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3. VISÃO GERAL DOS BENS PÚBLICOS NO DIREITO BRASILEIRO

3.3 Abordando os bens públicos no direito brasileiro

3.3.1 Caminho percorrido

A disciplina dos bens públicos envolve uma enormidade de coisas que por diversas vezes passam despercebidas ao cidadão comum. Cotidianamente, o indivíduo se depara com várias categorias e funções dos bens públicos. Rios, praias, parques, edifícios, rodovias, praças:

há muitos exemplos.

Embora o tema possua grande repercussão prática, para compreensão do que será proposto ao longo do trabalho é preciso retomar brevemente o histórico dos bens públicos.

Conforme explica Marques Neto, a própria noção de patrimônio público evoluiu com a construção da ideia de Estado (2014, p. 60).

As primeiras referências aos bens públicos de maneira mais próxima ao que se compreende atualmente remontam ao direito romano, que constavam na divisão de coisas defendidas por Caio e Justiniano nas Institutas (DI PIETRO, 2018).

De acordo com Di Pietro, havia menção às res nullius, que eram excluídas do comércio, entre as quais estavam as res communes (mares, rios, portos), as res publicae (terras, escravos, que eram de propriedade de todos, e res universitatis (fórum, ruas, praças públicas) (2018, p. 837). Conforme a autora, as res publicae pertenciam ao povo.

Anteriormente, na fundação de Roma e período da monarquia, a propriedade pública predominava sobre a privada (MARQUES NETO, 2014). Já na república romana, com a separação entre o poder religioso e o poder político, iniciou-se uma classificação dos bens públicos, com a divisão entre os bens aplicados na prática religiosa e os bens destinados às outras atividades e gozo coletivo (MARQUES NETO, 2014).

Dessa origem no direito romano, a noção de bens públicos no direito brasileiro herdou alguns equívocos, como aponta Marques Neto, entre eles a ideia pré concebida de que, qualquer que seja a situação, bem público é sinônimo de bem fora do comércio (2014, p. 63).

Conforme explica Di Pietro, o instituto jurídico avançou com o passar do tempo, com modificações na Idade Média, em que havia a forte e centralizadora figura do Rei ou Príncipe que detinham o patrimônio do Estado, se aproximando das ideias que vigoram atualmente após a noção de pessoa jurídica estatal como proprietária dos bens públicos, já no Estado Moderno (2018, p. 838).

É, aliás, com a Revolução Francesa que são tomadas duas medidas pela Assembleia Nacional capazes de conferir um patrimônio público sob a égide do Estado, sendo a preservação da ideia de domínio da Coroa, o que evitou a apropriação dos bens por particulares, e a transferência da titularidade do patrimônio da Coroa para a nação, como afirma Marques Neto (2014, p. 66).

Com o advento do Código Civil de Napoleão, há a distinção entre os bens passíveis ou não de alienação, o que para alguns significa o nascimento da divisão entre bens de domínio público e bens de domínio privado do Estado (DI PIETRO, 2018).

De acordo com Marques Neto, a Modernidade é mãe do direito administrativo, eis que oriundo de dois vetores do Estado Moderno, a concentração e a limitação do poder (2014, p.

67). Ainda avança o autor, ao afirmar que esses dois vetores impactaram também a noção do patrimônio público, pois a concentração reúne sob o controle estatal todos os bens que não aqueles de natureza privada, ao passo que a limitação do poder delimita o que é o patrimônio público e qual o alcance da apropriação privada (2014, p. 67).

Toda essa construção de domínio público, domínio privado, bens insuscetíveis de apropriação privada, na verdade surge com o intuito de garantir a propriedade privada, atendendo aos anseios da ordem capitalista emergente. Explica Marques Neto que “O reconhecimento de um acervo de bens públicos titularizado pelo Estado corresponderá à aceitação da existência dos bens privados e de sua incolumidade” (2014, p. 69).

Se a separação entre público e privado afirma, por um lado, o direito à propriedade privada e trocas livres, por outro lado provoca a necessidade de justificar e conter o conjunto de bens que serve ao povo, a propriedade pública constituinte do patrimônio público (MARQUES NETO, 2014).

Eis, então, o caráter dúplice da construção da personalidade jurídica do Estado e de seu patrimônio, garantindo a observância do objetivo da Modernidade: direitos patrimoniais do novo Estado, com relação aos bens coletivos, e liberdade econômica e de propriedade privada aos particulares.

No Brasil, a estruturação jurídica e prática dos bens públicos sofreu interessantes influências da própria ocupação territorial levada à cabo no período colonial, provocando reflexos na caracterização do patrimônio estatal.

Conforme Marques Neto, a constituição do domínio privado teve origem em transferências de terras pela Coroa Portuguesa, de maneira distinta do que ocorreu na Europa, em que houve apropriação pelos particulares em contraposição à pretensão de domínio do soberano (2014, p. 87).

Já no nosso caso, tanto as Ordenações Manuelinas quanto as Ordenações Filipinas dispunham que as terras descobertas passavam a ser do Reino de Portugal, da Coroa portanto (bens públicos, de certa forma), somente iniciando-se o processo de transferência desses bens aos particulares por meio do sistema das Capitanias Hereditárias (MARQUES NETO, 2014).

Em seguida, o sistema de sesmarias concedia terras aos indivíduos escolhidos e que pudessem cultivá-las, sendo considerado o regime agrário de então, e dando origem aos grandes latifúndios (DI PIETRO, 2012).

Após a proclamação do Império, embora ainda vigentes as Ordenações Filipinas, deixou-se de conceder sesmarias, o que deu início ao novo modelo de ocupação territorial, regido muito mais pelas relações possessórias do que propriamente por documentos ou títulos (MARQUES NETO, 2014).

Esse conjunto, formado por grandes propriedades e depois pelo regime de apropriação por meio de posse, provocou marcas presentes até hoje na distribuição de terras e aproveitamento fundiário no Brasil.

Como visto, a propriedade privada no Brasil surgiu por meio da ocupação e apropriação de terras de origem pública, seja por meios ilegítimos, como a posse, seja por meio de títulos e documentos.

No tempo da Colônia, a maior parte dos bens imóveis estavam sujeitos a essa apropriação por particulares, especialmente porque a parcela destinada ao uso público era ínfima, como praças e caminhos e outras parcelas naturais de difìcil exploração (MARQUES NETO, 2014).

Soma-se a isso o fato de que não havia, na época, grande preocupação com estruturas públicas, normalmente ligadas a um estágio mais avançado de urbanização e senso comunitário, o que não prevalecia naquele tempo e espaço, conforme Marques Neto, fatores determinantes para o processo de constituição às avessas do patrimônio público: “tudo era do Estado; quase tudo foi franqueado ao apossamento pelos privados; ao fim desse processo, o que sobrou (não foi ou não podia, por circunstâncias naturais, ter sido apropriado por particulares) passa a constituir o patrimônio do Estado” (2014, p. 90-91).

Após a independência da Colônia, o patrimônio público foi juridicamente formado pela parcela que sobrou das terras não apropriadas por ninguém, como exemplo as terras devolutas (MARQUES NETO, 2014).

Como explica Araújo, havia uma preocupação crescente na metade do século XIX no sentido de não permitir a aquisição de terras por parte de colonos imigrantes europeus (2010,

p. 49). Dessa forma, foi promulgada a Lei nº 601 de 1850, ainda no regime do Império, sob o comando de Dom Pedro II (ARAÚJO, 2010).

Referida legislação disciplinava, dentre outros aspectos, o regime das terras devolutas.

O artigo 1º estabelecia, logo de início, a proibição de aquisição de terras devolutas por outro título que não fosse o de compra (BRASIL, 1850).

Curioso que logo em seguida a lei mencionava uma exceção: as terras situadas no limite do império com países estrangeiros, em uma zona de dez léguas (algo em torno de 50 quilômetros), poderiam ser concedidas gratuitamente, o que denota desde aquele tempo uma preocupação em povoar as fronteiras, pontos sabidamente estratégicos para a soberania do país (BRASIL, 1850).

A legislação determinava, ainda, pena de prisão e monetária para quem se apossasse de terras devolutas ou alheias. O ponto relevante é a definição de terras devolutas, conceito exposto no artigo 3º da Lei nº 601/1850: são terras devolutas as que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial ou municipal; as que não constavam no domínio particular por qualquer título legítimo, nem as adquiridas pelo regime das sesmarias ou outra forma de concessão do Governo Geral ou Provincial; as que não estivessem ocupadas por posse, ainda que a posse não fosse fundada em título legal, desde que fosse legitimada de acordo com a própria Lei nº 601.

As posses, em geral, eram legitimadas desde que cumpridos alguns requisitos que foram trazidos com o advento da nova lei, em regra ligados ao cultivo do campo por meio de agricultura ou atividade de criação animal.

Já no século passado, o Decreto n. 24.643, de 1934, estabeleceu o Código das Águas, dispondo que as águas públicas poderiam ser classificadas como de uso comum ou dominicais (ARAÚJO, 2010).

As de uso comum incluíam o maior espectro, sendo consideradas assim as baías, enseadas, canais, lagoas, os mares territoriais, lagos, golfos, braços navegáveis, as nascentes;

as dominicais seriam as situadas em terrenos públicos, desde que não fossem consideradas de uso comum (ARAÚJO, 2010).

A preocupação em tratar esses bens naturais voltados ao uso comum como bens públicos, contudo, só surgiu com a percepção de que eram fontes de riqueza que poderiam ser apropriadas pelos particulares (MARQUES NETO, 2014).12

12 Atualmente, a água como bem público e recurso natural dotado de valor econômico é tratada na Lei 9.433/1997, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos.

Em 1946, o Decreto-Lei nº 9.760 trouxe um rol não taxativo de bens imóveis da União, incluídas as terras devolutas (ARAÚJO, 2010). Por sua vez, a Lei nº 5.972/1973 disciplinou procedimento próprio para o registro de bens imóveis de propriedade da União (ARAÚJO, 2010).

No que tange às terras devolutas, Araújo explica que a Lei nº 6.383/1976 determinou que fossem discriminados referidos imóveis da União (2010, p. 50). Como se vê, houve considerável avanço no século passado sobre a disciplina dos bens públicos imóveis, culminando nas disposições concernentes ao tema na Constituição Federal de 198813.

Isso, contudo, foi verificado principalmente na segunda metade do século XX, tendo os bens públicos mais expressividade após a Constituição Federal de 1988. Conforme Marques Neto, a anterior falta de preocupação com a temática dos bens públicos imóveis, especialmente do direito administrativo, muito tímido até então sobre esse tema, provocou um desenvolvimento da doutrina civilista nessa seara, que acabou por marcar a concepção dos bens públicos, notadamente com as discussões que culminaram no Código Civil de 1916 (2014, p.

92).

Todo esse processo de formação e caracterização do patrimônio estatal no Brasil e especialmente dos bens públicos imóveis ajuda a compreender as peculiaridades que envolvem a temática atualmente no direito administrativo.

Como visto, o poder público dedicou maior atenção com os bens públicos mais recentemente, o que explica em parte a ocupação desordenada de boa parte das terras tidas como públicas, ainda hoje, com construções e até bairros inteiros promovidos sobre tal domínio, muitas vezes sustentando as construções-base de imóveis objeto do direito real de laje.

Diante dessa situação fática e histórica, com a banalização de ocupação de bens públicos pelos particulares, entende-se que não há relevantes razões históricas para obstar a aplicação do direito real de laje sobre bens públicos. A integração de bens públicos e privados pode trazer mais benefícios do que prejuízos à sociedade, conforme será melhor abordado no capítulo terceiro.

3.3.2 Características, aspectos normativos e conceituais dos bens públicos que