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Ricardo e Sueli: Quando o acolhimento entrou na nossa vida ele era uma parte dela, uma ação Hoje, ele tomou conta dela e nos fez olhar o mundo com outros olhos.

3.5 Histórias de Famílias Acolhedoras

3.5.4. Ricardo e Sueli: Quando o acolhimento entrou na nossa vida ele era uma parte dela, uma ação Hoje, ele tomou conta dela e nos fez olhar o mundo com outros olhos.

Sueli tem 43 anos, é engenheira sanitarista, tem três filhos. Participa do SAPECA desde o ano 1999 e, nesse período de 14 anos, acolheu sete crianças, sendo uma menina e seis meninos. É casada com Ricardo há 20 anos, que é empresário e trabalha no município de Campinas.

Ela considera que cuidado e proteção estão muito associados: É como se fosse a mesma

coisa. Como família acolhedora, eu penso que cuido e protejo os meus filhos da mesma forma que faço com as crianças acolhidas, de forma que elas consigam se desenvolver, que elas consigam progredir de acordo com a fase em que elas se encontram. Acho que preciso respeitar, além da fase, os seus históricos, as suas origens, oferecendo condições para elas progredirem. Esse cuidado significa traçar alguns limites, fazer um balizamento, não do caminho que você considera que é o certo - porque isso é muito relativo - mas um caminho que faça com que as crianças/adolescentes consigam entender a situação da qual vieram e terem condições de encontrarem outra realidade, de perceberem que existem outras possibilidades que não somente aquela de que elas saíram.

Ricardo acrescenta que: O que consigo diferenciar no acolhimento do meu filho e de uma

criança acolhida é que, às vezes, recebemos uma criança que sabemos que vem de uma condição de risco que os nossos filhos nunca passaram nem de perto. Então, precisamos ajudar a criança acolhida a desenvolver suas habilidades para que aquelas condições de risco não venham acontecer em um futuro próximo, que é quando a criança vai retornar. Isto acaba exigindo de nós, acolhedores, algumas ações diferenciadas, alguns direcionamentos no processo de desenvolvimento deles. Nós já acolhemos sete crianças, cada uma com um tipo de violação: desde abandono, negligência, até violência física. É claro que cada uma dessas crianças

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demanda, além dos cuidados básicos – cuidados de higiene, de educação moral – um reforço... dar ênfase a alguns assuntos que, sabemos, quando elas retornarem, podem às vezes estar expostas ainda àquilo que gerou suas separações da mãe e do pai. Então, a única diferença do acolhimento em relação ao dos nossos filhos naturais é que às vezes precisamos exercitar a conversa de assuntos que normalmente não conversaríamos com o nosso filho. Com a criança acolhida, às vezes, nós somos obrigados a enfrentar essa questões. São assuntos que, com nossos filhos, protelaríamos, e, com o acolhido, precisamos antecipar. Isto porque sabemos que o tempo de estadia vai ser curto e queremos dar tudo de bom e de melhor: temos que aproveitar o tempo!

Nos sete acolhimentos já vividos pelo casal, sabendo que cada um chega com uma demanda diferente, foi questionado como eles têm sentido o papel que desempenham. É Sueli que responde: a diferença de um serviço de acolhimento familiar é que enquanto nós cuidamos e

protegemos a criança, a família de origem está sendo assistida também pelo Serviço. Então eu me sinto participando de todo um processo de recuperação, não de uma única vida, mas de várias vidas envolvidas nessa situação. Nós nos sentimos meio flutuando porque você está cuidando de um ‘serzinho’ que, devido a um problema, foi retirado do pai, da mãe. Normalmente só é vista a situação da criança, do seu sofrimento... porém, se você voltar um pouquinho, e se perguntar sobre o porque da agressão... Participar de um serviço como esse, tão extensivo, que atinge tantas vidas... é muito interessante. Nós estamos em uma das pontas, as técnicas na outra, a rede na outra... então, são muitas pessoas atuando na proteção de outras pessoas. Isso é que é o fundamental nesse serviço. É o que me chamou a atenção para aderir à participação. É esse cuidado com o outro, não só com a criança, mas com todos, todos acabam sendo vítimas: quem vitimizou com certeza foi vitimizado. Participamos de um processo que está buscando a causa da violência para, efetivamente, contribuir para o rompimento desse ciclo. Então é isso que é interessante, é isso que eu julgo bastante importante nesse serviço.

Foi questionado como uma família acolhedora se sente em um processo como esse que ela acabou de descrever, onde se representam muitas etapas, o convívio com muitas pessoas, com muitas responsabilidades... Sueli afirma: Não podemos ser imediatistas, porque a situação de

vivência na violência, na maioria das vezes, já ocorre há muito tempo na vida dessas crianças e de suas famílias. É importante, como família acolhedora, atuar, fazer o melhor possível para a

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criança. Eu fico muito tranquila tendo a certeza de que alguém do outro lado também está cuidando. Então, eu fico aqui na minha ponta sendo família acolhedora. Eu acredito no Serviço. Eu acredito nos profissionais que fazem esse serviço. E isso é que me fez entrar [neste trabalho] e permanecer. Quando falamos SAPECA, o SAPECA tem nome e sobrenome. Ele é feito de pessoas que acreditam também num ideal. Muito além de profissionais, são pessoas cuidando de pessoas. Porque vejo um comprometimento muito grande da rede, dos profissionais, da própria Vara da Infância... um respeito que construímos com todo o trabalho, com a dinâmica, com o progresso desse serviço. Eu fico muito tranquila quando estou cuidando de uma criança, porque sei que nós fomos acolhidos também: a família acolhedora foi acolhida por um serviço e pôde então desenvolver, fazer uma ‘partezinha’ de um trabalho muito amplo. É uma junção de pessoas que se cuidam, que têm uma visão da importância do olhar... do olhar sobre a situação do outro. Eu me sinto acolhida enquanto família acolhedora, sinto poder desenvolver um serviço tendo absoluta confiança em quem está na outra ponta.

Ricardo acrescenta que: O que nos deixa tranquilos também é o histórico dos

acolhimentos que já ocorreram não só conosco, mas também com as outras famílias. Em termos de quantidade, sabemos que o retorno das crianças para as famílias de origem representa mais de 50%. Dentre as várias famílias para as quais essas crianças retornaram – nós pudemos acompanhar isso ao longo dos anos –, houve uma mudança no seu caminhar, e hoje dão conta de suas vidas. Existem casos que sabemos que não dá, a criança às vezes toma outro rumo, diferente desse, mas a maioria dos casos a gente vê que a nossa intervenção, ou melhor, que a intervenção feita pelo Serviço supriu, naquele momento de dificuldade, [as necessidades da criança e da família] e daí pra frente voltaram para o curso normal de vida.

Levando em consideração o longo tempo de participação nessa proposta de acolhimento, foram indagados sobre como veem a participação deles nesse processo de trabalho coletivo. Foi Sueli quem começou a resposta: Nas reuniões no serviço, nós temos acesso ao conhecimento da

legislação pertinente, nós temos conversas no sentido até de conhecimento da parte técnica, então nós sabemos que na Constituição Federal está previsto, que nós temos como sociedade o dever de cuidar da criança, não só o governo, a sociedade também é um ator nisso tudo e eu como cidadã preciso atuar, eu preciso proteger. Eu sinto que eu tenho direito de participar, de cuidar daquela criança que eu estou vendo que está sendo desprotegida, mas mais que isso eu

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tenho o dever de fazer isso. Então o cidadão tem que entender o seu papel, como atuar na vida do outro de forma respeitosa e controlada. Ajudar o progresso, a proteção da criança do outro porque uma nação é feita de pessoas, é feita de família, é feita de indivíduos, então nós precisamos ter isso em mente, temos que olhar para o outro de forma a fazê-lo crescer.

E seu esposo Ricardo expressa sua opinião também sobre o assunto: Estamos cuidando

do outro, estamos fazendo com que os valores de família não se percam. O exemplo às vezes convence mais do que palavras. Então, no projeto no qual nós estamos há mais de dez anos, nos propusemos a dar um exemplo de desprendimento, um exemplo de plantar uma semente para essa sociedade que cada vez mais está olhando apenas para o próprio problema. Contribuir para mudar: para mudar a cultura de posse e de egoísmo com relação aos problemas do outro. O acolhimento é muito eficaz, a curto prazo. Então, além de tudo isso que já sabemos, eu ainda prefiro ressaltar a questão da possibilidade de mudança de atitude. O exemplo feito, do acolhimento por várias famílias, tem contribuído. Antigamente eu falava que, se dentro de trinta anos nós tivéssemos convencido, de uma maneira natural, uma grande parte da sociedade, já seria um grande avanço. O que representam trinta anos num período histórico? Nós vemos que dez anos se passaram e muita coisa já avançou. Então, eu prefiro olhar por esse lado da questão: o da contribuição que temos dado para a mudança de cultura. Isso, para mim, ainda me toca mais forte do que o fato de dar um suporte momentâneo.

A estrutura do processo de trabalho do Serviço é comentada por Sueli: Eu acho que a

forma como o SAPECA está estruturado vem cumprindo o seu papel. Sempre fica muito claro quando alguém se dispõe, se interessa por participar. A primeira coisa que sempre é tratada é a questão do acolhimento: que não é adoção! É explicitado que o nosso papel é acolher a criança por um período, enquanto ela estiver precisando disso. Eu acho que o treinamento está bem estruturado. Tem início na primeira entrevista, onde o serviço se abre para os interessados. Depois, vem o treinamento, que é muito bem feito, muito claro, muito transparente. Depois, vêm as reuniões quinzenais... Eu acho que é muito bom. Também acho que, dentro do possível, tivemos um progresso quando conseguimos interagir com a família de origem, respeitando sua história – respeitando um lado e o outro. Temos, de um tempo para cá, entre nós, famílias acolhedoras, conseguido nos encontrar mais para trocar idéias. Temos conseguido contribuir para a manutenção dos vínculos dos irmãos, quando eles estão em famílias separadas. Temos

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conseguido nos encontrar para que eles também fiquem mais tempo juntos. O serviço é bem estruturado: na bolsa auxilio, no apoio, no atendimento...

E ela passa a falar de sonhos... Meu sonho é que o SAPECA pudesse se expandir, porque

hoje é um serviço limitado no atendimento frente as necessidades do município. Meu sonho é que ele se expandisse com mais profissionais, para que pudéssemos atuar mais, porque sabemos que a demanda é grande. É obvio que, hoje, para que esse bom trabalho continue, para que permaneça a qualidade no atendimento, o número de atendimento tem que ser limitado. Isto é óbvio! Estamos lidando com vidas! Então, se conseguíssemos expandir o trabalho – se nós pudéssemos atender mais famílias sempre respeitando essa dupla que funciona muito bem, da psicóloga e da assistente social, uma complementando a outra... Eu ficaria muito mais feliz, mas hoje ele dá conta.

Foi questionado se era sentida por ela alguma diferença diante do trabalho realizado por uma assistente social e por uma psicóloga, e Sueli diz que sim: Eu acho que a psicóloga percebe

umas coisas de forma mais rápida... ela consegue nos perceber mais. Às vezes não estamos dando conta de algumas coisas e ela nos traz à realidade. Então eu acho a dupla muito interessante porque uma acaba complementando o olhar da outra. Eu acho que isso é um ganho no serviço. Neste momento, foi perguntado se esse acompanhamento realizado pelas

profissionais alguma vez causou estranheza frente a uma necessidade na mudança de algum aspecto da educação e do cuidado oferecido por eles, e Sueli responde: As técnicas fazem isso

com muito respeito. Às vezes eu mesma, em algumas reuniões, acabo fazendo o mesmo quando percebo que a relação [no acolhimento de outra família] está indo para um lado que, pela nossa experiência, poderá levar ao sofrimento. Eu chamo a atenção, com todo o respeito, enquanto família acolhedora: “É a fase do namoro... Olha! Isso é namoro. Vão vir problemas. Você tem que se preparar”. Até cheguei a falar com uma família esses dias: “Olha! Fala... pelo amor de Deus! Porque, se você não falar aqui, agora, eu vou explodir... Porque você precisa falar o que você está sentindo. Põe para fora... se for para xingar, xinga; se for para chorar, chora; nós vamos rir junto ou chorar junto, mas fala!” Porque as técnicas têm muito carinho e atenção, mesmo quando têm que dar uma chamadinha, fazem isso com muito respeito.

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É claro que cada família é de um jeito: quer dar uma educação, tem um ponto de vista, tem valores... mas precisamos fazer juntos. Tem que ter o princípio de ‘conjunto’... uma certa homogeneidade. Há diferenças, é claro, mas quando elas têm que fazer alguma consideração, elas fazem. Às vezes elas trazem algum assunto, mas não vão direto ao ponto, tentam fazer isso em grupo, sem nomear, sem ‘botar o dedo na ferida’.

Procuramos contribuir a partir de nossa experiência. Já temos uma vivência e, é claro, a escolha vai ficar para família, e é obvio que as técnicas vão sempre proteger a criança. No momento em que for percebido que a essência, a alma do serviço, está se perdendo, as técnicas vão atuar... como já atuaram. Isso também é óbvio e é fundamental: porque nós estamos lá para cuidar das crianças. O SAPECA foi feito para as crianças. O SAPECA busca famílias acolhedoras para aquelas crianças, não o contrário, não procura uma criança para aquela família acolhedora. Quem vai lá, vai para proteger, para cuidar de uma criança e isso está claro.

Ricardo concorda com Sueli e expressa a sua opinião: Eu acho que é isso mesmo.

Quando você pergunta o que poderia melhorar, eu sei que essa questão é limitada em função de um entrave financeiro. É uma questão orçamentária. No entanto, com a estrutura do jeito que está, considero que, desde a primeira entrevista até o treinamento de capacitação e o acompanhamento do acolhimento, está perfeito. Mas o que a gente realmente gostaria é que o SAPECA pudesse tomar mais corpo, ou seja, que tivesse mais profissionais. No começo, eu tinha uma visão diferente dos técnicos – fosse ele assistente social, fosse ele psicólogo –, era uma visão de que o técnico era só um técnico. Com o passar do tempo – e é óbvio que as pessoas, os profissionais vão se envolvendo, hoje eu sinto um ganho, um desenvolvimento da parte técnica, às vezes até mais do que deveria. Os técnicos se envolvem. É claro que tudo tem limite, mas eu sinto que eles hoje têm uma visão muito mais apurada. Quando nos esquecemos de algum dos nossos mandatos, com toda sutileza eu sinto que eles, com muita propriedade, conseguem nos ajudar a voltar ao curso normal. Mas sabemos que não existem tantos profissionais quantos são necessários para atender a demanda. A nossa maior vontade é que o número de crianças que sabemos haver nos abrigos fosse atendido.

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Ao serem indagados se eles também sentem que ultrapassam o papel de acolhedores na realização desse serviço é Ricardo quem responde: Quando o acolhimento entrou na nossa vida

ele era uma parte dela, uma ação. Eu posso dizer que hoje tomou conta da nossa vida e nos fez olhar o mundo com outros olhos e percebemos que a nossa forma de atuar no mundo influencia a das outras pessoas. Onde estamos e com quem estamos agimos com esse pensamento que, para nós, se tornou muito amplo – tomou conta da vida. E Sueli complementa: Quando estamos falando de um trabalho social, eu acho que as pessoas não têm muito limite... Por exemplo, eu sou parte de um serviço de família acolhedora e, se eu tenho a possibilidade de ir além, respeitando o papel do técnico e outros fatores, eu vou além. Se eu tenho condições de atuar para viabilizar outras conquistas, por que não? Não podemos nos limitar, não podemos nos deixar limitar se conseguimos atuar em outros níveis. Então é assim: nós nos envolvemos mesmo. Faz parte do jogo, esse trabalho nos arrasta a isso: nos envolvemos mesmo!

Nós temos muitas histórias de acolhimentos, mas talvez a que mais marcou e como foi um dos primeiros eventos desta natureza [com emoção], eu destaco: Foi um dia antes do retorno do Gabriel, nosso primeiro acolhimento. Cheguei em casa do trabalho por volta das dezenove horas quando a Sueli me informou que o Gabriel retornaria para a família de origem no dia seguinte. Naquela época não havia aviso com antecedência, nem preparação; Foi na ‘bucha’). Daí chamei o André [3 anos] e o Gabriel [4 anos] para informá-los da situação. Pedi que os dois fossem até a sala de brinquedos pra separar alguns para o Gabi levar com ele. Foi aí então que tudo se deu... Naquela época havia os brinquedinhos do ‘McDonalds’ que vinham com o ‘McLanche Feliz’, e como sempre iam os dois lanchar, havia sempre dois brinquedos de cada modelo, e começou a divisão pelo André: Modelo 1, dois brinquedos; um pra mim [André], outro pra vc [Gabi]; Modelo 2, dois brinquedos; um pra mim [André], outro pra você [Gabi]; e assim sucessivamente... até chegar em modelos que só havia um brinquedo. E, para minha surpresa, quando acontecia de ter apenas um brinquedo de tal modelo, o André, sem pestanejar, entregava-o ao Gabi, ou seja, para uma criança de dois para três anos; ainda na fase da posse, do ‘tudo é meu’, que é comum da fase, ter a capacidade de renunciar, de doar... E ainda, no final, sugeriu ao Gabi que levasse tudo em uma mochilinha que também era dele, da escolinha. Pra mim, foi a certeza de que estávamos no caminho certo. E, de lá pra cá, tudo que temos observado, em todos acolhimentos, não só dentro da nossa casa,

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mas com nossos familiares, tenho certeza que hoje não só o André, com 16 anos, mas eu, com 45, e a Sueli, com 44, somos melhores por termos acolhido.

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