Capítulo VI ― Leila: o capítulo que não deveria existir
1. Simplesmente Leila
1.2 Caminho de Leila
“Gente olha pro céu”
A entrevista que Leila nos concedeu é uma das maiores (entrevista completa em
anexo n.º B), e foi perceptível, diante daquela conversa, o seu protagonismo: Ela é uma prova
viva de que os Movimentos Sociais, os grupos de Mulheres são instrumentos de
transformação na vida de quem os vivencia. Leila se apresentou como marajoara, nascida na
beira do rio e nos apresentou seus pais, Seu Arruda e Dona Helena:
“Meu nome é Leila Maria Santos de Arruda, eu sou marajoara do município de
Curralinho Ilha do Marajó. Eu fui uma criança ribeirinha, eu nasci na beira do rio,
meus pais foram agricultores trabalhadores da roça do campo, a nossa atividade era
a pesca, extrativismo e assim... Eu sou a terceira filha do casal João Damasceno
Brito de Arruda e Helena Santos de Arruda. Na minha infância minha mãe era
professora e o meu pai agricultor” (Leila).
Leila desde sempre aprendeu a dividir, sempre teve a casa cheia, pois era em sua casa
que funcionava a escola de sua mãe ― esta dividia o trabalho na roça com a alfabetização de
crianças, jovens e adultos ―; ela ensinava o que sabia aos moradores daquela comunidade:
“A nossa casa era sempre cheia de pessoas o tempo todo porque também era onde
funcionava a escola a minha mãe dava aula na sala da minha casa [sorriso] então era
um convívio muito grande, muito tempo muita gente nos turnos de aula, ela dava aula
de manhã, para crianças e adolescentes e a noite ela ensinava o MOBRAL
[Movimento Brasileiro de Alfabetização] para os adultos. Então a gente sempre teve
um convívio de muita gente e também minha família é muito católica, minha mãe,
meu pai sempre muito católicos, sempre participamos da comunidade, porque no
interior é assim comunidade, né?” (Leila).
“Meu pai era coordenador de comunidade o meu pai é um homem assim, que mesmo
sem saber muita coisa sobre preservação do meio ambiente, essas coisas ele não
tinha noção, mas assim mesmo ele já o preservava já se preocupava com o
desmatamento, com a derrubada das madeiras, retirada de palmito, açaí, essas coisas
então sempre ele foi muito defensor da preservação, da pesca demasiada sem
necessidade, da caça, enfim e é isso... e a gente assim... a nossa economia era
baseada em plantação de mandioca e o nosso sustento era tirado todo da floresta e
do rio, né? E também eles criavam muito, meu pai sempre criou pato, galinha, porco
e também sempre plantou e ele sempre nos ensinou e nos educou a sempre plantar,
sempre tirar o sustento da terra” (Leila).
É importante percebermos a preocupação com meio ambiente desde sempre em sua
convivência e a noção de uma economia mais justa e ligada ao meio em que viviam; fato que
nos remete ao pensamento de Acosta (2015), o qual estabelece que “a economia deve
submeter-se à ecologia. Por uma razão muito simples: a Natureza estabelece os limites e
alcances da sustentabilidade e a capacidade de renovação que possuem os sistemas para
autorrenovar-se” (p.121).
A família de Leila sempre fora atrelada à educação; sempre houve uma valorização do
conhecimento ― não é por acaso que a escola era dentro de casa ou que eles conviviam em
meio à comunidade e em o contato direto e de respeito com a natureza. No entanto, como
prática comum àquela região, Leila deixa sua casa para estudar e para trabalhar em Belém
(capital do estado do Pará) aos 10 anos de idade:
“Então com 10 anos, a minha irmã já vindo para Belém para um colégio, um
internato, trabalhar e estudar, porque o meu pai achava que aquilo era muito pouco
ele não queria que os filhos dele trabalhassem a vida inteira na roça ele tinha muita
sede de conhecimento que os filhos tivessem conhecimento, tivesse oportunidade
aquela coisa que ele julgava não ter [pausa - emoção] o que não é verdade porque no
fundo ele tinha muito [sorriso]. Hoje a gente sabe que ele tinha muito conhecimento e
tem, né? E aí assim... A minha irmã veio primeiro adolescente e depois eu com 10
anos, olha só, com 10 anos uma criança, né? [risos] eu vim para Belém para um
colégio interno, um colégio de freiras, mas aquilo para mim era uma festa, não era
doloroso eu sai de perto da minha mãe, porque eu ia tá com a minha irmã e eu tinha
outras possibilidades ali. Então eu nunca tive problema com isso, assim, de achar que
aquilo era uma ruptura que era dolorida ficar longe de casa, não, para mim era
normal, era tudo bem, era uma festa, porque nas férias eu estava lá de volta, eu
passava 6 meses e após 6 meses eu estava de volta em casa. E com o tempo eu fui
compreendendo que aquilo era necessário para a realidade que a gente vivia na
busca do conhecimento, o objetivo sempre foi esse” (Leila ― grifo nosso).
Uma menina, com 10 anos, Leila deixa sua casa e vai para um colégio interno estudar
e trabalhar (prática comum na região). O que impressiona é que ela encara essa ruptura como
algo natural e benéfico, pois cresceu ouvindo que conhecimento é importante; porém, aos 18
anos, quando teve de deixar o colégio, tentou a vida em Belém, mas sentiu a necessidade de
voltar a Curralinho, onde viveu por três anos. Foi lá que conheceu o pai de seus filhos.
“Depois que eu voltei para casa, para Curralinho era um novo momento e eu já tinha
terminado o ensino médio, já tinha um conhecimento melhor e eu fui trabalhar no
município eu trabalhei em Curralinho na secretaria de educação e cultura, trabalhei
na biblioteca porque eu sempre tive aptidão por ler sempre gostei muito de ler e aí
cheguei a fazer um curso de técnico de biblioteca, até hoje lá tem livros catalogados
por mim, um trabalho muito bom [risos]. Aí nesse período eu conheci o pai dos meus
filhos e aí a gente resolveu ficar juntos e foi isso, vivi em Curralinho já com os meus
filhos, tive dois filhos, Breno 27 anos hoje e o Brian 25 anos” (Leila ― grifo nosso).
A vinda com a família para Belém foi cheia de dificuldades, e Leila assume a
liderança de sua família, uma vez que não tinha apoio do seu companheiro. Ressaltamos que
ela sempre fora a maior provedora da família.
“Eu morei em curralinho 3 anos somente depois dessa minha volta porque eu achava
o mesmo que meu pai achou lá atrás, sem muitas perspectivas, aí eu me preocupava
de criar os meus filhos lá e eu não via possibilidade, só havia uma escola estadual
era tudo muito precário a gente trabalhava, como funcionário público e ganhava
menos de um salário mínimo então era muito difícil sem muita perspectiva de
melhora, mas aí nessa vinda para cá [Belém] também foi difícil porque eu fazia uma
visão de que seria muito mais fácil tá em Belém por conta das oportunidades e das
possibilidades de trabalho, mas não foi bem assim, porque o meu companheiro não
buscava, tinha medo de enfrentar as dificuldades, medo das possibilidades enfim... e
aí nesse processo eu tomei as rédeas da minha família eu que fui a provedora maior
da minha família e ai começou a busca, né? A minha mãe é a minha maior referência,
eu com certeza sou a mais parecida com ela, essa coisa da força, da determinação do
querer ir atrás, mas o lado mais apassivador eu acho que é do meu pai. O meu pai é
um homem muito pacifico ele é o apaziguador com ele não tem briga ele sempre
procura o lado bom das coisas, enfim, quanto menos briga melhor para ele. [risos] a
minha mãe é mais guerreira ela vai para confronto mesmo [mudança na voz]” (Leila
― grifo nosso).
Leila trabalhava para garantir o sustento da família, mas não deixava de sonhar. Em
2012, Ela decide voltar à sala de aula e consegue ingressar em uma universidade.
“Eu sempre quis fazer um curso superior e ter uma graduação, uma qualificação eu sempre
quis e por conta dos filhos e outras coisas, outras situações eu fui deixando de lado, ficou um
pouco esquecido, mas em 2012 eu decidi voltar a estudar, fiz o ENEM [Exame Nacional do
Ensino Médio], fiz o vestibular consegui meia bolsa pelo PROUNI [Programa Universidade
Para Todos, o qual promove o acesso às universidades particulares brasileiras para estudantes
de baixa renda que tenham estudado o ensino médio exclusivamente em escola pública ou
como bolsista integral em escola particular] em uma instituição particular, imagina 20 anos
sem estudar, minha nota foi ótima no ENEM para quem não estudava há 20 anos [risos]. E eu
estava no MOEMA ativamente quando passei no vestibular e fiquei no MOEMA até o 1.º ano
da faculdade, mas depois eu não consegui mais conciliar fazer as atividades e ir às reuniões
o trabalho fora e fabricar as coisas que eu comercializava, enfim” (Leila).
E é com um grande suspiro que Ela me dissera que não queria perder nenhum
minuto:
“Então eu optei pelo curso de pedagogia até então eu achava que eu tinha mais perfil
para ser assistente social, mas a minha nota dava para Pedagogia e eu não queria
perder mais nenhum minuto, eu não queria perder mais nenhum tempo [suspiro]”
(Leila).
“Era muita dificuldade e várias vezes eu pensei em parar, mas ao mesmo tempo eu
pensava... o que é isso? Você é capaz sim! Você consegue! Você já aprendeu a fazer
tantas coisas que nem imaginava fazer quanto mais estudar, né? E eu tive sorte de ter
professores maravilhosos, professoras excelentes que sempre me apoiavam me davam
forças e eu não quis mais parar de aprender e de buscar” (Leila).
“Eu me formei em 2016 e ainda na graduação eu ingressei na pós-graduação em
Educação Inclusiva, quando eu terminei a graduação eu já estava na pós e depois eu
já fiz mais uma, já finalizei, em Neuropsicopedagogia Institucional e agora estou
finalizando Neuropsicopedagogia Clinica com Reabilitação Cognitiva e penso em
fazer o mestrado” (Leila).
“O MOEMA foi um alavancar também porque na convivência com as pessoas que
frequentavam o MOEMA os ambientes que a gente ia então eu achava aquilo tudo
muito maravilhoso, tudo muito inspirador então eu queria buscar mais eu não queria
ser só uma artesã, eu queria ser uma artesã, mas eu queria ter uma formação
[emoção] eu queria ter um diferencial. Eu sempre incentivei as meninas do MOEMA
a buscarem também, a estudar de alguma forma, a melhorar a condição porque uma
coisa que é certa é fato quando você estuda portas se abrem, você pode continuar a
ser artesã, mas você ver outras possibilidades ali mesmo sendo artesã, você vai
aprender a comercializar melhor seus produtos, vai conhecer pessoas, melhorar o
marketing, enfim. De fato a educação transforma as pessoas” (Leila).
Desde muito jovem, Leila teve seu convívio em comunidade e, em Belém, começou
sua caminhada em Movimentos sociais através de uma associação de bairro:
“E a ASPEMA [risos] ahhh a ASPEMA [Associação dos Empreendedores e
Empreendedoras do bairro da Marambaia] tenho ela no Coração, a ASPEMA, a
Martinha, o seu Aristides, o banco do povo, tantas possibilidades, meu Deus! Tantos
projetos, tantas feiras em praça, a ASPEMA foi quem nos proporcionou o MOEMA.
[pausa]” (Leila).
No documento
UNIVERSIDADE DE LISBOA INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
(páginas 108-112)