• Nenhum resultado encontrado

A MUDANÇA PARA O FEUDALISMO

No documento O Roubo da História - Jack Goody (páginas 139-146)

TRANSIÇÃO PARA O CAPITALISMO OU COLAPSO DA EUROPA E A DOMINAÇÃO

A MUDANÇA PARA O FEUDALISMO

Não houve transição generalizada da Antigüidade para o feudalismo, exceto no Ocidente e nas cabeças de seus estudiosos. De qualquer modo, mesmo no Ocidente, o feudalismo não apareceu imediatamente após a queda da Antigüidade. Em seu estudo sobre a transição da Antigüidade para o feudalismo, Anderson reconheceu eventos "catastróficos" mais do que "cumulativos" no final do mundo antigo. A regressão na Europa, no entanto, é vista abrindo o caminho "para o avanço dinâmico subseqüente do novo modo de produção originado na sua demolição [da Antigüidade]". Esse novo modo nasceu "da concatenação entre Antigüidade e feudalismo". Segundo ele, faltava o elemento da Antigüidade no mais próximo equivalente do feudalismo fora da Europa, o japonês, que era similar ao europeu em muitos outros aspectos. Ao mesmo tempo, Anderson reprova a agricultura romana e estende seus comentários para toda a economia, observando a distância entre os feitos intelectuais e políticos do

mundo greco-romano e "a economia paralisada debaixo deles". De fato, sua "herança superestrutural" sobreviveu, de uma forma conciliatória, por meio da Igreja, que tinha ajudado a destruir a política. A "civilização superestrutural da Antigüidade permaneceu superior ao feudalismo por um milênio - precisamente até a época que passou a se chamar conscientemente de Renascença, para marcar a interveniente regressão". Ele vê a permanência da Igreja como uma ponte nesse vácuo, por ter assumindo a custódia do letramento. Entretanto, foi um

letramento altamente restrito, que

deliberadamente excluía muito do saber clássico. Para Anderson, não foi a "super-estrutura" mas a "infra-estrutura", a economia, que foi vista como progressiva no período medieval. Ele menciona o contraste no mundo clássico entre a economia estática (comparada com a base dinâmica do feudalismo) e a "vitalidade cultural e superestrutural" daquele mundo. Childe também tendeu a descartar a contribuição romana argumentando que "não liberou nenhuma nova força produtiva". Essa visão sustenta que a escravidão largamente usada na agricultura romana inibiu avanços em tecnologia, uma vez que esse tipo de mão-de-obra era mais barato do que máquinas. Para Childe, a escravidão impediu "a expansão da indústria". O "feudalismo", apesar de emergir de um colapso na Europa ocidental, é visto como progressivo em parte por causa da idéia, fortemente expressa pelos historiadores marxistas

tradicionais, de que "o modo escravista de produção levou à estagnação técnica; nele não teria havido estímulo para o crescimento da mecanização". Esses autores preferiram ignorar o fato de que o período viu muitos "aprimoramentos", razão pela qual certas afirmações sobre sociedades escravocratas requerem modificação. Além do mais, o modo de produção escravista não leva automaticamente à estagnação econômica. Apesar do, ou possivelmente por causa do uso de escravos, a agricultura nas villas romanas produziu um excedente, suficiente não só para propiciar uma vida de elevado padrão para a classe alta, mas também vinho, cerâmica, têxteis e móveis para exportar para outros territórios.

Os aprimoramentos não foram necessariamente direcionados para "diminuir o trabalho", pois, como observou Boserup, avanços em tecnologia podem significar mais trabalho e não menos. Se melhoria significa que se pode produzir a mesma quantidade de produtos com um escravo em vez de dois, então havia incentivo para sua adoção. Na Sicília e em domínios cartagineses, grandes propriedades trabalhadas por escravo ou servos eram geridas em "linhas capitalistas científicas". De fato, em toda a Europa, os romanos estabeleceram "formas capitalistas". Isso não é contraditório. Em uma análise da produção escravista de açúcar no Caribe, Mintz e Wolf descrevem o uso inovador de máquinas como "capitalismo antes de capitalismo". Livrar-se da produção escravista foi visto como um

dos efeitos positivos da queda do Império Romano no Ocidente, embora a escravidão não tenha desaparecido por completo. "A noção de Antigüidade é usada somente para Grécia e Roma, como também o modo de produção escravista", mas alguns autores consideram que a escravidão persistiu na Europa durante um período muito mais longo, pelo menos até o "feudalismo" estar estabelecido. Mesmo mais tarde, a Europa esteve profundamente envolvida na captura e venda de escravos para o mundo mulçumano, sendo esse um dos itens mais importantes de exportação. Para outros autores, o modo de produção escravista desapareceu com a Antigüidade e, a partir dessa perspectiva, o feudalismo, como antes a Antigüidade, é visto como um avanço em direção ao capitalismo. Entretanto, essa não é a única interpretação da economia medieval. "Em termos enocômicos", escreve o

historiador da agricultura européia Slicher van Bath, "o sistema senhorial não era muito satisfatório. As pessoas produziam pouco mais que o necessário para seu consumo, o capital não era acumulado e quase não havia divisão de trabalho". Inicialmente pelo menos, houve um declínio na produção, como houve sem dúvida um declínio no saber e na "superestrutura" em geral. A recuperação foi lenta.

Há outras visões positivas da agricultura romana além da de Anderson, mas elas modificam a idéia de um salto progressivo para o feudalismo. Hopkins, que apóia a interpretação de Finley

sobre a economia antiga, afirma que a produção total da agricultura aumentou com a expansão da área cultivada. Nas terras mais densas ao norte, uma aração mais forte, que empregava um grupo de bois, foi utilizada com aiveca e sega de ferro, para afofar o solo em vez de somente arranhar a superfície como os arados do Mediterrâneo. A população também cresceu, assim como o número de habitantes das cidades onde vivia a maioria dos artesãos e pequenos comerciantes. Esse crescimento demandou um aumento na produção de alimentos, bem como na divisão do trabalho e na produtividade per

capita. O aumento da produtividade per capita

foi alcançado no primeiro século da era comum, como resultado da difusão de padrões de produtividade estabelecidos antes em várias partes do Mediterrâneo oriental. Isso ocorreu por causa dos avanços "na ampliação do uso de ferramentas de ferro, dos aprimoramentos de instrumentos agrícolas (por exemplo, prensa de rosca) e da mera existência de manuais de agricultura - indícios da tentativa de racionalizar o uso do trabalho, particularmente o trabalho escravo".

Além da agricultura, outros setores ganharam aumento de produtividade, uma vez que o poder muscular passou a ser "suplementado por alavancas, polias e catracas, fogo, água (moinhos e lavagem mineral), vento (moinhos de vento) e competência técnica". Houve "avanços técnicos" na construção (com o uso do

concreto, por exemplo), em moinhos rotatórios, e o aprimoramento do uso das correntes de vento em fundição de ferro e no transporte - com unidades de produção mais amplas e navios maiores. O uso do ferro, um metal barato porque disponível, ajudou muito no desenvolvimento de algumas formas de mecanização.

O que os romanos apresentavam não era simplesmente "superioridade cultural", no sentido limitado de "alta cultura" e de "superestrutura", uma vez que mudaram a face da Europa com seus edifícios urbanos, viadutos, sistemas de aquecimento, teatros e termas. Também criaram códigos legais, literatura, estruturas de ensino, entre outros. Nada disso teria sido possível sem uma economia florescente. Empregaram trabalho escravo largamente tanto na esfera rural como construindo os vastos conglomerados urbanos — Roma, centros provinciais menores na Bretanha, bem como cidades magníficas como Palmira e Apamea na Síria. Tudo isso foi muito mais do que um sopro em uma infra-estrutura estática. Faz realmente o período feudal parecer menos dinâmico (como alguns declaram) e mais fraco e marginal.

Entretanto, o início da Idade Média mostrou algum desenvolvimento na agricultura. Houve mudanças no uso do arado, embora fossem principalmente meras extensões do que já existia. Além do mais, houve um certo número

de invenções "que foram um grande avanço na era romana. Algumas invenções foram trazidas de outras partes do mundo, mas já havia indícios do sentido técnico que mais tarde seria tão característico da civilização ocidental européia". Ninguém duvida das posteriores realizações técnicas da Europa. No entanto, é difícil conceber como invenções vindas do exterior possam ser vistas como indícios de um sentido técnico da Europa ocidental; essa perspectiva é tipicamente eurocêntrica, expressa aqui na questão tecnológica. "Nós o tivemos mais tarde, portanto o tivemos antes", e o "o" tem uma conotação técnica hipotética, seria um aspecto de nossa herança mental, de nosso modo de ser. De fato, o avanço dessas tecnologias importadas era certamente a prova da inovação de outros povos, especialmente dos chineses. As maiores invenções adotadas naquele tempo, de acordo com Lynn White (1962), foram a espora, a ferradura e o moinho d'água. A espora, de valor militar no início, chegou à Europa vinda dos países árabes, como muitos outros melhoramentos no manejo de cavalos. A ferradura chegou ao mesmo tempo dos novos arreios no século IX, possivelmente provenientes do Império Bizantino. Os arreios melhoraram a tração do cavalo, como as esporas melhoraram a mobilidade. O moinho d'água, usado em fornos chineses desde 31 e.c., apareceram na Europa no final dos tempos romanos, levando água dos aquedutos para as

moendas; o moinho difundiu-se muito lentamente para a Arábia no século IV, e depois também para a Europa ocidental, alcançando a Bretanha no século viu. Na Europa, essas máquinas foram usadas primeiro para triturar milho e somente mais tarde para a extração de óleo, em curtumes, na laminação de metal, no corte de madeira, na pulverização de corantes e, depois do século XIII, na produção de papel. Em inglês, a palavra "moinho" tornou-se um termo geral para qualquer fábrica, como na famosa citação de Blake, "moinhos escuros e satânicos", em que são ícones da Revolução Industrial.

Apesar desses ganhos, a civilização como um todo estava em declínio, como Anderson reconhece. Quanto tempo levou para os teatros e banhos públicos retornarem à Europa ocidental? Quanto tempo para o sistema de educação ter reconhecimento de novo? Quanto tempo levou para o retorno da cozinha sofisticada? Quanto tempo até a arte secular e a literatura fazerem aparições significativas? Quando tudo isso finalmente aconteceu, falamos de Renascença, o renascimento da cultura clássica. Mas foi uma longa espera, pontuada por ressurgimentos periódicos, como nas chamadas "renascenças" do período carolíngio e

do século XII.

O REFLORESCIMENTO CAROLÍNGIO E O

No documento O Roubo da História - Jack Goody (páginas 139-146)