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O REFLORESCIMENTO CAROLÍNGIO E O NASCIMENTO DO FEUDALISMO

No documento O Roubo da História - Jack Goody (páginas 146-153)

TRANSIÇÃO PARA O CAPITALISMO OU COLAPSO DA EUROPA E A DOMINAÇÃO

O REFLORESCIMENTO CAROLÍNGIO E O NASCIMENTO DO FEUDALISMO

O colapso do Império Romano não levou necessariamente ao nascimento do "feudalismo", embora alguns vejam esse sistema já prenunciado nas propriedades agrícolas autônomas da Roma de um período tardio. O feudalismo característico da Idade Média na Europa ocidental, entendido por muitos como único, foi precedido por uma Idade das Trevas. Muitos consideram seu início somente com Estado carolíngio nos séculos VIII e IX, o que Anderson caracteriza como "um real renascimento administrativo e cultural" por todo o Ocidente. No entanto, o maior feito dessa época foi a "emergência gradual das instituições fundamentais do feudalismo sob o aparato do governo imperial".

As grandes propriedades da economia rural feudal carolíngia foram um fenômeno distinto "que expressou e exigiu dinamismo econômico", em que o direito ao cultivo era pago com arrendamento e trabalho. Foi nessas grandes propriedades que "o início da economia européia" se fez. Algumas dessas propriedades eram muito grandes, mas, quase nunca completamente auto-suficientes. De forma que entre os séculos viu e X, houve uma tendência geral "para monetarizar as dívidas das famílias rurais" e participar em operações de mercado. Ao mesmo tempo, algumas propriedades investiram pesadamente em moinhos d'água, embora eles já estivessem mais difundidos no

final da Antigüidade do que se costuma pensar. Depois de incontáveis escavações, uma variedade de arte urbana foi revelada nas propriedades rurais. Algumas delas tinham mesmo seus comerciantes dependentes, por isso o comércio começou a se expandir vagarosamente, sobretudo no norte, assim como a população.

Tanto as "causas" do feudalismo quanto seu ritmo e difusão são objetos de muita discussão relacionada ao período carolíngio. As causas, evidentemente, dependem muito da difusão, se foi "um fenômeno apenas europeu e quando surgiu (ou desapareceu)". Em um importante comentário crítico ao último volume (XIV) da

Cambridge Ancient History, Fowden questiona a

conveniência da periodização que localiza em 600 e.c. o fim da Antigüidade no Ocidente, ou pior ainda, na época de Constantino, em 310, como aparece em edição anterior. Essa última data esquece que a Nova Roma no Oriente "tinha um imperador como também um bispo e continuaria com essa feliz condição por mais oito séculos e meio". De fato, o imperador Justiniano (482-565) "tinha uma visão de um império romano reunificado". Assim, seus sucessores voltaram-se para o Oriente, especialmente depois das invasões mulçumanas que cortaram comunicações com o Ocidente. Fowden insiste que a difusão do Islã tem de ser vista no contexto do judaísmo e do cristianismo como uma "fresca, e mais clara visão do divino"

que estabeleceu um contínuo do Afeganistão até o Marrocos, juntando o sul, leste e oeste do Mediterrâneo. Adotar a data de 600 e.c. seria excluir de qualquer consideração o Islã que então era visto como pertencente a um mundo asiático bem diferente. Seria negligenciar as continuidades em todos os níveis. Então ele conclui que uma data melhor para marcar a mudança seria 1.000 e.c.

Uma tradição no mundo acadêmico francês seguiu na mesma direção, concentrando-se nas mudanças políticas posteriores vistas como radicais (isto é, como uma revolução) ou como graduais (como uma mutação). Essa tradição situa o "feudalismo" mais tarde mesmo do que o período carolíngio, cerca de 1.000 e.c. O feudalismo é descrito por alguns historiadores franceses como uma "ruptura brutal", "uma tempestade social". Outro grupo, porém, critica a noção integral de mudança radical, reivindicando um modelo mais sensível e gradual. Rejeita a existência de um período particularmente violento entre os relativamente estáveis regimes anteriores a 1.000 e posteriores a 1.200, em especial um que conduza a uma mudança dramática na economia, e afirma não haver razão para aceitar a tese de que a violência senhorial tenha sido um instrumento pelo qual a classe governante estabeleceu uma nova forma de servidão. No entanto, para ambos os grupos, o feudalismo é ainda percebido como um prelúdio essencial

para a modernidade européia. "A feudalização do século XI é vista como uma precondição necessária para o nascimento do Estado moderno".

Um precursor, porque a modernidade não é vista como característica do período anterior. No emergente "modo de produção feudal", "nem o trabalho nem os produtos do trabalho eram considerados mercadoria"; o modo de produção era dominado pela terra e pela economia

natural. Outro autor escreveu que "a queda do

Império Romano e a transição da Antigüidade para a Idade Média podem ser vistas, de um ponto de vista econômico, como uma recaída de uma economia monetária para uma economia natural". Entretanto, diz ele, a economia natural acabou desenvolvendo um aspecto urbano.

O que constitui uma "economia natural" está longe de ser óbvio, mas é claro que essa explicação é direcionada exclusivamente para a Europa ocidental, dependente do colapso e retorno de cidades (em outros lugares, como vimos, havia maior continuidade). Nessa visão, o Oriente, cuja história foi considerada tão diferente, não teria tido Idade Média (o que teriam eles tido nesse período?) e nem "feudalismo", porque as cidades continuaram a florescer como também a manufatura e o comércio, embora com ênfases diferentes do Ocidente. Isso valeu para o Mediterrâneo oriental também. As cidades e mesmo as cidades-Estado continuaram a existir, na Síria,

por exemplo, até o tempo das Cruzadas. Mesmo na Itália, "a civilização urbana do fim da Antigüidade nunca soçobrou completamente, e a organização política municipal - fundindo-se com o poder eclesiástico [...] floresceu a partir do século X".

Um dos problemas em definir mudanças na vida social em termos tão gerais como modo de produção é que eles não só são categóricos em suas definições, como tendem a ser interpretados de forma restritiva, baseada em uma distinção radical entre infra-estrutura e superestrutura. No entanto, a infra-estrutura é muito afetada pelo que acontece em outro nível, e avanços nos sistemas de conhecimento são freqüentemente de profunda importância para a economia. Nesse sentido, esses avanços têm um papel significativo na infra-estrutura. De qualquer modo, mesmo a produção agrícola depende não somente de tecnologia strictu

sensu, mas também de transporte (por

exemplo, a construção das estradas romanas), de técnicas de cultivo e propagação de plantas, bem como de organização e pessoal.

Apesar desses justificados questionamentos sobre a natureza dos acontecimentos feudais, o amplo curso da história humana tem sido traçado pelos eruditos ocidentais a partir do que aconteceu na parte que lhes cabe da Europa. Antigüidade e feudalismo são partes de uma única cadeia de acontecimentos que conduz ao capitalismo ocidental. Qualquer coisa além

disso, diz Marx, foi "excepcionalismo asiático". Observando a situação a partir de uma perspectiva mundial mais ampla, é óbvio que o "excepcional" nesse período foi o Ocidente. Ele sofreu o que nós todos concordamos ter sido um "colapso catastrófico" que só lentamente foi superado em muitas esferas. Assim como Lynn White e outros autores, o historiador Anderson enfatiza os avanços técnicos do período

medieval, que ele contrasta

(questionavelmente) com a economia "estática" não somente da Ásia mas dos tempos romanos. Por exemplo, ele comenta o fato que, embora os romanos tenham se apossado do moinho d'água da Palestina, e conseqüentemente da Ásia, não fizeram nenhum uso dele (apesar de haver novas evidências de um uso mais amplo). A água é um elemento que foi gradualmente usado ao longo do tempo, tanto no Oriente como no Ocidente. Os romanos certamente fizeram movimentos significativos nessa área, com aquedutos, saunas e complexos sistemas de suprimento de água em Apamea, na Síria ou no Pont du Gard, na Provença. Parece uma visão restrita da economia política se concentrar somente na tecnologia agrícola em um sentido limitado. De qualquer maneira, Roma não era estática se considerarmos a introdução e extensão das colheitas, o uso dos moinhos e o total sucesso de seu sistema produtivo.

Quanto à natureza progressiva da sociedade européia durante o período feudal, a

produtividade da agricultura ocidental sem dúvida se aprimorou ao longo do tempo, mas partindo de um patamar baixo. No entanto, nunca foi nem de longe, tão produtiva quanto a agricultura irrigada do Oriente Médio, ou do norte da África e sul da Espanha, muito menos do Extremo Oriente, em que "por volta do século

XIII a China tinha se tornado a agricultura talvez

mais sofisticada do mundo, e a Índia sua única rival concebível". Alguns falam mesmo de "uma

revolução verde" no Império do Meio no século VI

e.c., outros acreditam que aconteceu mais tarde. Na Europa, a agricultura cresceu entre os séculos VIII e XII. Mas quanto? Há uma diferença radical de opinião entre aqueles que, como Anderson e Hilton, interpretam esse período como de desenvolvimento altamente "progressivo" e outros que são menos impressionados com seus feitos.

No documento O Roubo da História - Jack Goody (páginas 146-153)