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6 UMA EXPRESSÃO ESTÉTICA PARA O ESTADO NACIONAL

6.6 O Campo Arquitetônico

O caso do Ministério da Fazenda, envolvendo a rejeição do Ministro Souza Costa ao projeto vencedor do concurso para a sede ministerial, elaborado pelos arquitetos Alves de Souza e Enéas Silva, é bastante revelador dos bastidores das disputas estabelecidas entre os principais arquitetos cariocas de então, fundadas no desejo de sua institucionalização, em sua busca por prestígio profissional e no seu interesse em estar o mais próximo possível do poder para conseguir encomendas de vulto. Apesar de ter sido pago o valor referente ao prêmio, obtido pela primeira colocação no certame, eles sofreram outra forma de repúdio, analisada de forma aguda por Cavalcanti:

A [indiferença] do grupo moderno, que, ao contrário do caso do MES [Ministério da Educação e Saúde], não fez qualquer movimento em sua defesa. Para entendimento mais abrangente desse silêncio, talvez não bastem as gafes conservadoras do projeto. É importante relacionar tais “ruídos estilísticos” à análise sociológica das condições de pertencimento ao grupo moderno: acredito, baseado nas altíssimas posições ocupadas pelas famílias de Costa, Nieneyer, Reidy, Moreira e Leão, que, para integrar o grupo moderno, seria bem mais do que livres escolhas estético-estilísticas (CAVALCANTI, 2006, p. 71).

Subjaz aqui, portanto, o conceito de campo, da forma como foi abordado por Pierre Bourdieu (1989), fundamental para uma compreensão do cenário de atuação dos profissionais de arquitetura à época e de suas relações com o Estado. Um campo de interações sociais é conformado por um espaço de posições e por um conjunto de trajetórias, determinando relações interpessoais construídas segundo regras e convenções consensuais e tacitamente compartilhadas. Nessa teia relacional, os indivíduos movem-se empregando seu capital simbólico, determinados precisamente pela posição que ocupam na hierarquia social. Segundo esse argumento, nos anos de 1930, os arquitetos cariocas, divididos entre duas tendências, a saber, “o moderno dentro do espírito clássico e o moderno revolucionário, preconizado por Le Corbusier” (CAVALCANTI, 2006, p. 69), pareciam estar também separados por divisões de classe social e origem:

estarem no Rio de Janeiro há pelo menos uma geração, possuindo grandes capitais econômicos e, sobretudo, sociais e culturais. A Gustavo Barroso, Archimedes Memória, Alves de Souza e José Marianno não faltava capital econômico, pois pertenciam a abastadas famílias da “província” – Ceará, os dois primeiros, Pará e Pernambuco, respectivamente; havendo se mudado jovens para o Rio, possuíam, nesse sentido, menores capitais sociais e culturais do que Costa, Niemeyer, Moreira e Reidy (CAVALCANTI, 2006, p. 75).

É necessário assinalar, portanto, que o reconhecimento dos arquitetos que conformavam esse campo arrimava-se, também, em fatos distintos do conhecimento, das habilidades e das qualificações educacionais. Outro aspecto refere-se ao fato de que a defesa de argumentos legitimadores de formas simbólicas comporta interesses que extrapolam a crença que sustenta o campo específico – as correntes arquitetônicas em disputa. Nesse caso, o acesso a obras que pudessem conferir prestígio.

Na mesma linha, deve-se atentar para os modos de operação da ideologia, definida por Bourdieu como o emprego de formas simbólicas para fundamentar relações de dominação, assimétricas, desiguais ou opressoras, estabelecidas e fortalecidas por estratégias e práticas, tantas vezes repetidas e naturalizadas em suas regras, que seus próprios agentes não se dão conta do seu potencial opressor. Por meio dessa reflexão, podem-se analisar as implicações de poder e os conflitos subjacentes aos sujeitos, o que se mostra de modo mais ou menos evidente em suas ações. Quanto ao universo em que se movimentam os atores, afirma Bourdieu (1998, p. 69):

Compreender a gênese social de um campo e aprender aquilo que faz a necessidade específica da crença que o sustenta, do jogo de linguagem que nele se joga, das coisas materiais e simbólicas em jogo que nele se geram, é explicar, tornar necessário, subtrair ao absurdo do arbitrário e do não- motivado os atos dos produtores e as obras por eles produzidas e não, como geralmente se julga, reduzir ou destruir.

Diferentes correntes de concepção de modernidade irrigavam o campo arquitetônico na afirmação do Estado Nacional. Como signos desse processo, os prédios dos Ministérios assumiram caráter paradigmático. Na contraposição ou mesmo no entrelaçamento entre eles talvez possam ser vislumbradas as faces de uma mesma moeda, sugeridas na aludida definição de Febvre (1998, p.54 ), que polariza os conceitos de nação e Estado, segundo diversos argumentos legitimadores, a exemplo de cultura, tradição, civilização, eficiência, funcionalidade, monumentalidade. Conforme Menezes (1988, p. 19):

Do ponto de vista semiótico, tudo se passa como se o regime se permitisse certas ousadias inovadoras no plano da cultura (superestrutura), desde que ficassem claramente definidas as bases do seu poder econômico e político. Como quer que seja, boa parte da arquitetura pública desse período seguiria o padrão de relação entre arquitetura e sistema político não democrático.

O academicismo, tão ao gosto da maioria dos ministros, foi preponderante na construção dos novos edifícios administrativos. Conforme referido, a atitude de Vargas, por meio da ação de seus ministros, foi ambígua no campo da cultura. Em quinze anos à frente do governo, contou com o apoio de intelectuais de diferentes matizes ideológicos. "Como se explica essa contradição?", indaga Segre (2014, p. 338). O autor destaca que Vargas, apesar "de assumir elementos repressivos do modelo [fascista] e identificar-se com a arte clássica", nunca impôs uma linha estética em particular, admitindo expressões da academia e da vanguarda. Nesse sentido, Faoro (2001, p. 829) esclarece que "em geral, o regime autoritário se satisfaz com o controle político do Estado sem pretender dominar a totalidade da vida socioeconômica da comunidade, ou determinar sua atitude espiritual de acordo com sua imagem".

A ideia de moderno nutriu diferentes expressões e movimentos arquitetônicos. Destaco, contudo, dois edifícios: O Ministério da Educação e Saúde e o Ministério do Trabalho. De um lado, o modernismo defendido por Lúcio Costa propunha uma síntese do racionalismo da vanguarda europeia com as “legítimas” raízes brasileiras. No período colonial, estariam as mais autênticas produções nacionais, e recorrer ao cerne dessa genuína arquitetura – a honestidade construtiva, a singeleza das formas, o equilíbrio – justificaria o atributo de nacional. Essa perspectiva que se legitimava a partir de uma interpretação das raízes nacionais, na memória coletiva, na busca de uma veracidade ancestral, aproxima essa corrente da ideia de nação, em seu conteúdo semântico mais arraigado, ou seja, em seus componentes de uma longínqua origem legitimadora: “o passado ao qual a nova arquitetura vinculava-se era o dos valores ‘eternos’, característicos da tradição mediterrânea de gregos e latinos (...) a tradição da arquitetura moderna não seria a das formas, mas a do ‘espírito’ e das ‘leis’”. (LISSOVSKY & SÁ, 1996, p. XXI).

ornamentos, não se apoiava no argumento da brasilidade. Como visto, a obra não despertou polêmicas e buscava sobretudo atender aos requisitos de funcionalidade às amplas funções que efetivamente abrigou. Distante da preocupação com uma expressão local, o moderno impresso nas formas do Ministério do Trabalho expressava certo caráter conservador, um pouco moderno, um pouco acadêmico: um continente mais adequado aos conteúdos no novo modelo de Estado que se organizava, conforme Segre e Cavalcanti:

Algumas dessas iniciativas abandonaram os códigos arquitetônicos historicistas e assumiram os princípios econômicos, funcionais e formais do movimento moderno, coincidente com o uso de concreto armado e os componentes normalizados da construção. Não se tratava de edificar monumentos, e sim infra-estruturas elementares distribuídas por todo o território nacional, que expressassem a orientação popular do novo governo e ao mesmo tempo contemplassem a estética da modernidade (SEGRE, 2014, p. 109).

(...) O prédio - apesar de pretender filiações mais amenas – ficou associado ao que se convencionou chamar de arquitetura do Estado Novo. (...) Anterior aos ministérios da Guerra e da Fazenda, não é improvável que, ainda que almejasse apenas parecer cosmopolitamente norte-americano, tenha auxiliado a fixar cânones estéticos utilizados na implantação de prédios governamentais do período ditatorial de Getúlio Vargas (CAVALCANTI, 2006, p. 94).

A expressão estética do Ministério do Trabalho, a meio caminho da vanguarda do Ministério da Educação, e a grandiloquência do Ministério da Fazenda remetem à afirmação de Faoro, que ilumina as relações entre ideologia e expressão estética:

O perfil autoritário do sistema, que dispensa a participação popular, não logra dominar a sociedade, situando-se mais como árbitro de dissídios do que diretor de opinião. Por isso, não conseguiu oficializar nenhuma ideologia, disfarçando-se o poder sob a ditadura pessoal. (FAORO, 2001, p. 792).

Se o edifício do Ministério do Trabalho permaneceu praticamente desconhecido, "anônimo" na referida apreciação de Cavalcanti( 2006, p. 93), o Art

Déco racionalizado que preside sua concepção teve expressiva visibilidade em outra

obra, que ainda preserva seu caráter icônico, metamorfoseado em outros significados: o edifício sede da Central do Brasil, que será analisado, de forma pormenorizada, no próximo capítulo.