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O caráter dirigente da Constituição da República Federativa do Brasil e a construção da doutrina da proteção integral

CAPÍTULO 1: O caráter dirigente da Constituição da República Federativa do Brasil

1.1. O caráter dirigente da Constituição da República Federativa do Brasil e a construção da doutrina da proteção integral

A proteção especial direcionada à criança e ao adolescente foi enunciada pela primeira vez em 1924 na Declaração de Genebra sobre os Direitos das Crianças, denotando uma preocupação internacional das nações sobre o assunto. Em 1948, na Assembleia Geral das Nações Unidas, foi proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, na qual os direitos e liberdades das crianças e dos adolescentes estavam implicitamente incluídos. Posteriormente, esta proteção foi novamente objeto de positivação na Declaração dos Direitos da Criança, promulgada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1959. A natureza dessas declarações dá à questão da criança e do adolescente um status de preocupação ampliada, mas os direitos nelas contidos não são de cumprimento obrigatório pelos estados-membros.

Em 1989, foi aprovada na Assembleia Geral da ONU a Convenção sobre os Direitos da Criança. Nessa Convenção, um amplo trabalho foi realizado, com abertura para os estados- membros à sua subscrição e ratificação. Foi enunciado um conjunto de direitos fundamentais – civis, políticos, econômicos, sociais e culturais – que abrangiam todas as crianças e vinham acompanhados de disposições procedimentais para que esses direitos fossem aplicados. O Brasil, ainda em pleno movimento pós-constituinte, assinou a Convenção e ratificou-a8.

No Brasil a discussão acerca da proteção especial à criança e ao adolescente avançava concomitantemente com as discussões preparatórias para a Convenção, tendo esse processo desembocado principalmente no artigo 227 da CF/889: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e

Myrian Veras Baptista (2012). Resolução de nº 113, DE 19 DE ABRIL DE 2006, do Conselho Nacional dos Direitos a Criança e do Adolescente, que dispõe sobre os parâmetros para a institucionalização e fortalecimento do Sistema de Garantia dos Direitos da criança e do adolescente.

8 A Convenção dos Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989, e ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990.

9 O artigo 227 da CF/88serviu de fonte de inspiração ao legislador nacional na elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. O ECA entrou em vigor em de 14 de outubro de 1990.

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comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

§ 1º - O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não governamentais e obedecendo os seguintes preceitos:

I - aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil;

II - criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos.

§ 2º - A lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência.

§ 3º - O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:

I - idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, observado o disposto no art. 7º, XXXIII;

II - garantia de direitos previdenciários e trabalhistas; III - garantia de acesso do trabalhador adolescente à escola;

IV - garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica;

V - obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade;

VI - estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado;

VII - programas de prevenção e atendimento especializado à criança e ao adolescente dependente de entorpecentes e drogas afins.

§ 4º - A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.

§ 5º - A adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de sua efetivação por parte de estrangeiros.

§ 6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

§ 7º - No atendimento dos direitos da criança e do adolescente levar-se-á em consideração o disposto no art. 204.

O conteúdo do artigo 227 da CF/88 foi concebido a partir do debate de ideias no processo de trabalho da Convenção e da participação de vários segmentos sociais envolvidos com a causa da infância no Brasil. Sua inclusão mostra o quanto o país apresentava as mesmas necessidades

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retratadas na discussão internacional, e tinha em seus quadros atores estratégicos atentos a essa discussão. A inclusão dos direitos da criança e do adolescente na Constituição Federal permitiu, na sequência, não só a ratificação da Convenção como a instituição do ECA/90.

Em entrevista realizada pela Fundação Telefônica em 2004, o Procurador de Justiça Paulo Afonso Garrido de Paula revelou sua participação ativa no movimento que aprovou a CF/88 e, particularmente, no período entre a sua aprovação e a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990. Esse diploma é tributário principalmente dessa inclusão do artigo 227 na CF/88, que, prevendo direitos universais e de proteção integral à criança e ao adolescente, havia estabelecido um descompasso entre a antiga legislação e a nova Constituição, o qual precisaria ser vencido.

GARRIDO (2004), nessa oportunidade, contou que o artigo 227 da Constituição expressou o atendimento dos legisladores às discussões e movimentos10 responsáveis pela emenda popular com o segundo maior numero de assinaturas no processo constituinte. Segundo ele, nesse período de pós-aprovação da CF/88, uma das grandes discussões a respeito do ordenamento jurídico estava relacionada ao enfrentamento do chamado ‘entulho autoritário’: uma série de leis que ainda estavam em vigor, que eram incompatíveis com a Constituição Federal e que precisavam ser removidas11.

Colocar em funcionamento o amplo e desafiador conjunto de direitos proposto no referido artigo passava a exigir um esforço no sentido da criação de um Estatuto que

10 Destacam-se o Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua, a Pastoral do Menor, o UNICEF, o Ministério Público, os quais estavam muito envolvidos com outros movimentos e entidades sociais na luta para a inclusão da criança e do adolescente no compromisso da Constituinte. Esses grupos manifestaram-se através da elaboração e assinatura de inúmeras emendas populares apresentadas à Assembleia Nacional Constituinte e em acontecimentos políticos que comoveram a sociedade brasileira. Foram apresentadas emendas resultantes da fusão de dois textos – ‘Criança e Adolescente’ e ‘Criança, Prioridade Nacional’, acompanhadas das assinaturas de 200.000 adultos e mais de 1.400.000 crianças e adolescentes (GARCIA, 1999). Importante articulação foi realizada pela Comissão Nacional Criança e Constituinte, instituída pela Portaria Interministerial nº 449, de setembro de 1986, constituindo-se numa articulação entre os Ministérios da Educação, da Justiça, da Previdência e Assistência Social, da Saúde, do Trabalho e do Planejamento.

11 Ainda que as normas incompatíveis com a Constituição devam ser consideradas não recepcionadas e, como tal, tacitamente revogadas, o reconhecimento da incompatibilidade nem sempre é unívoco, o que tem até os dias de hoje suscitado disputas judiciais (vide caso da revogação da Lei de Imprensa pelo Superior Tribunal Federal em 2009). Além disso, a incompatibilidade gera um vácuo que precisa ser preenchido por novas normas.

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pormenorizasse a lei, de forma a propiciar a necessária mudança cultural (jurídica e social), transformando o paradigma até então consolidado de ‘menor em situação irregular’, para um paradigma no qual a criança e o adolescente passavam a ser apreendidos como ‘sujeitos de direitos’.

Outro aspecto a considerar é que, até o momento da Constituição, a legislação específica voltada para a criança e o adolescente tinha por objeto um segmento particular dessa população; os considerados abandonados ou delinquentes, menores de 18 anos de idade, enquanto na CF/88 as determinações legais passaram a abranger a totalidade da população infantil e adolescente.

COSTA (2010) relata que o processo de redação do Estatuto envolveu três grandes setores da vida nacional: o mundo jurídico, representado por juízes, promotores, professores de direito e advogados; as políticas públicas, representadas pela Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM) e pelos órgãos de execução estadual da Política Nacional de Bem Estar do Menor que, mais tarde, viriam a organizar-se no Fórum Nacional de Dirigentes Governamentais de Entidades Executoras da Política de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (FONACRIAD), que continua ativo até os dias de hoje; as organizações da sociedade civil, como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Sociedade Brasileira de Pediatria, o Movimento Nacional Meninos e Meninas de Rua, a organização Ba’Hai, o Movimento Ecumênico e outras organizações.Ainda conforme COSTA (1993), o Senador Ronan Tito, ressaltando a importante interação entre o movimento social, as políticas públicas e o mundo jurídico, ao apresentar o projeto do Estatuto da Criança e do Adolescente ao Senado Federal em 30 de junho de 1989, declarou sua importância com as seguintes palavras:

O texto que ora temos a honra de apresentar assenta a raiz do seu sentido e o suporte de sua significação em três vertentes que raras vezes se entrelaçam com tanta felicidade em nossa história legislativa. Ele emerge do encontro sinérgico de pessoas e de instituições governamentais e não governamentais representativas da prática social mais compromissada com a nossa infância e juventude, do mais sólido conhecimento técnico- científico na área e finalmente, da melhor e mais consistente doutrina jurídica.

E foi no bojo dessas ações e movimentos que, em 13 de Julho de 1990, ratificando a CDC/89, o Brasil aprovou a Lei nº 8.069, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que detalha de forma ampla e comprometida como devem ser vistos e tratados as crianças e os

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adolescentes no país. O ECA ressalta o compromisso de que cada criança e cada adolescente precisa ser considerada como ‘um ser em condição peculiar de desenvolvimento’, exigindo para isso a presença de adultos cuidadores. Determina, ainda, sua prioridade absoluta no orçamento e nas ações das políticas publicas.

No entanto, efetivar em um estatuto os direitos previstos no artigo 227 da CF/88, bem como os compromissos acordados na CDC/89 em um ambiente que historicamente vinha tratando crianças e adolescentes de forma fragmentada se apresentava (e se apresenta até hoje) como desafiador.

1.2. O cuidadoso processo de elaboração do Sistema de Garantia de Direitos

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