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CARACTERÍSTICAS DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS

CAPÍTULO III: REPRESENTAÇÕES MENTAIS

3. CARACTERÍSTICAS DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS

Hoje em dia, aceita-se que a origem das representações mentais assenta tanto no substrato biológico como no cultural. De acordo com a interpretação de vários autores (Paivio,1990; Wilson, 1999), tal significa que alguns processos representacionais são determinados biologicamente, enquanto outros o são culturalmente. Os processos

biológicos resultam do longo alvorecer evolutivo das espécies e são, pelo menos em parte, partilhados com outros animais, particularmente os mamíferos e em especial os símios não humanos. Como exemplos gerais temos a memória não-verbal, as imagens mentais e alguns tipos de esquemas de ação, como a tendência inata a reagir tanto com medo como com fascínio diante das cobras, um exemplo daquilo que Wilson (1999) designa regras epigenéticas. Os processos culturais, eles próprios marcadamente biológicos27, resultam da evolução e impregnação culturais e têm de ser aprendidos. Como exemplos gerais temos os comportamentos planeados, a linguagem, a Matemática, as artes, as religiões, o conhecimento do senso comum e o conhecimento científico. Exemplificamos com as cores normalmente escolhidas para os bebés em função do sexo, azul para os meninos e cor-de- rosa para as meninas, algo que nos é transmitido pelas convenções culturais, mas que acaba por se inculcar nas nossas representações ao ponto de, se no pedirem para imaginar um quarto de menino o imaginarmos azul e o de uma menina cor-de-rosa. Os autores ressalvam que as fronteiras entre o biológico e o cultural são ténues e nem sempre são identificáveis (Damásio, 2010; Paivio, 1990; Voland, 1999; Wilson, 1999).

Uma das caraterísticas fundamentais das representações mentais é a presença de informações de natureza contextual. São elas que nos orientam na identificação dos elementos constituintes, ajudando a atribuir-lhes um significado, assim como na recuperação posterior das informações retidas na memória a longo prazo (Jimenez, 2002; Paivio 1999; Vauclair, 2008). Por exemplo, se representarmos alguém a correr na nossa direção, tanto poderá significar um amigo ou um desconhecido que nos quer ajudar porque contextualmente acabámos de cair ao chão e estamos magoados, como poderá significar um amigo do alheio se contextualmente acabámos de levantar dinheiro de uma caixa multibanco. Sabemos que uma representação mental evocada pelo nome de um objeto evidencia características contextuais (Jimenez, 2002). O contexto ajuda também a explicar as variações representacionais acerca de um objeto ou situação por parte de um mesmo sujeito, ou seja, a diferentes contextos correspondem diferentes perceções e comportamentos, diferenças essas que se irão refletir nas respetivas representações mentais (Paivio, 1990). No âmbito da Teoria do Processamento Dual referimos que as representações associadas ao SRI se caracterizam por serem sincrónicas e hierárquicas no entanto, estas características têm revelado os seus limites (Paivio, 1990). Tal como a

perceção visual, as imagens mentais de natureza visual têm um alcance limitado e, em certos casos, as diferentes partes de uma representação sincronicamente disponível terão de ser visualizadas sucessivamente. Tal situação ocorre, sobretudo, nas imagens mentais relativas a objetos complexos, como o interior de uma habitação. A divisão que fica inicialmente acessível na imagem mental depende do contexto em que se dá a evocação, pelo que a ordem de processamento não é aleatória. Aquilo que normalmente definimos como a memória de um objeto, não é algo que resulte de uma receção passiva, simples e digitalizada por parte do sujeito, é antes uma receção ativa, complexa e (re)construída, logo composta, das atividades sensoriais e motoras associadas à interação entre o organismo e o objeto, a qual é responsável por, muitas vezes, recordarmos contextos e não apenas coisas isoladas (Damásio, 2010).

Um fator não negligenciável em qualquer análise das características das representações mentais é a natureza do estímulo evocador. Ainda em 1966, nos primeiros tempos de trabalho na sua Teoria do Processamento Dual, Allan Paivio demonstrou que o tempo de reação requerido para a construção de uma imagem mental é menor, quando o estímulo é uma palavra concreta, comparativamente às situações em que o estímulo é uma palavra abstrata, tal como previsto pelo princípio teórico de que as representações verbais de natureza concreta (palavras concretas) apresentam mais conexões funcionais com o SRI, comparativamente às representações verbais de natureza abstrata (palavras abstratas) (Paivio, 1971, 1990). Existe também evidência de que (i) as palavras abstratas têm menor probabilidade de evocar imagens mentais que as palavras concretas, (ii) as imagens mentais evocadas pelas palavras concretas não se restringem às de natureza visual ou pictórica, podendo ser de natureza auditiva, táctil, olfativa, gustativa, cinestésica, interoceptiva ou sentimental e (iii) as imagens mentais evocadas a partir de estímulos semânticos tendem a ser menos nítidas e detalhadas, comparativamente às evocadas a partir de situações concretas e objetos específicos (Paivio, 1971, 1990; Thomas, 2007). Pediu-se a 57 sujeitos do primeiro ano do Ensino Superior que, utilizando uma escala de Likert de sete níveis (1 - 7), classificassem um conjunto de frases, umas concretas, outras abstratas, quanto à sua potencialidade para evocar imagens mentais, tendo as frases concretas obtido níveis significativamente superiores (4,85) às frases abstratas (2,97) (Bellardinelli, 2004). No desenvolvimento da criança, as representações podem evoluir tanto no sentido de uma maior concretização, como de maior abstração (Paivio, 1971). Por

exemplo, a representação mental evocada pela palavra cão, pode evoluir no sentido de uma maior concretização, passando a incluir, reconhecer e nomear diferentes raças, como pode evoluir no sentido de uma maior abstração, compreendendo o conceito de mamífero.

Ainda em relação à natureza dos estímulos, sabe-se que imagens mentais de natureza visual podem ser induzidas por estímulos de natureza diferente. Estudos realizados a este propósito têm demonstrado, que as imagens mentais visuais induzidas por estímulos auditivos tendem a ser menos detalhadas ou específicas, comparativamente às induzidas por estímulos tácteis (James et al., 2006). No caso particular dos cegos congénitos, a ausência de estímulos visuais, tem implicações na natureza das suas representações mentais (Heller e Ballesteros, 2006). Atendendo a que eles reconhecem os objetos essencialmente através da perceção táctil ativa, Paivio (1990) considera razoável supor que as suas representações mentais incorporem abundantemente elementos resultantes dessa experiência háptica.

As representações mentais podem caracterizar-se como sendo uma teoria individual acerca do mundo e da própria interação com ele. Assim pensa Allan Paivio que exemplifica com as representações mentais de natureza antecipatória, no sentido em que permitem prever e monitorizar objetos e acontecimentos, mesmo antes da sua ocorrência, o que permite deliberar e planear reações, assim como antecipar os resultados das mesmas (Paivio, 1990). Neste sentido, podemos afirmar que as representações mentais evoluíram na espécie humana como forma de potenciar a adaptação ambiental, caso contrário a capacidade de as construir não se teria imposto no nosso património genético. Pensemos numa caçada efetuada pelos nossos antepassados há cem mil anos atrás, quanto melhor o seu planeamento, quanto maior colaboração entre caçadores, melhor conhecimento do terreno e preparação da emboscada da presa, melhor antecipação das reações dos outros caçadores e da presa, maiores as probabilidades de sucesso no número de animais mortos e no seu tamanho, logo mais alimento, melhor sobrevivência e mais êxito reprodutivo. António Damásio defende um mecanismo semelhante em relação às emoções, afirmando que o cérebro, com o contributo dos chamados neurónios espelho, pode criar rapidamente mapas do corpo (imagens mentais), em tudo comparáveis aos que seriam criados caso o corpo fosse realmente alterado por determinada emoção. Diz-nos, por outras palavras, que “o cérebro pode simular, em regiões somatossensoriais, certos estados do corpo, como se estivessem mesmo a ocorrer; e uma vez que a nossa percepção de qualquer estado do corpo

se baseia nos mapas corporais das áreas somatossensoriais, apercebemo-nos do estado do corpo como se este de facto estivesse a ocorrer, mesmo que não seja esse o caso” (Damásio, 2010, p. 133). De forma mais simples, melhores representações mentais conduzem a melhores antecipações ou simulações avançadas, as quais permitirão, em conjunto com outras ferramentas como o raciocínio hipotético dedutivo, planear melhores reações e consequentemente, obter melhores resultados. Em linha com estas ideias, hoje em dia, a maioria dos cognitivistas atribuem um papel essencial às representações mentais na nossa “economia mental”, ou seja, permitem melhores desempenhos com custos energéticos mais baixos (Damásio, 2010; Thomas, 2007).

A natureza antecipatória das imagens mentais foi também defendida por Piaget e Inhelder (1977), a par das imagens mentais de natureza reprodutiva. Para eles, imagens antecipadoras são “as que representam por imaginação figural acontecimentos não percepcionados anteriormente, quer se trate de movimentos ou transformações ou dos seus fins ou resultados” (p. 18). Imagens reprodutoras são “as que evocam objectos ou acontecimentos já conhecidos” (p. 18). A capacidade de construir imagens mentais reprodutivas tem sido identificada em crianças muito antes dos sete anos de idade, enquanto as imagens antecipatórias tendem a tornar-se funcionais apenas após essa idade, parecendo desenvolver-se a par e em relação com as operações concretas (Paivio, 1971).

As imagens mentais não devem ser tidas como algo estático, consideram vários autores (Damásio, 2003a, 2010; Mackay, 2009), sendo dotadas de grande volatilidade, (re)construindo-se constantemente de forma a refletir as alterações que ocorrem nos neurónios que as alimentam, os quais refletem as mudanças no interior do nosso corpo e no mundo envolvente, mesmo nos adultos. Estas (re)construções são momentâneas e embora possam parecer réplicas de boa qualidade, são geralmente imprecisas e incompletas.

A componente imagética das representações mentais pode caracterizar-se pela sua claridade e pela sua vivacidade, sendo que uma imagem será tanto mais vívida quanto mais se assemelhar a uma perceção real, nomeadamente em termos de brilho, nitidez e dinamismo (Marks, 1995, citado em Beato et al., 2006).

Como resulta dos pontos anteriores, tanto a Teoria do Processamento Dual como o Modelo de Convergência-Divergência preveem, que os conteúdos das representações mentais possam ser traduzidos em palavras pelos sujeitos que os representam. Com base nestes relatos verbais, Almaraz (1997) propõe que se caracterizem as representações em

termos de riqueza e de complexidade. Por riqueza entende o conjunto ou somatório dos substantivos, dos adjetivos, dos verbos e dos advérbios utilizados. A complexidade corresponde ao conjunto ou somatório das palavras de ligação entre as orações do relato verbal, ou seja, das conjugações e preposições.

As nossas representações mentais não são, na maioria dos casos, constituídas por informações particulares e isoladas, mas sim por generalidades. Como defendem vários autores (Spitzer, 2007; Vauclair, 2008), seria um dispêndio inútil de energia se tivéssemos de registar cada informação isolada que apreendemos do ambiente, isto porque esse ambiente é maioritariamente regido por regras. Assim, defendem os autores, necessitamos apenas de representar essas regras gerais através de um processo denominado categorização, conduta adaptativa humana que permite estruturar, organizar e reduzir a complexidade e a diversidade do meio físico e social. Por exemplo, certamente conhecemos e representamos detalhadamente os pormenores da casa que habitamos. Se nos solicitarem a (re)construir uma representação mental da mesma, muito provavelmente esses pormenores irão manifestar-se em virtude da nossa familiaridade com os mesmos (o nosso desagrado com desarrumação do quarto dos brinquedos, aquela mancha na parede, o ruído daquela porta, o aroma inebriante que emana da cozinha, etc.). Em contrapartida, se nos pedirem para representar uma casa qualquer, sem nenhuma familiaridade connosco, (re)construímos essa representação com base em características gerais que podem assumir múltiplos aspetos, como ter quatro paredes, um telhado, janelas, portas, varandas, etc. De outro modo, se representássemos na mente, de forma pormenorizada, todas as casas que já tivemos oportunidade de percecionar, teríamos uma pequena cidade na nossa cabeça. Um caso mais flagrante será, por exemplo, o das frutas. Não existem dois limões iguais, mas quando olhamos um percebemos quase imediatamente que se trata de um limão pela sua forma oval, pela sua cor e pela textura tipo “casca de laranja”, o que posteriormente é reforçado com o aroma cítrico e o sabor ácido. Se tivéssemos gravado cada limão que já observámos, como um limão isolado, então a nossa cabeça mais pareceria um cabaz cheio de limões isolados. Como explica Manfred Spitzer:

“… não só encheria a nossa cabeça de informação não importante como também não teríamos retirado nada desse conhecimento isolado. Só quando conseguimos abstrair algo de conteúdos isolados e formamos um conjunto e uma imagem global de um tomate a partir de um conjunto de indicações isoladas sobre tomates é que estamos em condições de, por exemplo, identificar os seguintes e saber logo que propriedades gerais têm (aspecto,

cheiro, sabor, que podem ser comestíveis, cozinhados, secos, atirados, preparados em ketchup, etc.)…” (Spitzer, 2007, p. 83).

4. CASOS PARTICULARES: ALUCINAÇÕES, SONHOS E FALSAS MEMÓRIAS