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4 BRASIL, 1822 – 1922: CEM ANOS DE ACADEMIA OU

4.1 Neoclássico imperial

No Brasil, a questão nacional emergiu em decorrência das mudanças de caráter institucional, cultural e econômico que se operaram no século XIX, apesar da persistência de um quadro fragmentado, marcado pela dispersão de grupos ao redor do imenso território do país e pelas diversidades socioeconômicas, culturais e políticas, conforme a análise que elaborou Capistrano de Abreu sobre os três séculos de colonização do país:

Vida social não existia, porque não havia sociedade; questões públicas tampouco interessavam e mesmo não se conheciam (...). É mesmo duvidoso se sentiam, não uma consciência nacional, mas ao menos capitanial... (ABREU, 1982, p. 197).

Ao longo da centúria, o tema da construção da nação ganhou crescente interesse e complexidade, em um contexto de formação de novos Estados nacionais nas Américas. A Independência e a instauração do Império impulsionaram um processo de transformações em âmbitos diversos desse “arquipélago gigantesco” (SODRÉ, 1989, p. 12). O novo estatuto jurídico-político do país, com a constituição do Estado nacional, passou a exigir uma organização burocrática mais complexa, que solicitava a formação de quadros para assumir as novas funções.

A transferência da Corte real portuguesa, em 1808, ensejara a criação de importantes instituições, como a Imprensa Régia e a Biblioteca Real, às quais se somariam, na década de 1820, os cursos de Direito, em Olinda e em São Paulo. Em torno de tais instituições, organizava-se o nascente campo intelectual, onde tinham ressonância as influências iluministas do pensamento europeu. Quanto aos fatores socioeconômicos, o favorável quadro decorrente da exportação do café impulsionava, em meados do século, a inserção do Estado nacional na ordem mundial capitalista, como ilustram "as primeiras tentativas para se criar um mercado de trabalho, da terra e dos recursos disponíveis” (FAUSTO, 1995, p. 197).

À estruturação do Estado nacional conjugaram-se iniciativas de modernização – a exemplo da promulgação da Lei de Terras e a aprovação do primeiro código comercial (FAUSTO, 1995, p. 197). Entretanto, permanecia o desafio

de consolidar um centro de poder na vastidão de um país com a população dispersa, que prestava sua lealdade básica aos potentados rurais, detentores privados do poder (REIS, 1988, p. 191). Além desse aspecto, as diversas revoltas ocorridas entre os anos de 1830 e 1850, em diferentes províncias, questionando os valores encarnados pela Monarquia, ilustraram um perfil multifacetado.

Esse panorama ensejou a elaboração de um argumento legitimador e unificador, capaz de exprimir a almejada nação. De meados do século XIX até a década de 1870, as manifestações do campo artístico-literário, adotando os princípios estéticos do Romantismo, à luz do ideário patriótico e nativista, iriam promover a modelagem simbólica da nação. O imaginário indianista consagrava-se com a publicação de “Confederação dos Tamoios” (1856), de autoria de Gonçalves de Magalhães, e de “O Guarani” (1857), de José de Alencar. Concebidas segundo os princípios daquele movimento surgido na Europa em fins do século XVIII, a figura idealizada do índio e a estetização da natureza – inspiradas na riqueza de informações e no espanto dos relatos de viajantes estrangeiros – buscavam exprimir as singularidades nacionais13.

A literatura foi o canal, por excelência, desse projeto: “a literatura nacional que outra coisa é senão a alma da pátria?”, diria José de Alencar (apud DE NICOLA, 2003, p. 68). Para a disseminação desse ideário romântico, concorreu o desenvolvimento da imprensa, como ilustram o surgimento de jornais dotados de continuidade e de estabilidade e as revistas ilustradas, ampliando o público leitor, constituído, especialmente, de mulheres e estudantes14 (SODRÉ, 1989, p. 45). Entretanto, não caberia remeter ao conceito de “comunidade imaginada”, de Benedict Anderson, que subentende uma larga abrangência das funções da imprensa na modelagem da ideia de nação. Além da grande maioria iletrada que conformava a população do país, as mudanças, nesse campo, eram lentas. A queixa de Aluísio Azevedo, escritor de uma geração posterior, é reveladora: “Escrever para quê? Para quem? Não temos público. Uma edição de dois mil exemplares leva anos a esgotar-se...” (apud DE NICOLA, 2003, p. 197).

13 A exemplo de Spix e Martius, Sainr Hilaire, Langsdorff e Rugendas.

14Sobre esse aspecto, é interessante observar as primeiras palavras do capítulo CXIX de Dom

O Neoclassicismo liga-se ao progressivo processo de europeização arquitetônica do Brasil ocorrido no século XIX, embora algumas realizações nacionais dessa corrente estilística já aparecessem, por via portuguesa, desde fins do século XVIII, tais como algumas obras de Francisco Landi, no Pará. Entre nós, seu surgimento e posterior êxito deveram-se à transferência da corte de Portugal para o Rio de Janeiro em 1808. A cidade, a despeito da fraca integração, via-se fortalecida pela sua condição de sede do novo Império. No país, portanto, o século XIX só se iniciaria a partir desse importante marco temporal. Conforme Lemos (1979, p. 106), a cidade "desagradou enormemente aos fidalgos recém-chegados, tão acostumados à lindeza de Lisboa recém-construída":

Aqui encontraram foi uma enorme Alfama plana de águas servidas empoçadas. Dever-se-ia varrer com toda a urgência os balcões de madeira, os muxarabis de treliças, as rótulas, as urupemas e os toldos das fachadas de pedra. Deveria ser banido aquele ar orientalizante e grotesco da cidade escolhida para ser a capital do Reino. E tudo isso vinha a calhar com os interesses comerciais da Inglaterra, o país apto a fornecer com exclusividades vidros planos para as janelas, substituindo as tábuas dos escuros tradicionais; grades de ferro fundido no lugar dos paus recortados e dos balaustres torneados. E os ingleses venderam mais uma enormidade de coisas e materiais de construção: chapas de cobre, de chumbo ou de ferro, pregos e ferramentas de todas as qualidades, novos serrotes e serras. As casas ficaram proibidas de lançar águas pluviais nas calçadas–seus beiras receberam calhas, condutores, buzinotes e gárgulas, quando não foram substituídas por platibandas decoradas (LEMOS, 1979, p. 106). Para que a velha cidade servisse como digna morada do Reino, era preciso adequá-la e reformá-la. Criaram-se posturas para a regulação de gabaritos e o ordenamento de frontispícios, normas estas que passaram a ser seguidas à risca. Entretanto, essa transformação carecia de mão de obra especializada para ser plenamente executada. No século XIX, a exemplo de outras manifestações culturais no Brasil, a produção da arquitetura, nomeadamente aquela de traço erudito, passou a ter a Europa como referência cultural, distanciando-se dos métodos ou expressões estéticas amalgamados nos três séculos de colonização.

O Neoclassicismo, baseado na obediência estrita às regras dos tratadistas do Renascimento, foi divulgado por todo o país, tendo como fato notável a vinda da Missão Francesa ao Brasil, em 1816. Por essa época, Portugal, que havia sido invadido e ocupado pelos franceses, cuidava de restaurar, a partir do Brasil, suas relações políticas, econômicas e culturais com a França. Liderada por Joachim Lebreton, desejoso de fundar no país uma escola de ciências, artes e ofícios, a Missão teve na figura de Auguste Henri Victor Grandjean de Montigny a

sua referência na área da arquitetura, com intensa atuação daquele ano até 1850. Com a fundação da Academia Imperial de Belas Artes15, em 1826, o Neoclássico, o

“estilo oficial” do Império, será difundido em todas as províncias brasileiras pelos engenheiros militares formados nesta escola e na Escola Naval, fundada em 1811.

O Neoclássico foi disseminado, por meio do governo imperial (Figura 24), como expressão de negação da vida local, de rejeição das condições de existência da sociedade brasileira. À liberdade e exuberância do barroco setecentista sucedeu o estilo calcado na simplicidade, na sobriedade, na obediência aos "cânones e gramáticas – que se traduziram num freio à imaginação criadora", conforme Santos (1981, p. 52). Nesse sentido, complementa o autor: "o neoclássico foi a expressão estética da nova condição institucional do país". (SANTOS, 1981, p. 103).

A transposição do estilo para o Brasil remete ao comentário de Schwarz (2000, p. 25) acerca de ideias fora de lugar: "o desacordo entre a representação e o

15Criada em 1816 com o nome de Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, manteve esta

denominação até a independência do Brasil, em 1822. Durante o período imperial, foi conhecida como Academia Imperial de Belas Artes, com sua instalação oficial 1826. Com a proclamação da República, passou a ser chamada Escola Nacional de Belas Artes. Em 1931, foi incorporada à Universidade do Rio de Janeiro e, em 1937, à Universidade do Brasil. Em 1965 teve o nome

Figura 24 - Palácio Imperial, Petrópolis-RJ (1862). O Neoclássico como expressão da ideia de civilização, inerente à afirmação do Estado Nacional.

Fonte: http://www.museus.gov.br/wp-

que, pensando bem, sabemos ser o seu contexto". É nesse sentido que segue a reflexão elaborada por Reis Filho sobre a arquitetura neoclássica no Brasil:

[A interpretação do Neoclássico] parece, contudo, constituir um dos problemas mais delicados da arquitetura do Brasil. Trata-se, aparentemente, de uma transformação sui generis, pois conservando-se as bases econômico-sociais da vida brasileira, os mesmos proprietários rurais, senhores das mesmas terras e dos mesmos escravos, ocupados no fornecimento do mesmo tipo de produtos agrícolas para exportação, passam quase subitamente a consumir um novo tipo de arquitetura, em suas residências rurais e nos centros urbanos (REIS FILHO, 1973, p. 135).