• Nenhum resultado encontrado

RELIGIÃO E A "ATENAS NEGRA"

No documento O Roubo da História - Jack Goody (páginas 107-117)

A INVENÇÃO DA ANTIGÜIDADE

RELIGIÃO E A "ATENAS NEGRA"

Parte da solução para o problema geral da cultura grega é fornecida por estudiosos que partiram não da singularidade da sociedade clássica, mas do estabelecimento de conexões e continuidades com o Egeu e com o Oriente Médio. Isso foi feito particularmente no caso do Egito e do sul do Levante no trabalho de Bernal ou para a Mesopotâmia e o norte do Levante em outras pesquisas. Aumentar o papel da Grécia, subestimando sua atividade mercantil e sua economia de mercado, significa negligenciar os contextos mais amplos dos feitos gregos, seus contatos com a Fenícia e o Egito, juntamente com sua importância como comerciantes nos mares que os rodeavam, no Mediterrâneo oriental e no mar Negro. Essas são as mais importantes afirmações de Bernal em Black Athena.

Bernal refere-se à interpretação dominante da história cultural da Grécia Antiga como "modelo ariano". Essa interpretação se apóia na invasão de falantes de língua indo-européia, ou numa variante mais inclusiva, de língua indo-hitita. Essa leitura teve profundas conseqüências na história européia, afastando-a da de seus vizinhos, e ocasionou a rejeição da influência das línguas semitas (e das afro-asiáticas, família maior a que essas línguas pertencem) das praias orientais do Mediterrâneo. Esse modelo é orientado pelo desejo de subestimar as conexões não só com a Fenícia mas com o Egito, que, segundo ele, fez a maior contribuição para a civilização grega, como indicado em seu trabalho mais importante. Segundo Bernal, o modelo ariano produziu uma "história da Grécia e suas relações com o Egito e o Levante conformadas pela visão do século XIX e, especificamente, por seu racismo sistemático". Bernal rejeita essa abordagem em favor do que ele chama de "um modelo antigo revisado", que aceita histórias antigas de colonização egípcia e fenícia da Grécia. Aceita, em outras palavras, que a Grécia foi influenciada pelos contatos com o Mediterrâneo oriental, o que afetou sua língua, sua escrita, e sua cultura de modo geral, como Heródoto havia originalmente sugerido (daí o "modelo antigo").

Um dos problemas com a concepção de Bernal é seu argumento de que a mudança de ênfase do modelo antigo para o ariano acontece somente no século XIX com o crescimento do racismo e do anti- semitismo. Certamente esses sentimentos se

fortaleceram naquele tempo, com a dominação européia do mundo após a Revolução Industrial. No entanto, Bernal vê o aparecimento dessas atitudes como um novo desenvolvimento ligado à emergência da filologia indo-européia nos anos 1840, o que produziu uma "relutância extraordinária" em ver qualquer conexão entre grego e as línguas não indo-européias.

Entretanto, a meu ver, a tendência para rejeitar conexões orientais remonta a problemas mais gerais de "raízes" e etnocentrismo, agravados pela expansão do Islã a partir do século VII, às derrotas nas Cruzadas e à perda cristã de Bizâncio. Naquele tempo, a oposição entre Europa e Ásia tomou a forma de uma oposição entre Europa cristã e Ásia islâmica, que herdara os estereótipos mais antigos de "Europa democrática" e "Ásia despótica". O Islã era tido como uma ameaça para a Europa, não somente militar, o que cedo ficou claro no Mediterrâneo, mas também moral e ética. Maomé é colocado por Dante no oitavo círculo do inferno. Num nível mais amplo, o etnocentrismo nos separa dos outros e ajuda a definir nossa identidade. Mas é um mal guia para história, especialmente para a história mundial.

Uma outra razão por que Bernal me parece equivocado localizando tardiamente o desenvolvimento de atitudes etnocêntricas é porque ele reconhece que a "fonte" da Renascença e do humanismo foi a "literatura clássica". Naquele tempo, o pensamento grego e romano foi privilegiado sobre todos os outros e proveu o

humanismo "com muito da sua estrutura básica e método". As possíveis ligações com o Oriente Médio, com as culturas semitas e afro-asiáticas, incluindo Cartago, foram colocadas de lado, como a influência do Islã, que, no tempo da Renascença, já estava presente na Europa, de um modo ou de outro, há muitos séculos. A Antigüidade provou ser um contraste refrescante para a cristandade medieval, e Antigüidade era Grécia e Roma, cujos escritos se podia ler.

Bernal, por outro lado, pensa que há paralelos suficientes entre, por exemplo, religião e filosofia para afirmar que a religião grega é basicamente egípcia e foi o resultado da colonização. Algumas das evidências vêm das comparações lingüísticas; no entanto, minha pouca experiência em filologia das línguas africanas sugere que essas comparações são freqüentemente tênues demais e perigosas para formar a base de conclusões culturais profundas. De qualquer modo, as religiões experimentaram constante invenção e declínio, obsolescência e criação, que as tornam menos úteis para serem aproveitadas como no caso dos cultos ao boi a que Bernal atribui tanta importância. Qualquer grupo de criadores de gado é potencialmente candidato a esse tipo de culto; porém, esses cultos falham de tempos em tempos e podem então ser substituídos por novos. Eu daria, portanto, mais espaço para o que os antropólogos chamaram de invenção independente nessa esfera do que, penso, sua hipótese parece permitir. Isso não acontece em todas as áreas; a

influência dos hieróglifos egípcios na escrita micênica é em geral aceita, assim como a influência da coluna egípcia na arquitetura grega. Mas, com cultos religiosos, a invenção é freqüentemente independente.

É claro que as influências são mútuas. O Egito foi influenciado por sua constante comunicação com o Levante e com o recrutamento de soldados e marinheiros da regiãjo. Durante o período dos hicsos, os governantes eram estrangeiros que se estabeleceram em Avaris (Tell al-Dab'a) no Delta e exerciam uma vigorosa política de comércio com a Ásia, com acesso às minas turcas em Serabit-el- Khadim e ao comércio por meio de caravanas de burros. O Egito não tinha esquadra de mar nessa época e deve ter apreciado a proteção cretense. Muita cerâmica era importada; fragmentos de pintura de parede cretense foram encontrados em Avaris mostrando a relação com a pintura de parede thera em Akrotini. Durante aquele período, os "contatos entre Knossos e o Delta foram mais constantes [...] do que antes".

O tema de possíveis contribuições egípcias para a religião eurasiana foi abordado por Freud em sua monografia Moses and Monotheism (1939) (Moisés

e o Monoteísmo). Freud afirma que Moisés era um

egípcio que absorveu seu monoteísmo do faraó "herético" Akenaton. Não posso j ulgar a plausibilidade dessa influência. Acrescentaria, no entanto, que a probabilidade de uma troca para o monoteísmo, e depois, um retorno, como alguns protestantes alegam ter acontecido na cristandade,

é uma possibilidade sempre presente em muitas sociedades humanas como o resultado de um mito da criação que enfatiza a singularidade do processo. Uma razão é que a criação é vista como um ato único (freqüentemente de um deus criador) enquanto divindades menores tendem a se proliferar como intermediárias.

O argumento de Freud é que "o estatuto do império do faraó foi a razão externa para o

aparecimento da idéia do monoteísmo". A

centralização política levou à centralização religiosa. No entanto, muitos missionários e antropólogos registraram senão monoteísmo, pelo menos a existência de uma divindade suprema, em culturas mais simples. Uma divindade que é um Deus Criador e que criou divindades menores. Na África, ele se torna o deus otiosus, que é raramente adorado, embora o fato de que tenha criado o universo aumenta a possibilidade de retornar a uma existência mais ativa. Nesse contexto, o aparecimento do monoteísmo não é difícil de entender.

Apesar de algumas reservas, não duvido da exatidão das afirmações mais importante de Bernal, que são:

(a) Nessa negligência, fatores "raciais" tiveram um peso significativo. No entanto, a origem dessa negligência é muito mais antiga do que Bernal sugere e está ligada a noções de superioridade tanto cultural como racial;

(b) Conexões entre a Grécia antiga e o Oriente Médio têm sido fortemente negligenciadas; a marginalização do papel da Fenícia e de Cartago é um exemplo claro desse processo. A religião de Cartago foi influenciada tanto pela Grécia como pelo Egito.

Bernal não está sozinho ao tentar estabelecer um grau mais alto do que normalmente se reconhece de aspectos comuns entre as sociedades mediterrâneas. A insistência em estabelecer uma conexão entre os povos de língua semita da costa asiática e os gregos está no centro do trabalho de um certo número de eruditos judeus semitas, notadamente Cyrus Gordon. Ele fez um estudo pioneiro de gramática ugarítica, analisando essa recém-descoberta língua semita a partir de tábuas encontradas no norte da Síria, que fornecem evidência dos primeiros escritos alfabéticos. Gordon tentou conectar o assentamento fenício de Ugarite com Creta e, em 1955, publicou uma monografia intitulada Homer and the Bible, concluindo que "as civilizações grega e hebraica eram estruturas paralelas construídas sobre as mesmas fundações do Mediterrâneo ocidental". Ao tempo de Gordon, essa afirmação foi considerada herética por muitos. Desde a Segunda Guerra Mundial, entretanto, a rejeição anterior da influência fenícia na Grécia foi modificada. A idéia de assentamentos fenícios não simplesmente na ilhas, mas também em Tebas, no continente, tornou-se mais aceitável; e admite-se que a

influência sobre a Grécia da Idade do Ferro tenha começado no século X a.e.c.

Os fenícios viajavam pelo Mediterrâneo. Eram uma comunidade costeira que teve de buscar oportunidades de comércio, especialmente de metal, e desenvolveu a escrita como uma forma de registro de transações. É possível entender muito bem como os fenícios se tornaram comerciantes, tanto de madeira como de metais. As montanhas do Líbano virtualmente descem ao mar até Sidon. Mesmo Tiro tem uma faixa limitada de costa. Então, o cedro do Líbano era trocado com o Egito para a construção de barcos (o Egito não tinha madeira) e com Israel para a construção de templos, em troca de grãos. Eles viajavam pelo Mediterrâneo para Cartago, Cadiz e mesmo para Cornuália, em busca de metal, e particularmente para os dois últimos lugares à procura de estanho para produzir o bronze. Um resultado de suas viagens foi a importantíssima colônia de Cartago, na Tunísia de hoje. Foram mesmo tidos como guias de uma expedição egípcia que teria circunavegado a África por volta de 600 a.e.c. De qualquer modo, eram grandes navegadores e ricos comerciantes, não somente no Egeu, mas em todo o Mediterrâneo. Enquanto alguns acadêmicos do século XIX, como Beloch, negam veementemente a presença de fenícios no Egeu antes do século VII a.e.c., evidências arqueológicas indicam "relações comerciais bem- sucedidas entre o mundo egeu e a costa oriental do Mediterrâneo durante o segundo milênio" e durante os períodos cretense e

micênico. De fato, o autor Jidejian afirma que a história de Cadmo "reflete uma antiga penetração ocidental de semitas na Grécia continental". De acordo com Heródoto, Cadmo, filho do rei de Tiro, foi mandado à procura de sua irmã, Europa, e acabou fundando a cidade grega de Tebas. Foi o fenício Cadmo que levou o alfabeto para a Beócia na Grécia. Há histórias de assentamentos fenícios em Rodes e outros lugares. A tradição de que Cadmo fundou a dinastia de Édipo persistiu no mundo antigo. Portanto, os fenícios certamente tinham muitos contatos exercendo influência não somente sobre o Oriente Médio antigo, mas também sobre o que nós chamamos de mundo clássico do qual eles eram parte essencial.

No trabalho da maioria dos classicistas, a centralização na Grécia e Roma subestimou não só a contribuição da Fenícia para a emergência do alfabeto (750 anos antes da Grécia no sentido consonantal) como também a das produções literárias em línguas semitas. Além disso, empurrou Cartago, inicialmente uma comunidade comercial fenícia e mais tarde um império considerável no Mediterrâneo Ocidental, para as margens da história. E não simplesmente para as margens da história, mas sim para o status de "bárbaros", em parte por causa da insistência romana sobre suas práticas de sacrifício de crianças, questão que levanta muitas dúvidas. Em qualquer caso, não é claro por que isso seria mais bárbaro do que certos eventos no Antigo Testamento, como o sacrifício de Isaac, ou ainda a

exposição de filhos ilegítimos em Roma, ou certas práticas espartanas que acabavam justificadas como disciplinares. O que é claro é que uma civilização altamente completa, rival e antecessora de Roma, foi excluída da categoria Antigüidade, do mesmo modo que as sociedades do Oriente Médio. E isso mesmo sendo contemporânea e contra-parte primeiro da Grécia e, a partir do século V a.e.c., de Roma, quando a difundida emporia foi reunida.

Um problema do nosso conhecimento sobre a contribuição de Cartago e da Fenícia à cultura do Mediterrâneo é que temos muito pouco documentos escritos deles. Os fenícios evidentemente guardaram documentos de várias formas, desde que inventaram o alfabeto. Além do mais, Flávio Josefo mais tarde escreveu que "das nações em contato com a Grécia, os fenícios foram a que fez o maior uso da escrita, tanto para registrar a vida cotidiana como para a comemoração de eventos públicos". Ele comenta ainda que, "por muitos anos, o povo de Tiro guardou seus registros públicos, compilados e preservados cuidadosamente pelo Estado, de eventos memoráveis de sua história e de suas relações com nações estrangeiras". Nenhum desses documentos sobreviveu. Eles devem ter sido escritos em papiros perecíveis importados do Egito e não em tabletes, mais duráveis. Inscrições fenícias, curtas na maioria, foram encontradas em todas as cidades costeiras, mas pouco ou nada resta, a menos que estendamos nossos horizontes ao judaísmo.

É por isso que, apesar de terem sido parte importante do mundo antigo, os fenícios não deixaram a herança literária ou artística transmitida pelos gregos e romanos. Até onde a herança literária vai, as bibliotecas de Cartago foram destruídas ou desapareceram com a destruição da cidade pelos romanos em 146 a.e.c. Há evidências de seus conhecimentos agrícolas, não somente no avançado cultivo que praticavam, mas também na tradução para o latim de um livro sobre o assunto.

A rejeição do papel dos semitas no Mediterrâneo oriental, portanto, contradiz as evidências da presença na região de homens do mar fenicianos. Os fenícios habitaram um número de "cidades- Estado" famosas (como são descritas) ao longo da costa do Levante principalmente na região do atual Líbano, desde o porto de Acre em Israel/Palestina até Ugarite, na Síria.

CONCLUSÃO:

No documento O Roubo da História - Jack Goody (páginas 107-117)