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O APRIMORAMENTO DO COMÉRCIO E DA MANUFATURA

No documento O Roubo da História - Jack Goody (páginas 156-165)

TRANSIÇÃO PARA O CAPITALISMO OU COLAPSO DA EUROPA E A DOMINAÇÃO

O APRIMORAMENTO DO COMÉRCIO E DA MANUFATURA

Os historiadores da medicina desvendaram o primeiro estágio na apropriação da ciência árabe pelos médicos carolíngios da Europa, uma aquisição que refletiu o restabelecimento do comércio de longa distância no Mediterrâneo e que afetou mais do que a economia. Isso foi

parte de um renascimento mais amplo, chamado de Renascença Carolíngia, que envolveu não somente um incremento do sistema educacional e na construção de escolas, como ainda no desenvolvimento do comércio e de manufaturas: "um olhar sobre a importação de seda nos permite uma quantificação ainda que esporádica". O comércio começou realmente a crescer na Europa com empreendimentos recíprocos com o Levante no final do século viu, mas somente alcançou um nível significativo por volta dos séculos X e XI "pela aceleração do comércio entre Veneza e o sul da Itália de um lado e os povos do Oriente Médio do outro". O comércio mediterrâneo com o Ocidente então foi reaberto (ele havia continuado entre os portos do leste e do norte da África), um reflorescimento que alguns viram como as reais "origens" do capitalismo. E o foi, em grande parte, para o Ocidente medieval, pois a expansão do comércio significou o restabelecimento de contatos com os grandes entrepostos do Mediterrâneo oriental, como Constantinopla e Alexandria, bem como com muitos centros menores. Nenhum deles - onde uma economia mercantil há muito se estabelecera tinha sofrido o mesmo tipo de colapso que as cidades do Ocidente. Esses contatos pavimentaram o caminho para a lenta recuperação da Europa, trazendo o benefício de produtos de luxo, maior variedade de produtos para o dia-a-dia, melhoramentos tecnológicos,

conhecimentos clássicos e influências acadêmicas e literárias.

Comerciantes dependentes trabalhavam para as grandes casas religiosas e grandes Estados no período carolíngio; comerciantes independentes atuavam na economia urbana. Assim, o comércio possibilitou o restabelecimento de muitas cidades na Itália, que deram um foco diferente ao coração da chamada "economia natural" na Europa carolíngia em que o feudalismo se desenvolvia. As cidades na Europa ocidental tinham sofrido um colapso significativo, o que não acontecera no Oriente, e agora, estimuladas pelo comércio oriental, essas cidades renasciam. O comércio na Europa então retomou seu crescimento no final do século VIII, não somente na rota norte do Báltico, através da Rússia e para o Irã, mas também no Mediterrâneo, em que especiarias (e remédios), incenso e sedas começaram a ser trocados por peles, lã, estanho, espadas francas e, especialmente, escravos. Os escravos tornaram- se um dos mais importantes itens de exportação da Europa, continuando até o período turco. Desse modo, "os pequenos mundos europeus tornaram-se ligados aos mundos maiores das economias mulçumanas". O "crescimento e a consolidação econômica do Islã mudaram a natureza de uma economia européia emergente".

Na Inglaterra medieval, o comércio de além-mar dependia muito da produção de lã e tecidos e de

sua exportação para a Europa, e a maior parte do lucro não vinha da manufatura, mas das atividades associadas ao comércio de longa distância e à usura. A indústria têxtil tornou-se de importância central para o crescimento da economia européia e, principalmente na Renascença, para a recuperação e expansão das atividades culturais. A primeira indústria têxtil estabelecida foi a de lã local. A seda veio em seguida, inicialmente importada e, mais tarde, manufaturada localmente. Por último, veio o algodão, começando por ser importado, em seguida tecido na Europa, constituindo a verdadeira base da Revolução Industrial na Inglaterra. Numa forma primitiva de produção industrial, a seda se espalhara da China para o mundo islâmico se enraizando em Bursa na Turquia. Lá também, como no Ocidente, o algodão da índia era muito mais apreciado e sua importação em massa deu margem a reclamações, semelhantes às causadas pela seda, sobre o montante de moedas requeridas para sua compra. Isso porque o comércio oriental não era uma atividade de "vendedores

ambulantes" como alguns sustentam, mas de

importação e exportação em larga escala, um empreendimento comercial importante. A importação massiva eventualmente conduziu à produção local de algodão tanto em Bursa quanto Alepo, que imitaram desenhos indianos, como aconteceu com os famosos azulejos turcos de Iznik, copiados dos chineses.

A lã foi primeiramente exportada ao natural, mais tarde como tecido, tornando-se finalmente parte importante no comércio com o Oriente Médio. Tecidos de lã foram o setor que mais cresceu nas manufaturas do Ocidente. Aí a produtividade "provavelmente mais que triplicou com [...] o tear horizontal de pedal". A produção de tecido cresceu grandemente com este novo tear, cuja forma mais antiga apareceu na Europa no século X, sendo há muito conhecida no Oriente: desde o período Shang na China.

Esse aparelho tinha um complexo sistema de torcer o fio e aparentemente deu a base, mais tarde, em Lucca e depois em Bolonha, para as máquinas de tecer seda movidas à água.

A produção de seda passou por considerável desenvolvimento na China, bem antes dos processos mecânicos se desenvolverem na Itália, e mais tarde, com outros tecidos, na Bretanha. Elvin descreve uma grande máquina movida à água, de fiação de cânhamo, que foi baseada numa máquina para tecer seda usada no norte da China durante o período Sung. Era operada por um pedal, puxando um número de fios de um tubo de água fervendo em que os casulos de bichos-da-seda eram imersos. No século XIII, a máquina foi adaptada para o fio de cânhamo e passou a ser movida por tração animal ou água. Elvin a compara com as máquinas de linho e seda do final do século XVII e início do XVIII encontradas em ilustrações na

semelhanças são tão impressionantes que "suspeitas de uma modernização da tecelagem de seda de origem chinesa, possivelmente via

filatorium italiano, são quase irresistíveis". Em

outras palavras, não somente a produção de seda, mas também sua mecanização, começaram na China e abasteceram a manufatura de têxteis na Europa, que era caracterizada por um processo de "substituição de importação" tanto para seda como para algodão.

O crescimento na indústria têxtil foi central para o renascimento do comércio na Europa, tanto na exportação de tecidos de lã como na importação de seda, feitas freqüentemente com o Oriente Médio. Os produtos de ambas acompanhavam o movimento em direção à mecanização e mesmo industrialização. Na Europa, o uso de maquinário hidráulico na indústria têxtil começou na Itália, em Abruzzi, distrito de lã, no século X, em que a água era usada para operar os grandes martelos

que socavam o feltro da lã, processo que

também deve ter vindo da China. A cidade de Prato, adjacente à Florença (sua produção nem sempre foi marcante no exterior), dependia dos canais romanos e moinhos movidos à água para a lavagem e processamento da lã, bem como para o funcionamento das máquinas hidráulicas. A indústria têxtil em Prato surgiu no século xii, baseada nas fartas águas do rio Bisenzio. O lugar era adequado para processar a lã por causa da disponibilidade de argila de pisoeiro na

área. No início daquele século, encontramos registros de roupas de lã sendo secas ao longo dos canais em volta dos muros. No século XII, o desenvolvimento da manufatura, que ocorrera por toda parte na Eurásia, levou à troca da produção doméstica pelo que é descrito como produção industrial. O ativo comércio de roupas significava a proliferação de cambistas na cidade, embora a atividade bancária integral tenha ocorrido somente no final do século. Por volta de 1248, os comerciantes de lã e pannaioli organizaram suas próprias corporações, que incluíam alguns imigrantes de Lucca e de algumas regiões produtoras de lã da Lombardia. Em 1281, um comerciante de Prato já estava comercializando seda e arminho em Pêra, o bairro franco de Constantinopla organizado pelos genoveses, pois o comércio de lã e seda era central para as transações entre Europa e Oriente Médio. Pelo fim do século XII, os comerciantes visitavam as Feiras de Champanhe e, no século XIII, a corte papal de Avinhão. No final desse século, havia outro comerciante de Prato trabalhando como arrecadador de impostos para o rei francês, o que inspirou Bocaccio a escrever o episódio que

abre o Decameron (1358). Bancos e

manufaturas de têxteis eram, com freqüência, associados, tanto aqui como em outros lugares, na Índia, por exemplo.

Por volta do século XIII, havia 67 moinhos em Prato usados para processar grãos e têxteis. A

grande expansão da manufatura de lã naquela cidade é creditada a Francesco di Marco Datini (1335-1410) cuja estátua se encontra na praça em frente à prefeitura. Datini deixou grande quantidade de cartas e livros contábeis que foram descobertos dentro das paredes de sua casa e forneceram um índice da extensão dos registros mercantis. Como não tinha filhos, deixou sua fortuna para uma instituição de assistência aos pobres. Em suas viagens, foi para Avinhão quando a corte papal (um grande mercado de têxteis) se transferiu para lá. Retornou para construir uma fábrica operando todas as fases de produção incluindo tingimento. A indústria têxtil e o comércio associado desenvolveram-se ao mesmo tempo que a contabilidade na Itália - um precisava do outro. Assim, Prato viu-se povoada por contadores, advogados e comerciantes, bem como por mercadores bem-sucedidos como Datini.

Os mercadores de lã não somente manufaturavam têxteis, mas também tingiam e finalizavam a lã e o tecido de outros locais, por exemplo, da Lombardia e da Inglaterra, em que a melhor lã era produzida. Essas atividades de comerciantes e banqueiros, trabalhando especialmente com o comércio da lã, receberam uma homenagem com o nome de Lombard dado a uma rua na City de Londres. Esses foram os primeiros banqueiros internacionais naquela cidade. A lã inglesa alimentou o comércio

continental e levou à considerável prosperidade de East Anglia, com suas fabulosas "igrejas de lã" e o lar do assento de lã onde o chanceler de Exchequer (o ministro do erário público inglês) senta-se tradicionalmente. A lã era exportada para Flandres, principalmente para Bruges, onde era usada por tecelões flamengos que enriqueceram a cidade com a atividade artística, fazendo avançar a Renascença flamenga no

século XIV. Na Toscana, foi o comércio de têxteis

que criou as bases para os sucessos artísticos da Renascença. Essas atividades começaram

com os pintores (i primi lumi) do final do século XII e XIII,

precisamente no período em que o comércio da lã em Prato evoluía e a contabilidade européia se desenvolvia. Os próprios Medici eram comerciantes têxteis, bem como banqueiros com residência no distrito de lã de Abruzzi perto de Áquila e tinham fortes conexões com Prato, onde construíram a Igreja de Santa Maria delle Carceri perto do castelo.

O ponto crítico no renascimento da economia medieval foi o comércio, incluindo o de longa distância, especialmente no Mediterrâneo, que por sua vez estimulou a produção. "A economia urbana na Idade Média era, em qualquer lugar, associada ao transporte marítimo e ao comércio." Os árabes haviam dominado o mar interior nos primeiros tempos de sua expansão. Mas este estava, em parte, desocupado das

frotas islâmicas no século XI, época da Primeira

através do canal de Gibraltar pela frota italiana. O advento dos turcos alterou essa situação e sua marinha veio a ser um importante fator, pelo menos até a Batalha de Lepanto (1571). O comércio, no entanto, permaneceu como fundamental para a renovação não só da economia mas também do conhecimento e das idéias.

No documento O Roubo da História - Jack Goody (páginas 156-165)