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CAMPONESES COMO ESCRAVOS?

No documento O Roubo da História - Jack Goody (páginas 193-200)

SOCIEDADES E DÉSPOTAS ASIÁTICOS: NA TURQUIA OU NOUTRO LUGAR?

CAMPONESES COMO ESCRAVOS?

Um argumento europeu é que a força de trabalho na Turquia era bem diferente do Ocidente, em que a escravidão evoluiu para a servidão feudal, porque o campesinato sempre permaneceu em um estado mais servil. Mas será que era realmente assim? Os camponeses podiam ser comprados e vendidos como bens móveis? Não tinham direitos de parentesco? Em Porte, houve períodos de governos fortes e centralizados, mas ver os camponeses turcos como "escravos" do sultão é tomar retórica por realidade. De fato, a agricultura otomana era fundada em arrendamento de terras sob o que ficou conhecido como sistema cift-hane. Esse sistema de trabalho para famílias camponesas é analisado pelo historiador turco Inalcik em comparação ao trabalho de Chayanov sobre a Rússia. Inalcik afirma que o mesmo modelo

geral serve para toda a Europa. Esse tipo de arrendamento familiar era tão importante quanto as guildas o eram para as cidades turcas. Ambas eram ativamente mantidas pela burocracia de Estado, com inspeções sistemáticas. Em outras palavras, demográfica, econômica e socialmente, os sistemas eram comparáveis. A unidade da propriedade familiar consistia de um casal, uma certa área de terra (5 a 15 hectares), e um par de bois. A insistência ideológica da posse da terra pelo Estado era um artifício para manter esse sistema e para proteger o camponês da divisão, invasão ou excesso de exploração. A proteção do Estado era também importante uma vez que essa propriedade constituía a unidade fiscal básica.

O Estado protegia seus agricultores e pastores por razões fiscais, garantindo a sua sobrevivência. Camponeses e nômades podiam ser assentados em novas terras conquistadas em troca de várias obrigações. Como o Estado era incapaz de usufruir todos os serviços do trabalho "feudal", ele convertia alguns em dinheiro. Os impostos eram baseados na propriedade familiar ("uma unidade legalmente autônoma"), sistema presente no último período de Roma e que persistiu depois de sua queda. A função do Estado era de fato pouco diferente do eminente poder do qual estavam investidos os governantes nas sociedades européias que os habilitava a taxar, recrutar e julgar. Os

camponeses eram tanto "dependentes como livres", como a maioria dos arrendatários em qualquer lugar, e protegidos pelo governo central contra exageros dos nobres ou dos coletores de impostos.

Assim, a questão da posse da terra otomana é muito mais complexa do que julgam os que caracterizam a Turquia como Estado despótico num modelo asiático, visão subscrita, não apenas por autores marxistas, mas presente de forma geral numa visão européia em que o Oriente é o "outro". Como era essencialmente um Estado conquistador, foi a conquista que estabeleceu os direitos totais da propriedade da terra (miri), mas persiste uma controvérsia: se esses direitos estariam legalmente garantidos pela umma (do árabe, nação), comunidade dos fiéis, ou pelo sultão como seu representante. De fato, como vimos, os conquistadores deixavam as comunidades de camponeses nativos no local, simplesmente atuando como coletores de tributos. O Estado assumiu "o domínio eminente" e, como seu programa de contínuas conquistas requeria um exército, precisou dos impostos advindos da terra.

"A terra e o camponês devem pertencer ao sultão", lembra um provérbio persa. No entanto, os direitos implicados na palavra "pertencer" têm de ser entendidos com cuidado. De fato, o código de leis civil turco era intimamente ligado às práticas romano-bizantinas. Como na lei romana, direitos sobre a terra consistiam "de

domínio eminente" ("posse"), possessão e usufruto, sendo os dois últimos confiados aos camponeses de várias formas. Apesar de não ser uma transação fácil, sob certas circunstâncias, as terras do Estado podiam ser vendidas pelos camponeses; nesse caso, tinham de estabelecer "posse absoluta" sob a lei islâmica. Como na Europa, domínio eminente significava somente o direito de controle legal básico, a "posse pura" (mulk mahz) podia ser estabelecida e o camponês usava essa possibilidade para transferir terras para fundações religiosas; nesse contexto, Inalcik emprega o termo propriedade alodial, embora, como em todo lugar, essa propriedade fosse sujeita a maiores controles.

O camponês também podia usar seus direitos para propósitos comerciais. Em alguns casos, particularmente de waaf, isto é, terras doadas e alodiais, "os camponeses armazenavam grande quantidade de trigo extra que vendiam para exportação para mercados distantes em centros urbanos do império e na Europa. Em outras palavras, eles estavam conectados ao mercado e à lavoura comercial - algodão, gergelim, linhaça e arroz. Direitos privados de posse dessa espécie eram sancionados pelas leis islâmicas, um fato que um Estado islâmico não podia ignorar; "o regime da lei" protegia direitos sobre a propriedade além de muitos outros. Tensões entre a autoridade secular e a religiosa significavam que os direitos dos camponeses —

e artesãos - eram defendidos das pesadas imposições impostas por qualquer um deles. De fato, no Império Otomano como em outros lugares, sempre havia uma tensão entre o Estado e a Igreja, entre a autoridade do sultão e a do quadi, constituindo um tipo de "soberania compartilhada" que tem sido vista como uma característica exclusiva do feudalismo europeu, como vimos no capítulo anterior. Os interesses do Estado e da Igreja não eram sempre absolutamente idênticos, permitindo um espaço de manobra na cidade e no campo, assim como ocorria na Europa.

Apesar de suas abordagens materialistas, muitos escritores marxistas se concentraram em direitos altamente abstratos (em vez de práticos), usando as categorias amplas e exclusivas de propriedade do Estado, posse comunal ou individual. No entanto, como Henry Maine enfatiza, em todas as sociedades encontramos uma hierarquia de "propriedades" de terra, com cultivadores individuais (ou suas famílias) investidos de alguns direitos legais, outros direitos reservados para grupos maiores de parentes e amigos, outros para um senhorio local e outros ainda para níveis políticos mais inclusivos. Há muitas variações dos direitos legais em diferentes níveis e é um erro ver todos os direitos locados em um só nível em qualquer sociedade. Na esfera da agricultura, em que a maioria dos indivíduos vivia, havia considerável diferenciação de direitos ligados

aos instrumentos e métodos de cultivo, especialmente se o cultivo praticado era seco ou molhado (irrigado), se com arado ou enxada, ou se tinha caráter temporário ou permanente; e havia outras diferenças mais nuançadas. Havia diferenciação com respeito aos direitos sobre a terra. A complexidade dos direitos otomanos e a superficialidade da visão européia anterior são bem abordadas num recente estudo sobre a posse da terra (no caso o feudo militar) em uma jurisprudência islâmica (Hanafite) no Egito dos mamelucos aos otomanos. A "hierarquia dos direitos", ainda que de distribuição diversa da da Europa, é igualmente complicada, tanto na prática quanto no curso do debate conduzido por juizes, embora haja pouca teorização sobre essas matérias na ideologia política ou especulações sobre sua origem nebulosa. Os debates desenvolveram-se em torno da natureza desses direitos e foram encaminhados por profissionais da lei altamente sofisticados. Suas conclusões influíram em questões públicas, especialmente quando as questões foram a julgamento, mas parte do debate é uma tentativa de formular por escrito as complexidades da vida social com relação à propriedade. Deve ser acrescido que, diferentemente do que aconteceu com grande parte do pensamento legal europeu, o advento do islamismo e a mudança de regime não anularam direitos existentes, apesar de terem imprimido certa reorganização, como sem

dúvida aconteceu em muitas outras situações de "conquista".

Além dos territórios camponeses, deu-se garantias de terra para os militares e administradores como pagamento por serviços específicos. Argumentou-se, "de forma convincente", que, já que era revogável, o termo arábico iqta deveria ser traduzido como "concessão administrativa" em vez de feudo. No entanto, os conceitos são muitos próximos e, assim como sistema chinês, que foi descrito como senhoria! (e como "feudalismo burocrático" por Needham), precisam ser examinados à luz de uma "grade" sociológica em vez de basear-se exclusivamente na experiência européia. Quando isso é feito, mesmo hipoteticamente, a situação pode ser vista como bem mais próxima da Europa do que muitas teorias admitem. De fato, as condições existentes no Oriente Médio islâmico ao tempo do avanço turco têm sido recentemente comparadas às da Europa antiga. Na época da morte de Saladino, em 1193, o regime lembrava uma "monarquia ligada por laços de suserania e clientelismo, dependentes de lealdades, ameaçados quando o suserano de senhores subordinados era fraco".

A agricultura não podia jamais ter permanecido em um nível de pura subsistência; ela tinha de produzir excedente. Istambul era uma cidade enorme, maior do que qualquer uma do resto da Europa, e suas provisões eram de grande

preocupação para os dirigentes otomanos, como havia sido para seus predecessores cristãos e romanos. A maior parte dos grãos vinha do norte da Criméia em que a agricultura comercial havia se desenvolvido em imensa escala, a ponto de também prover cereais para Veneza. No entanto, setores da região produziam cereais para a cidade enquanto a maior parte da área ao redor da capital era destinada à criação de gado e ao cultivo de frutas e vegetais. Os camponeses nunca ficavam restritos à produção de subsistência; comércio e mercado eram sempre relevantes. Istambul estava em uma posição similar a muitas cidades na costa norte do Mediterrâneo sob o regime romano, supridas pelo sistema conhecido como "annona" (uma forma de "esmola"). De muitas formas, as cidades eram comparáveis com as do Ocidente e do Oriente; a Turquia era parte do mundo mediterrâneo, no entanto, todos os grandes centros urbanos tinham problemas com abastecimento, com freqüência feito pelos camponeses.

COMÉRCIO

Se a agricultura se encontrava basicamente numa posição semelhante à do resto da Europa, o mesmo ocorria com o status do comércio e o das cidades. O comércio era tanto público quanto privado, requerendo uma burguesia que não estava totalmente sob o controle despótico,

No documento O Roubo da História - Jack Goody (páginas 193-200)