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3 Características

No documento ISBN 978-85-61990-37-4 (páginas 32-39)

O diálogo entre juízes reflete um alto grau de troca de precedentes judi-ciais entre cortes que não guardam necessariamente entre si vínculo formal de hierarquia. Entretanto, é possível a existência de um intercâmbio entre Cortes sem que haja necessariamente diálogo. Anne-Marie Slaughter fez um estudo so-bre a tipologia da comunicação transjudicial14 em que descreve situações onde a troca de precedentes pode ser observada em graus diversos.15 Nesse trabalho a autora identifica que essa comunicação pode ocorrer de três formas: horizontal, vertical, vertical-horizontal.16

A comunicação horizontal «se da entre cortes que têm o mesmo status, seja nacional ou supranacional, por meio das fronteiras nacionais ou regionais.»

17 Não há relação formal de hierarquia entre as Cortes. Um exemplo comum é a troca de precedentes entre Supremas Cortes Nacionais e a troca de citações entre a Corte Interamericana de Direitos do Homem e o Tribunal Europeu de Direitos do Homem.

A comunicação vertical tem como característica o fato da comunicação ocorrer entre Cortes de diferentes status: nacional e supranacional. 18 O exemplo mais citado ocorre na Europa, entre as Cortes nacionais e o Tribunal de Justiça da União Europeia.

Como comunicação horizontal-vertical, a autora cita o exemplo da cir-culação de precedentes que foram desenvolvidos na interação entre Cortes de diferentes status, mas que posteriormente passam a circular horizontalmente. É

14 A autora conceitua a comunicação transjudicial como “communication among courts – Wheter national or supranationl – across borders. They vary enormously, however, in form, function and degree of reciprocal engagement”. SLAUGHTER, Anne-Marie. A typology of transjudicial communications. University of Richmond. Law Review, v. 29, p. 99-138, 1994-1995. p. 101.

15 De fato, o termo utilizado pela autora parece mais apropriado do que o termo diálogo, pois abarca uma série de outras formas de interação entre as Cortes.

16 SLAUGHTER, Anne-Marie. A typology of transjudicial communications. University of Rich-mond. Law Review, v. 29, p. 99-138, 1994-1995. p. 103.

17 (Tradução livre) “[…] takes place between courts of the same status, whether national or supranational, across national or regional borders.” SLAUGHTER, Anne-Marie. A typology of transjudicial communications. University of Richmond. Law Review, v. 29, p. 99-138, 1994-1995. p. 103.

18 SLAUGHTER, Anne-Marie. A typology of transjudicial communications. University of Rich-mond. Law Review, v. 29, p. 99-138, 1994-1995. p. 106.

o caso de uma decisão na qual um fundamento jurídico desenvolvido por uma corte nacional passa a circular entre cortes supranacionais. Trata-se apenas da difusão do precedente entre cortes sem necessariamente se detectar apenas um sentido de transmissão do precedente.

Outra classificação trazida pela autora se refere ao grau de reciprocidade observado na comunicação, este poderia se configurar: um diálogo direto, mo-nólogo, diálogo indireto.

O diálogo direto pressupõe a citação cruzada entre as Cortes sobre o mesmo tema, como se uma corte respondesse a outra quanto à aplicabilidade e alcance de determinado argumento jurídico. Entre a Corte São José da Costa Rica e o Tribunal Europeu de Direitos humanos o diálogo ainda está aquém do esperado.19

No âmbito nacional não é requisito para existência de diálogo entre juí-zes que as Cortes apresentem a mesma tradição jurídica. Pode-se questionar a possibilidade de um verdadeiro diálogo sobre o conteúdo de um direito quando as decisões examinadas não partem de uma gramática comum fornecida pela mesma família de direito. Apesar de facilitar a comunicação, a existência de um regime semelhante de fontes e conteúdo similar quanto à função e limites do juiz na solução do litígio, não são determinantes para a existência do diálogo.

No monólogo não há troca, apenas a citação de um precedente de outra corte. Os juízes fazem uso de uma citação de uma decisão estrangeira para casos nos quais o problema apresentado ainda não tenha solução em sua jurisdição ou caso entenda ser possível outra solução além daquela já disseminada em sua ju-risdição. Nessa situação, tenta-se legitimar a decisão por meio de uma citação de um fundamento elaborado por Cortes que gozam de prestigio. Trata-se, muitas vezes, de um argumento de autoridade.20

No diálogo indireto o argumento utilizado por uma corte é rediscutido entre outras duas ou mais cortes sem necessariamente haver a participação da

19 Mas em determinados temas, como o caso desaparecimento forçado, o diálogo pode ser ob-servado.

20 ALLARD, Julie. La séparation des pouvoirs à l’heure de la mondialisation: quelle place pour les juges? Disponível em: <http://mipsum.be/CentrePerelman/spip.php?article742&lang=fr>. Acesso em: 26 set. 2014; NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2009.

Corte que desenvolveu o fundamento. 21

A valoração da circulação de precedentes entre cortes não é unânime. De um lado se vê o “empoderamento” dos juízes como uma usurpação do poder legislativo, um risco a soberania dos Estados e um risco para a segurança das relações jurídicas.22 De outro, o uso de citações cruzadas é visto como um meca-nismo informal de coerência entre diferentes ordens jurídicas.23

A controvérsia sobre o “diálogo entre juízes” nos EUA pode ser percebida por meio das discussões calorosas provocadas cada vez que a Suprema Corte americana cita uma decisão estrangeira. Há implícito nessa discussão um exame sobre a legitimidade que teria a valoração e interpretação de juiz de uma corte estrangeira sobre a aplicação dos direitos garantidos na Constituição americana.

Outra crítica ao fenômeno se refere à falsa impressão passada com a ci-tação da decisão estrangeira de que foi o juiz que se interessou em buscar refe-rências em outras Cortes. Para Ludovic Hennbel e Arnaud Van Waeyenberge as citações de tribunais estrangeiros são conhecidas pelo juiz no processo por intermédio do advogado de uma das partes: «Nesse sentido, os juízes não tem ou pouco tem a ocasião de realizar eles mesmos uma pesquisa de direito comparado que lhe permitam dialogar de maneira autônoma, no sentido pleno do termo.»24

Controvérsias à parte, fica cada vez mais evidente que o papel do juiz vem sendo alterado pelo processo de globalização. Julie Allard, entende que a globa-lização tem reavivado as contradições entre o papel dos juízes e a democracia. Para autora,

«Os juízes devem igualmente assegurar a compatibilidade entre uma política interna e suas referências externas, entre

21 SLAUGHTER, Anne-Marie. A typology of transjudicial communications. University of Rich-mond. Law Review, v. 29, p. 99-138, 1994-1995. p. 113.

22 POSNER, Richard. No thanks, we already have our laws. Legal Affairs, jul./aug. 2004. Dis-ponível em: <http://www.legalaffairs.org/issues/July-August-2004/feature_posner_julaug04. msp>. Acesso em: 29 set. 2014.

23 DELMAS-MARTY, Mireille. La mondialisation et la montée en puissance des juges. In: LE DIALOGUE des juges. Bruxelles: Bruylant, 2007. (Les cahiers de L’Institut D’Études Sur La Justice, 9).

24 (Tradução livre) “En ce sens, les juges n’ont pas ou peu l’occasion d’opérer eux-mêmes l’inves-tigation de droit comparé qui leur permettrait de dialoguer de façon autonome, au sens plein du terme » P. 719 nota de rodapé 41. HENNEBEL, Ludovic; VAN WAYENBERGE, Arnaud. Réflexions Sur Le Commerce Transnational Entre Juges. In:HACHEZ, Isabelle et al (Dir.). Les sources du droit revisitées. Limal: Anthemis, 2013. p. 711- 737. v. 2. Disponível em: <http:// ssrn.com/abstract=2211183>. Acesso em: 26 set. 2014.

a particularidade da cultura judiciária e os valores univer-sais. Essa perspectiva interna/externa do juiz lhe permite criar uma relação e fazer progredir seu próprio sistema, como ela pode também afastá-lo de toda legitimidade de-mocrática. »25

O receio da autora é justificável. O juiz tem ocupado cada vez mais um papel relevante como intérprete de dois mundos sem que se faça uma análise devida sobre as condições, limites e impactos desse exame judicial. Aqui igual-mente necessário considerar particularigual-mente as possibilidades de tais decisões provocarem alterações estruturais na ordem jurídica ou nas próprias instituições ou influenciarem tais alterações. Em realidade, a questão da busca da concreti-zação de valores universais nos coloca diante da análise do diálogo entre juízes, sob o prisma da concorrência entre diferentes culturas jurídicas na afirmação daquilo que seja «universal» e da democracia.

A partir da perspectiva ideal de justiça universal que acompanha o diá-logo entre juízes, BenoîtFrydman estuda esse fenômeno. O autor analisa, por um lado, a perspectiva implícita de uma justiça universal revelada nesse diálogo entre juízes em busca do «ideal de um direito comum [...], um direito que não existe, senão como ideal, como uma ideia da razão, mas que os juristas por um efeito performático que eles tem o costume de atuar, contribuem a fazer com que exista por suas referências». 26 Nesse sentido o diálogo entre juízes auxilia e tem um papel efetivo como instância crítica para as alterações de determinadas deci-sões fundadas na tradição e preconceitos utilizando-se da argumentação dos va-lores universais. Por outro lado, o autor constata que essa busca por uma justiça universal necessariamente remete a uma reflexão em torno de três questões: em primeiro lugar há a discussão sobre a emancipação do juiz em relação ao próprio

25 (Tradução livre) “Les juges doivent également assurer la compatibilité entre une politique interne et ses références extérieures, entre la particularité de la culture judiciaire et des valeurs universelles. Cette place d’intériorité/extériorité du juge lui permet de créer du lien et de faire progresser son propre système, comme elle peut tout aussi bien l’éloigner de toute légitimité démocratique. » p. 24 nota de rodapé 51. ALLARD, Julie. La séparation des pouvoirs à l’heure de la mondialisation: quelle place pour les juges? Disponível em: <http://mipsum.be/Centre-Perelman/spip.php?article742&lang=fr>. Acesso em: 26 set. 2014.

26 (Tradução livre) «idéal d'un droit comum [...],un droit qui n'existe pas, sinon comme idéal, comme une idée de la raison, mais que les juristes, par un effet performatif dont ils ont cou-tume de jouer, contribuent à faire exister en s'y référant. ». FRYDMAN, Benoît. Conclusion : le dialogue international des juges et la perspective idéale d’une justice universelle. Disponível em: <http://www.philodroit.be/Le-dialogue-international-des?lang=fr>. Acesso em: 12 out. 2014.

Estado, em segundo lugar pode ser analisada a questão da emergência de um poder judiciário cosmopolítico e, por fim há a intensificação pela mundialização da concorrência e de lutas entre ordens e culturas jurídicas.

Nesse contexto de globalização ou mundialização judiciária, no qual o diálogo entre juízes ocorre tanto por meio de procedimentos formais, como in-formais, tais como as associações, as redes e as novas tecnologias, os capítulos seguintes visam abordar em diferentes áreas aspectos diversos desse fenômeno do diálogo entre juízes.

Referências

ALLARD, Julie. La séparation des pouvoirs à l’heure de la mondialisation: quelle place pour les juges? Disponível em: <http://mipsum.be/CentrePerelman/spip. php?article742&lang=fr>. Acesso em: 26 set. 2014.

ALLARD, Julie; VAN WAEYENBERGE, Arnaud. De la bouche à l’oreille: dialogue des juges et montée en puissance de la fonction de juger. Revue interdisciplinaire d’études juridiques, Paris, n. 61, p. 109-129, 2008.

CHEVALLIER. Mondialisation du droit ou droit de la mondialisation. In: MORAND, Charles-Albert (dir.). Le droit saisi par la mondialisation. Bruxelles: Bruylant, 2001. DELMAS-MARTY, Mireille. La mondialisation et la montée en puissance des juges. In: LE DIALOGUE des juges. Bruxelles: Bruylant, 2007. (Les cahiers de L’Institut D’Études Sur La Justice, 9)

FRYDMAN, Benoît. Conclusion : le dialogue international des juges et la perspective idéale d’une justice universelle. Disponível em: <http://www.philodroit.be/Le-dialogue-international-des?lang=fr>. Acesso em: 12 out. 2014.

HENNEBEL, Ludovic; VAN WAYENBERGE, Arnaud. Réflexions Sur Le Commerce Transnational Entre Juges. In:HACHEZ, Isabelle et al (Dir.). Les sources du droit revisitées. Limal: Anthemis, 2013. p. 711- 737. v. 2. Disponível em: <http://ssrn.com/ abstract=2211183>. Acesso em: 26 set. 2014.

NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2009.

POSNER, Richard. No thanks, we already have our laws. Legal Affairs, jul./aug. 2004. Disponível em: <http://www.legalaffairs.org/issues/July-August-2004/feature_posner_ julaug04.msp>. Acesso em: 29 set. 2014.

SLAUGHTER, Anne-Marie. A global community of courts. Harvard International Law Journal, Cambridge, v. 44, n. 1, p. 191-220, winter 2003.

SLAUGHTER, Anne-Marie. A typology of transjudicial communications. University of Richmond. Law Review, v. 29, p. 99-138, 1994-1995.

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Os tribunais internacionais contempo-râneos e a busca da realização do ideal de justiça internacional. Revista da Faculdade de Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 57, p. 37-68, jul./dez. 2010.

No documento ISBN 978-85-61990-37-4 (páginas 32-39)