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5 BRASIL, 1930: O FORTALECIMENTO DA MÁQUINA ESTATAL

5.6 Um eficiente trabalhador

Em 20 de março de 1919, em uma conferência intitulada “A Questão Social e Política no Brasil”, Rui Barbosa apregoava as virtudes do trabalho:

O trabalho não é o castigo; é a santificação das criaturas. Tudo o que nasce do trabalho, é bom. Tudo o que se amontoa pelo trabalho, é justo. Tudo o que assenta no trabalho, é útil. Por isso, a riqueza, por isso o capital, que emanam do trabalho, são, como ele, providenciais" (apud IANNI, 1992, p. 106)

O enobrecimento do trabalho defendido pelo jurista inscrevia-se em um quadro de crescente desenvolvimento do capitalismo e acirramento das lutas sociais no país, que remontavam ao final do século XIX. Convinha, pois, redefini-lo como atividade valorosa, necessária e produtiva. Estava em curso “um processo de beatificação do trabalho", argumento que se coadunava com os interesses do desenvolvimento e diversificação do sistema econômico, exigindo que as relações de produção fossem institucionalizadas (IANNI, 1992, p.103).

Sobre a emergência da questão social no quadro do incremento das relações de produção, o historiador José Maria Belo, em seu texto “A Questão social e a solução brasileira”, publicado em 1936, afirma que a questão social é consequência intrínseca do desenvolvimento industrial, traduzida em “melhor distribuição das comodidades materiais da vida” (apud OLIVEIRA, 1980, p. 102). Para o projeto político que se implantava no país, o tema era de interesse estratégico, equacionando-se as reivindicações dos trabalhadores em consonância com os objetivos do progresso econômico. O discurso de Getúlio Vargas apresentou esses elementos:

(...) Sempre tive em vista, ao resolver o problema das relações do trabalho e do capital, unir, harmonizar e fortalecer todos os elementos dessas duas poderosas forças do progresso social (...) Numa sociedade onde os interesses particulares prevalecem sobre os interesses coletivos, a luta de classes pode surgir com o caráter de uma reação de consequências funestas, Por isso, as leis sociais, para serem boas e adaptáveis, devem exprimir o equilíbrio dos interesses da coletividade, eliminando os antagonismos, ajustando os fatores econômicos, transformando, enfim, o trabalho em denominador comum de todas as atividades úteis. (VARGAS,2011, p.411).

Vale assinalar que o processo de industrialização no país foi caracterizado pelo intervencionismo econômico do Estado (DINIZ, 1978, p.72). É

nessa direção que se apresenta a reflexão de Reinhard Bendix: “Um elemento essencial da construção da nação é a codificação dos direitos e deveres de todos os adultos que são classificados como cidadãos” (BENDIX, 1996, p.110). Considerando ser a nação “constituída com base na expectativa de convivência respeitosa e satisfatória entre seus membros” (DOMINGOS & MARTINS, 2006:108), os direitos sociais passam a ser “símbolo de igualdade de âmbito nacional” pela “incorporação cívica” dos setores menos privilegiados (BENDIX,1996:135).

O processo de construção nacional precisava integrar todos os segmentos sociais do país: o reconhecimento de direitos se afigurava como uma condição fundamental. Tratava-se da incorporação dos problemas sociais ao mecanismo estatal e, de modo especial, o estabelecimento de uma disciplina social e jurídica do proletariado (FAORO, 2001, p. 806). Transcorridos pouco mais de duas décadas do pronunciamento de Rui Barbosa, Getúlio Vargas faria a mesma apologia do trabalho, enfatizando seu papel na construção da comunidade nacional:

O trabalho é, assim, o primeiro dever social. Tanto o operário como o industrial, o patrão como o empregado, realmente voltados às suas tarefas, não se diferenciam, perante a Nação, no esforço construtivo: são todos trabalhadores. (VARGAS, 2011, P.412)

Esse discurso ganhou efetiva concretude na década de 1930, no contexto político de construir o desenvolvimento do país dentro da ordem, como apregoavam as elites políticas e econômicas. Em que pesem as lutas e esforços anteriores, é a partir daquele decênio que se verifica um firme posicionamento do Estado frente à questão social, período que se intensificará o intervencionismo estatal na área de política social. É significativo que, em seu discurso de posse como titular do Ministério do Trabalho, em dezembro de 1931, Lindolfo Collor tenha afirmado que “é o Ministério do Trabalho, especificamente, o Ministério da Revolução” (apud PARANHOS, 1999, p. 67).

Ao enquadramento institucional do trabalho aliou-se a construção simbólica da imagem de Getúlio Vargas, com a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) em 1939. A construção do carisma do Presidente –" o "Reformador", "Pai dos Pobres", "Apóstolo Nacional" – foi um dos maiores empreendimentos desse órgão, somando-se aos esforços de disciplina e adesão dos trabalhadores. Subordinado diretamente à Presidência, o DIP foi uma potente

mediante suas diversas seções, a propaganda, a radiodifusão, o cinema, o teatro, imprensa, dentre outros processos sociais de comunicação. Ao órgão, que também contava com a colaboração de eminentes intelectuais, coube, portanto, o controle dos" instrumentos necessários à construção e implementação de um projeto político- ideológico que se afirmasse como socialmente dominante" (GOMES, 1982, p.110).

À exceção da lei do salário mínimo, que seria decretada posteriormente, a maioria das leis trabalhistas teve sua formulação decidida e implementada no período entre 1931 e 1934 (GOMES, 1982, p.151). A autora evidencia a atenção e a urgência do governo Vargas para com o assunto, especificamente com a formalização das relações de produção e o disciplinamento do trabalho. O governo intervinha nos assuntos ligados ao trabalho, com os objetivos de conter o avanço do movimento dos trabalhadores (GOMES, 1982, p. 152).

A Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, aprovada em 1943, representou o atendimento de reivindicações operárias que remontavam ao final do século XIX, objeto de intensas lutas da categoria por várias décadas. Fazia-se de fundamental importância a implementação de “uma política de ordenação do mercado de trabalho, materializada na legislação trabalhista, previdenciária, sindical e também na instituição da Justiça do Trabalho” (GOMES, 1982, p. 152). Com isso, ficavam os sindicatos subordinados à tutela do Estado. Entretanto, essa cidadania prometida tinha caráter restrito: os trabalhadores do campo permaneceriam fora dessa política, pois a legislação social só abrangia profissões reconhecidas e regulamentadas pelo Estado.

“Na sorte das populações rurais reside o aspecto mais sério da questão social”, avaliava Américo Palha em “A Ilusão Brasileira” (apud OLIVEIRA, 1980, p. 268). Com a diminuição das imigrações, grande parte do proletariado originava-se do campo: entrada do migrante na vida urbana poderia ampliar suas possibilidades de emprego, e, em consequência, a possibilidade de acesso às conquistas dos trabalhadores urbanos. Contando com o apoio político dos latifundiários, o Governo manteve intactas a grande propriedade rural e permaneceram as precárias condições de trabalho. Em 1940, 59,23% das terras pertenciam a 3% das famílias proprietárias do campo. Se, no processo de centralização política do período, diminuía o poder das oligarquias, essas mantiveram-se firmes nos estados e municípios, constituindo-se em forte esteio do regime, mediante a concessão de favores governamentais (ALENCAR, 1985, p.259 e 260).

Fato revelador da ação do Estado Novo no processo de valorização do trabalhador ocorre no samba carioca nas décadas de 1930 e 1940, evidenciando os contornos da política ideológica do governo. O elogio da malandragem sempre fora tema recorrente no samba: "O malandro do morro – 'o enquistamento urbano do êxodo das senzalas' – que repudiava o trabalho sempre era o herói do cancioneiro popular" ( Gomes, 1982, p.159). Em 1933, o compositor Wilson Batista, na letra do samba “Lenço no Pescoço”, expunha esse quadro:

Meu chapéu de lado, Tamanco arrastando, Lenço no pescoço, Navalha no bolso, Eu passo gingando, Provoco desafio,

Eu tenho orgulho de ser vadio.

Sei que eles falam desse meu proceder Eu vejo quem trabalha andar no miserê. Eu sou vadio porque tive inclinação. Quando era menino, tirava samba-canção.

Conforme Alencar (1985, p. 253), em 1929, moradores do bairro do Estácio, no Rio de Janeiro, criaram a primeira escola de samba da cidade, a “Deixa Falar”. Um ano após, surgia a “Estação Primeira de Mangueira”, no morro homônimo. As autoridades governamentais começaram a perceber a importância e a capilaridade dessas organizações populares e passaram a se interessar por sua “organização”. Verbas públicas eram distribuídas em troca do atendimento a algumas exigências feitas pelo governo municipal: adoção de denominações mais apropriadas e seleção de temas de caráter patriótico e ufanista ou de elogio ao trabalho.

Soihet (1998, p. 316 ) aborda esse esforço para domesticação de uma manifestação da cultura popular, citando o líder portelense Paulo da Portela: “Sambista, para fazer parte do nosso grupo, tem de usar gravata e sapato. Todo mundo de pés e pescoços ocupados”. No ano seguinte, a “Escola de Samba Unidos da Tijuca” desfilava no carnaval com o enredo “Natureza Bela do Meu Brasil”. O mesmo Wilson Batista, que pouco antes havia exaltado a “malandragem”, lança, em

1940, o samba “O Bonde São Januário”, de grande sucesso no carnaval carioca

daquele ano:

O bonde de São Januário Leva mais um operário: Sou eu que vou trabalhar Antigamente eu não tinha juízo Mas resolvi garantir meu futuro Vejam vocês:

Sou feliz, vivo muito bem

A boêmia não dá camisa a ninguém É, digo bem.

Essa e outras canções refletem os efeitos da legislação que reconhecia o direito dos trabalhadores, sendo seus compositores estimulados pelo DIP. No ano seguinte, Ataulfo Alves e Felisberto Martins lançaram o samba “É Negócio Casar”, no qual também fazem a apologia do enquadramento do trabalhador, atentos, certamente, às oportunidades de sucesso com uma canção de forte apelo popular:

Veja só...

A minha vida como está mudada Não sou mais aquele

Que entrava em casa alta madrugada Faça o que eu fiz

Porque a vida é do trabalhador Tenho um doce lar

E sou feliz com meu amor

O Estado Novo Veio para nos orientar No Brasil não falta nada Mas precisa trabalhar Tem café, petróleo e ouro Ninguém pode duvidar

E quem for pai de quatro filhos O presidente manda premiar... [breque] É negócio casar.