completamente do significado majestoso que possui hoje. Além de haver uma polissemia rebaixadora, o termo ganha

uma nova formação nos versos finais: “[...] Eu câmara fui fazer,/ mas tão camarado vim,/ que inda hoje ando a feder.” Essa situação absolutamente cômica desvela como a ambivalência carnavalesca está presente no cotidiano daquela sociedade e como isso vira matéria poética.

Em uma perspectiva discursiva, o poema é híbrido e também se constitui enquanto prosa. Além do ritmo e da rima, características poéticas, temos elementos da prosa, como personagem, tempo e espaço, além do enredo de per si. Se a história é concluída de maneira hiperbólica, os versos “por vida de homem honrado,/ nem me a mim tal pareceu” são indicativos de que esse mundo de matéria excrementícia é ambivalente, e não apenas baixo, como se pode pensar, afinal o homem, que satiriza a si mesmo, leva uma vida honrada.

A sátira de si ocorre através de uma metonímia: o ânus faz o que se espera dele, defeca. No entanto, a matéria baixa do homem sai e a matéria baixa dos animais que defecam no estábulo se vinculam ao homem. O universo paródico permite essa troca de matéria baixa sem desonrar e ofender. No entanto, o homem carrega consigo, num típico exagero grotesco, a matéria baixa de todo o universo: o fedor da merda alheia. Destarte, se o outro poema possui algum resquício moralista, este não o possui e está a serviço de um riso desbragado de toda a coletividade.

Outro elemento característico da linguagem da praça pública é a maledicência. O soneto Pragas se orar mais por uma dama cruel, que aparece na Fénix Renascida, é indicativo de tal artifício já em seu título. O quarteto inicial e o terceto final são os trechos selecionados aqui: “Não sossegue eu mais, que um bonifrate,/ De urina sobre mim se vaze um pote,/ As galas, que eu vestir, sejam picote,/ Com sede me dêem água em açafate.// [...]E para minhas chagas faltem fios,/ Na cabeça por plumas traga cornos,/ Se meus olhos por ti mais forem rios.”144

Adotando a lógica cultural do período em que diversos poemas são paródias de textos tradicionais, este delimita muito bem seu corpus. O lirismo português, desde as