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Estudo piloto: como foram selecionados os estímulos evocadores das representações mentais

ESTUDO EMPÍRICO

2. VARIÁVEIS: FENÓMENOS A ESTUDAR

2.1. VARIÁVEIS INDEPENDENTES

2.1.2. Estudo piloto: como foram selecionados os estímulos evocadores das representações mentais

Reportamos aqui à variável independente da questão 1. Definidas as categorias e subcategorias dos estímulos evocadores das representações mentais, em função da sua natureza, havia que selecionar, entre inúmeras possibilidades, as palavras, os objetos, as figuras e os sons mais adequados, quer aos objetivos da investigação, quer aos sujeitos participantes da mesma. Assim, procurámos selecionar os estímulos específicos a apresentar no âmbito de cada uma das subcategorias, a partir da própria realidade a ser estudada, as crianças cegas congénitas integradas no EBER. Para tal, realizámos de forma exploratória, dois estudos de caso de duas crianças portadoras de cegueira congénita (A1 e B1), em duas escolas do EBER (escola A e escola B). Estes estudos de caso permitiram (i) aprofundar e consolidar a nossa problemática de investigação (Quivy e Campenhoudt, 2005), (ii) conduzir-nos em áreas particulares, até aí pouco claras e (iii) estabelecer padrões de comunicação com os sujeitos (Janesick, 1994). Em suma, com estes estudos de caso não procurámos, ainda, responder às questões da investigação, mas sim contactar e conhecer diretamente crianças cegas congénitas, procurando identificar estímulos evocadores de representações mentais, adequados e significativos nas vivências destes sujeitos.

Na metodologia de estudo de caso recomenda-se a utilização de várias técnicas de recolha de dados, com o objetivo de proceder à triangulação desses mesmos dados: triangulação metodológica (Barroso e Salema, 1999; Bogdan e Biklen, 1994; Cohen e Manion, 1990; Fontana e Frey, 1994; Janesick, 1994; Morse, 1994; Stake, 1994; Yin, 1994). Entre as vantagens que lhe são apontadas, destacam-se (i) a redução dos efeitos do observador (Vieira, 1999), o aumento da validade interna do estudo (Cohen e Manion, 1990; Guba, 1981, citado em Vieira, 1999; Yin, 1994) e (iii) uma compreensão mais holística do fenómeno estudado (Denzin e Lincoln, 1994; Morse, 1994). Tomando em consideração as ideias anteriores e as recomendações dos autores citados, nestes estudos de caso recorremos a (i) observação direta não participante das crianças cegas congénitas e respetivos pares videntes, em contexto escolar (aulas e recreio), (ii) conversas informais com as crianças cegas congénitas e respetivos encarregados de educação, professores titulares de turma e de apoio e (iii) análise documental dos processos individuais dos

sujeitos cegos congénitos. No que respeita à observação direta e à análise documental, procurámos:

“… anotar sistematicamente, e tão depressa quanto possível, num diário de campo todos os fenómenos e acontecimentos observados, bem como todas as informações recolhidas que estejam ligadas ao tema. Também aqui é importante não deixar de observar e de anotar os fenómenos, acontecimentos e informações aparentemente anódinos, mas que, relacionados com outros, podem revelar-se da maior importância …” (Quivy e Campenhoudt, 2005, p. 83).

Entendemos por conversas informais um tipo de entrevista em que as questões emergem do contexto imediato e são colocadas no decorrer natural dos acontecimentos, não havendo nenhuma predeterminação dos tópicos ou enunciados das questões (Tuckman, 2000). De acordo com o defendido por Lofland (1971, citado em Fontana e Frey, 1994), a conversa informal pode constituir-se como um processo muito profícuo de recolha de dados, até porque muitos dados recolhidos durante uma observação resultam de entrevistas informais. Ao longo das conversas informais procurámos adotar uma atitude não-diretiva, aberta e flexível.

A recolha de dados na escola A, frequentada pelo aluno A1, decorreu entre 25-01- 2008 e 17-06-2008, tendo-se efetuado 13 visitas ao terreno, num total aproximado de 15 horas de observação. A recolha de dados na escola B, frequentada pelo aluno B1, decorreu entre 02-04-2008 e 11-06-2008, tendo-se efetuado 10 visitas ao terreno, num total aproximado de 20 horas de observação.

Atendendo a que o conhecimento específico que cada sujeito constrói e a forma como o utiliza (conteúdo e propriedades funcionais das representações internas) resultam essencialmente da experiência, ou seja, os fatores experienciais têm prioridade sobre os mecanismos básicos (fatores genéticos) (Paivio, 1990), interessava-nos identificar um conjunto de estímulos acessíveis à experiência e com probabilidade de terem já sido experienciados pelos sujeitos da nossa população (cegos congénitos e videntes), nomeadamente em contexto escolar. Assim, dirigimos e centrámos as nossas observações e conversas informais (i) nas tarefas formais realizadas pelos alunos (sala de aula), (ii) nas tarefas informais realizadas pelos alunos (recreio) e (iii) nas suas intervenções verbais, procurando, nas palavras de Quivy e Campenhoudt (2005), “a descoberta de ideias e de pistas de trabalho” (p. 81).

Apresentamos, a título de exemplo e ilustração desta descoberta de ideias e pistas de trabalho, os processos de identificação de alguns dos estímulos. Optámos por não o fazer para todos e cada um dos estímulos, por nos parecer um processo demasiado fastidioso e redundante para o leitor e pelos exemplos apresentados, se nos figurarem suficientemente abrangentes e ilustrativos.

Após a leitura de um texto relacionado com atitudes e aquando da interpretação do mesmo em grande grupo, o aluno B1 demonstrou uma compreensão profunda do conceito de malandrice, ao ilustrar o mesmo com um exemplo real por ele vivenciado. Apesar de uma criança cega congénita nunca ter visualizado uma nuvem real, podendo experienciá-la apenas através do tato em modelos tridimensionais ou em relevo, assim como através das descrições verbais escritas ou relatadas pelos videntes, B1 revelou possuir uma representação de nuvem, como sendo algo azul. Esta conceção equívoca de nuvem, que parece confundir-se com o azul do céu, mostra o quão difícil pode ser a perceção e consequente representação de determinados fenómenos e objetos, que pelo seu tamanho, distância e ausência de som, cheiro ou sabor, dificilmente serão percecionáveis no seu estado natural por um cego. Foi este episódio e as dificuldades que revelou, que nos alertou para o interesse em estudar as representações mentais de nuvem, estrela e montanha, induzidas por estímulo verbal, para que as mesmas não fossem contaminadas pela utilização dos respetivos modelos tridimensionais ou em relevo. Por outras palavras, se déssemos à criança, por exemplo, uma estrela recortada em cartolina e com o seu tradicional formato ( ), a representação mental construída e descrita pela criança nesta situação seria, muito provavelmente, a de uma estrela com cinco bicos/braços, interessando-nos estudar não esta, mas a representação que a criança tem das estrelas reais que povoam o Universo.

Numa situação de recreio, observámos A1 a brincar com areia, apanhando a areia com uma das mãos, onde a segurava por algum tempo, para de seguida a friccionar entre as duas mãos, enquanto a deixava escorregar e cair lentamente, como se de uma ampulheta se tratasse. Esta atividade realizada por A1 de forma espontânea, conduziu-nos à ideia de disponibilizar na categoria objetos uma determinada quantidade de areia, dentro de um recipiente aberto de 40 por 20 cm, de forma a permitir a exploração táctil da areia e consequentemente, a construção e recolha da respetiva representação mental.

A professora de apoio de A1 recorria, com frequência, a figuras bidimensionais com as respetivas linhas em relevo, utilizando para tal uma tinta especial para tecidos, que aplicada em papel permite dar relevo às linhas. Trata-se de uma estratégia adequada, entre outras, à abordagem pedagógica das figuras geométricas. Ao longo de toda a vida de um cego, as mãos assumem-se como recursos privilegiados para a perceção da realidade no entanto, ao contrário da visão que é sintética e globalizadora, o tato apenas permite analisar um objeto de forma parcelar e gradual, sendo que as respetivas perceções necessitam ser integradas entre si de forma coerente, para a construção de uma representação global (Gil, 2000; Gil, 2000; Heller e Ballesteros, 2006; Nunes, 2004; Ochaita e Rosa, 1995). Assim, concebemos um conjunto de quatro estímulos a apresentar aos sujeitos, na forma de figuras em relevo. Inicialmente, apresentamos (i) um retângulo, (ii) um círculo e (iii) um triângulo, por esta ordem. A figura em relevo apresentada em último lugar representava uma casa e resultou da combinação de retângulos, círculos e triângulos, de vários tamanhos e segundo várias disposições. Procurámos, desta forma, acompanhar e estudar o percurso natural da perceção pelo tato descrita anteriormente: análises parcelares e graduais com vista à construção de uma representação global.

Numa das observações efetuadas a B1, este representou de forma enfática a condução de um veículo automóvel, gesticulando com as mãos como se estivesse a segurar o volante e emitindo sons representativos do motor do automóvel e pontualmente da buzina. Surgiu-nos, assim, a ideia de apresentar como estímulos um carro em miniatura (objeto tridimensional) e uma buzina de automóvel (som).

Esta descoberta de ideias e pistas de trabalho não aconteceu de forma automática e espontânea, ao contrário do que pode transparecer dos relatos anteriores. Exigiu uma análise a posteriori, através da leitura e releitura das notas de campo, procurando identificar as pistas de investigação mais interessantes e, à partida, mais profícuas. Deste trabalho resultou um conjunto inicial de 35 estímulos, distribuídos por cinco subcategorias (palavras abstratas, palavras concretas, objetos, figuras em relevo e sons) (anexo 1). Este conjunto inicial foi sujeito a processos de análise, validação, seleção, retirada e acrescento, processos esses que descrevemos em pormenor no ponto 6.1. do capítulo IV.