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4. DIREITO REAL DE LAJE (PROPRIEDADE SUPERFICIÁRIA) NA ADMINISTRAÇÃO

4.1.1 Direito real de laje em imóveis públicos

A utilização do direito real de laje sobre imóveis públicos, em favor de particulares, é o primeiro uso a ser analisado na presente pesquisa. Como visto, há no Brasil vasto patrimônio público imobiliário, em muitos casos com subutilização. A aplicação do direito real de laje, dessa forma, pode ser interessante maneira de conferir melhor aproveitamento desses imóveis.

Nesses casos, o solo e a construção base pertencem ao Poder Público, ao passo que o subsolo ou a laje superior podem ser alienados ao particular. A exploração comercial do bem é uma das formas de conferir melhor aproveitamento. Um exemplo de aplicação é o famoso restaurante alemão “Ratskeller München”, localizado na capital da Baviera. O histórico estabelecimento encontra-se desde 1874 em funcionamento no subsolo do edifício da prefeitura de Munique (RATSKELLER MÜNCHEN, 2021).

A prática é comum no país germânico, sendo encontrados exemplos em outras cidades.

Evidencia, assim, que uma área que poderia ter pouco uso (porão) transformou-se não só em uma utilidade, mas também em uma forma de obtenção de renda e movimento econômico.

Outra possível aplicação é a alienação da laje superior de imóveis como estações de metrô com área na superfície. Na cidade de São Paulo, por exemplo, a linha amarela do metrô apresenta modernas estações, localizadas em bairros nobres, mas com baixo aproveitamento acima da superfície, em diversos casos com edificações de um ou dois andares somente do próprio metrô, que servem para acesso ao subsolo.

São exemplos as estações Fradique Coutinho (VIA QUATRO, 2021a), Morumbi (VIA QUATRO, 2021b), Oscar Freire (VIA QUATRO, 2021c) e Pinheiros (VIA QUATRO, 2021d).

Tais locais estão inseridos em bairros repletos de bares, restaurantes e lojas, sendo altamente valorizados. Constitui, dessa forma, um desperdício do imóvel o uso da superfície (construção térrea) apenas para acesso ao metrô, tanto sob o ponto de vista econômico quanto no que diz respeito à ocupação urbana e integração das funções da cidade.

Em outras linhas do metrô paulistano também não é diferente, a exemplo da estação Paraíso, da linha azul (METRÔ, 2021). A utilização do direito real de laje nesses imóveis públicos traria incremento substancial na função social e econômica desses bens, sendo possível, por exemplo, que o titular privado da laje superior estabeleça um restaurante, bar, academia de ginástica, cinema ou loja no local.

Além do uso da laje inferior ou superior de imóveis públicos para fins comerciais, vale mencionar também a possível destinação residencial.

O exemplo das estações de metrô e trens urbanos com construções realizadas sobre o local foi objeto de projeto de moradia popular em São Paulo, de acordo com reportagens (JOVEM PAN, 2016 e METRÔ CPTM, 2016). Na oportunidade, optou-se por parcerias público-privadas para construção de prédios residenciais.

De acordo com o Estado de São Paulo, a previsão é de construção de cerca de 32 mil metros quadrados sobre os trilhos do metrô, nas proximidades da estação Belém, no centro expandido da capital paulista (SÃO PAULO, 2017). Conforme o governo estadual, o objetivo é conciliar o fornecimento de unidades habitacionais de interesse social com o adensamento populacional do bairro, promovendo a requalificação do espaço público, tendo em vista que também são previstas áreas comerciais e comuns (SÃO PAULO, 2017)

A Secretaria de Habitação do Estado de São Paulo chama o projeto de “PPP dos Trilhos”, prevendo “a utilização de uma nova superfície a ser criada sobre as áreas operacionais do sistema de transporte público coletivo.” (2021, p. 1). A pasta cita ainda o direito real de laje como fator determinante do empreendimento, ao afirmar que trouxe contribuição “para a viabilização dessa nova superfície a promulgação da Lei nº 13.465, de 11de julho de 2017, culminando com a introdução no Código Civil Brasileiro, do Direito Real de Laje (art. 1225, alínea XIII).” sem, contudo, dar mais detalhes sobre a aplicação do instituto (SECRETARIA DE HABITAÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2021, p. 1).

Para operacionalizar o projeto, de acordo com a Secretaria de Habitação do Estado de São Paulo foi proposta a estruturação de uma concessão administrativa por 30 anos para a empresa vencedora da licitação do empreendimento explorar as áreas comerciais e comercializar parte das unidades habitacionais, tendo que em contrapartida prestar a manutenção dos edifícios e espaços criados e apoio na gestão (2021, p. 1).

O governo estadual cita ainda que o projeto de construção de moradias sobre o metrô foi inspirado em empreendimentos semelhantes já feitos com sucesso no exterior, como Penn Station (Nova Iorque), Rive Gauche (Paris), Paddington Station (Londres) e Depot Hard (Zurique) (SÃO PAULO, 2017).

Ainda no que toca ao tema das moradias populares, a Lei n. 14.118/2021 estabeleceu o “Programa Casa Verde e Amarela”, com o objetivo de promover o direito à moradia a famílias que se enquadrem nos requisitos definidos (BRASIL, 2021). Em seu artigo 7º, a legislação prevê a possibilidade de destinação, por parte da União, de bens imóveis a entes privados, para que construam moradias populares e prestem contrapartidas (como administrar e prestar manutenção do local, construir espaços comerciais e públicos, entre outras), sendo efetuada concessão de direito real de uso pelo prazo das contrapartidas (BRASIL, 2021).

Após o período de cumprimento das contrapartidas, a propriedade do imóvel é transferida ao contratado (BRASIL, 2021). Entende-se que em determinadas situações, poderia ser utilizado o direito real de laje para a mesma finalidade, sem que o ente público tenha que renunciar à propriedade do solo. Como no exemplo das estações férreas, seria viável a construção das moradias sobre o solo criado, alienado mediante direito de laje, com a manutenção do terreno sob propriedade pública, de forma que fosse possível a construção do empreendimento sobre um imóvel de uso da Administração Pública.

A premissa de ofertar terrenos ou imóveis não utilizados pela União em áreas urbanas é evitar construções de conjuntos habitacionais em locais distantes do trabalho dos moradores, como já foi feito em outras oportunidades (IBRADIM, 2020). Dessa forma, percebe-se a necessidade de conciliar a ocupação urbana de forma integrada (moradia, trabalho, lazer) com a urgente demanda causada pelo déficit habitacional no Brasil.

4.1.1.2 Instrumento de regularização fundiária urbana

A contribuição do direito real de laje para a questão da demanda habitacional pode possuir reflexos na regularização fundiária urbana. Como explicam Cláudia Corrêa e Juliana Menezes, grande parte das construções realizadas em favelas estão localizadas em terrenos públicos, o que em regra gera o problema da aplicação do instituto da usucapião como modo aquisitivo da propriedade (2016, p. 91).

Para Farias, El Debs e Dias, todavia, a usucapião da laje sobre bem público não é vedada, pois entendem que a proibição constitucional estabelece a restrição em ser usucapida a propriedade dos bens públicos (2018, p. 131). Para os autores, a laje é direito real e autônomo, de forma que a propriedade do bem público continuará sob titularidade da Administração Pública (FARIAS, EL DEBS, DIAS, 2018). Em sentido contrário entende Patrícia Ferraz, para quem existe vedação de usucapião de qualquer parte da propriedade pública, afirmando que em tais casos “a regra da acessão aderir ao solo permanece íntegra” (2018 p. 92).

Em que pese a disposição expressa do parágrafo primeiro do artigo 1.510-A do Código Civil seja no sentido defendido pelos autores, prevendo que “o direito real de laje contempla o espaço aéreo ou o subsolo de terrenos públicos ou privados, tomados em projeção vertical, como unidade imobiliária autônoma” (BRASIL, 2002), em geral a construção base erigida no terreno público, sobre a qual existe a laje, é de posse particular e não regularizada.

Nesse caso, seria possível a regularização da laje via usucapião e impossível a regularização da construção base, por estar em solo público? Para responder essa questão, a doutrina prevê dois caminhos.

Para Eduardo Marchi, que entende ser desnecessária a existência de construção-base para a instituição do direito de laje, é possível que o Estado aliene (e por consequência, é passível de usucapião) tanto a laje superior quanto a construção-base, permanecendo com a propriedade do solo ou do subsolo, bastando para tanto que faça a desafetação da superfície superior e da construção-base (2018, p. 114).

O autor confere, por meio dessa interpretação extensiva do direito real de laje (ampla divisão da propriedade em planos horizontais, verdadeira propriedade superficiária), interessante alcance do instituto como ferramenta para reduzir o déficit habitacional. Em suas palavras, o Estado poderia, inclusive, desapropriar as superfícies de terrenos públicos para projetos residenciais populares, permanecendo com o subsolo de propriedade estatal, “para a construção e exploração de grandes estacionamentos públicos, abertura de túneis viários subterrâneos e assim por diante.”, em verdadeiro uso do direito real de laje na Administração Pública (MARCHI, 2018, p. 115).

O outro caminho supostamente viável, defendido por Cláudia Corrêa e Juliana Menezes desde antes da positivação do direito real de laje no âmbito privado, é a legitimação da posse como meio para alcance da regularização fundiária do solo (2016, p. 95). Para as autoras, a legitimação de posse prevista no inciso IV do artigo 47 da Lei 11.977/2009 seria ferramenta hábil para regularizar o imóvel base, por meio de ato administrativo do Poder Público reconhecendo a posse do imóvel pelo ocupante estendendo às áreas públicas tal possibilidade (CORRÊA; MENEZES, 2016).

Todavia, o procedimento previsto na referida legislação é demasiadamente burocrático e importa em condições fáticas pouco prováveis no caso concreto (permanência do possuidor no imóvel por anos, procedimento no Cartório de Registro de Imóveis, propriedade verificada apenas após decorridos cinco anos do registro de legitimação), como apontam Cláudia Corrêa e Juliana Menezes, sugerindo modificações para simplificar o procedimento, como o aceite da acessão de posse (2016, p. 96).

Vale mencionar, ainda, que o instituto da legitimação de posse foi previsto também na lei que positivou o direito real de laje no âmbito privado (Lei 13.465/2017), com expressa vedação ao seu uso em imóveis de titularidade pública, nos termos do parágrafo segundo do artigo 25 da referida lei (BRASIL, 2017).

Contudo, a mesma legislação previu a figura da legitimação fundiária, em seu artigo 23, sendo possível sua concessão nos casos de Reurb social (Reurb-S), destinada à população de baixa renda (BRASIL, 2017). Com tal instrumento, é permitido ao Poder Público reconhecer o direito de propriedade aos ocupantes do núcleo urbano informal regularizado por meio da legitimação fundiária, mesmo no caso de imóveis públicos, conforme redação do parágrafo quinto do artigo 23 da Lei 13.465/2017 (BRASIL, 2017).

Essa segunda opção para regularização do imóvel base construído em terras públicas, embora possa conceder o título de propriedade ao possuidor após longo trâmite burocrático, é aparentemente mais complexa e menos célere do que a proposta de Eduardo Marchi. Entende-se, nesse sentido, que o primeiro caminho, pautado na interpretação extensiva do direito real de laje em terrenos públicos, pode permitir o alcance da regularização fundiária de maneira mais efetiva.

Além disso, caso admitida a separação da propriedade do solo (público) da propriedade da construção-base (privada), seria mantida a existência de propriedade pública e atendido o intuito da regularização fundiária do local.

Aprofundando a temática, Marchi afirma que também poderia ocorrer a desafetação da superfície de áreas públicas para edificação, por meio do direito de laje, de construções de apartamentos fora do enquadramento legal do condomínio edilício, o que no seu entender, acarretaria diminuição de custo das unidades autônomas, facilitando desse modo a aquisição (2018, p. 17). Conforme o autor, na Itália foi tomada medida semelhante, com o “Programma de Edilizia Economica Popolare”, utilizando-se da figura do direito de superfície, com concessão dos imóveis por 99 anos e possibilidade de aquisição da propriedade após isso (MARCHI, 2018).

Diante disso, entende-se a viabilidade do uso do direito real de laje na Administração Pública como ferramenta da regularização fundiária urbana, podendo, em determinados casos, ser o instituto interessante aliado no combate ao déficit habitacional.