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3 Como se dá o diálogo de fontes

No documento ISBN 978-85-61990-37-4 (páginas 42-45)

A multiplicidade de fontes jurídicas sempre acompanhou o Direito, sendo que este provavelmente não conta com uma origem exclusiva. O que ressalta atual-mente é a relevância das fontes externas. A invocação dos textos normativos aliení-genas e das decisões judiciais estrangeiras e internacionais sobre questões jurídicas semelhantes retrata o emprego de outras fontes de Direito além das de Direito interno. Em termos de sociologia jurídica, trata-se do fenômeno da “transferência de direito” ou “transplante jurídico”, que inclui o “empréstimo jurídico”.6

A influência de normas, jurisprudência e doutrina alienígenas é marcante nos vários ramos do Direito. O Direito Constitucional, concebido sob a perspec-tiva da autonomia (soberania nacional) e, por conseguinte, avesso a hierarqui-zações entre ordenamentos jurídicos de Estados independentes, tem buscado um relacionamento entre iguais, que se apresenta sob diversos rótulos: intercons-titucionalidade7, pensada numa perspectiva comunitária, em que se detecta a “existência de uma rede de constituições de estados soberanos”; transconsitucio-nalismo8, “cross-constitucionalismo9, constitucionalismo supranacional10, consti-tucionalismo internacional11. Trata-se de uma característica do neoconstitucio-nalismo: a “tendência ‘expansiva’” do constitucionalismo, um constitucionalismo

as decisões do Tribunal de Justiça Europeu”.

6 SABADELL, Ana Lucia. Manual de sociologia jurídica. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 106. Para a autora, contudo, a definição de “empréstimo jurídico” é restrita ao Direito estrangeiro, ou seja, não comporta o Direito Internacional: a “assimilação voluntária de deter-minadas normas provenientes do direito de outras nações”

7 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Bracosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos so-bre a historicidade constitucional. Coimbra: Almedina, 2006. p. 266-267.

8 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: WMF M. Fontes, 2009. p. 146. Ao tra-tar das relações entre o Direito Internacional Público e o Direito estatal, o autor refere-se ao esforço com vista à formação de uma racionalidade transversal, que se mostra suportável para ambas as ordens jurídicas envolvidas

9 TAVARES, André Ramos. Modelos de uso da jurisprudência constitucional estrangeira pela justiça constitucional. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC, Belo Horizonte, ano 3, n. 12, p. 17-55, out./dez. 2009. p. 17-55.

10 PAGLIARINI, Alexandre Coutinho. Tratado de Lisboa: a significação de um novo Direito Constitucional? Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC, Belo Horizonte, ano 3, n. 11, p. 115-135, jul./set. 2009. p. 126.

11 ROTHENBURG, Walter Claudius. Controle de constitucionalidade e controle de conven-cionalidade: o caso brasileiro da lei de anistia. In: PAGLIARINI, Alexandre Coutinho; DI-MOULIS, Dimitri (Coord.). Direito constitucional e internacional dos direitos humanos. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 337.

transnacional12 ou cosmopolitismo constitucional.13

A diversidade de fontes do Direito externas e a análise da experiência ju-rídica alheia não devem conduzir a uma singela apropriação e imitação. O exer-cício comparativo é um trabalho a mais com vistas à obtenção da melhor res-posta aos problemas apresentados, sendo uma sofisticação da aplicação judicial. Nesse sentido, ele torna mais exigente a atuação dos profissionais do Direito e apresenta-se como o oposto da alternativa simplista e acrítica de mera imitação.

Ademais, é óbvio que todo o material utilizado na interpretação jurídica e especialmente o material externo precisa passar por um juízo crítico em que se verificam as condições de adaptação ao contexto local, sempre respeitadas as particularidades de cada sociedade. Afinal, o emprego da comparação não conduz necessariamente à adoção de parâmetros vinculantes (obrigatórios), mas antes a uma diversificação de pontos de referência que poderão servir à busca da melhor solução.14

A proteção ao consumidor, por exemplo, merece maior intensidade onde o grau de informação da população é baixo e onde a concorrência é prejudi-cada pela dominação de poucos e poderosos grupos econômicos; experiências de sociedades economicamente liberais com capitalismo avançado haverão, en-tão, de ser percebidas com a devida reserva. A cultura fortemente arraigada e o exemplo bem-sucedido da justiça administrativa em sistemas europeus como o da França são admiráveis, mas não desmerecem a opção pela jurisdição judicial exclusiva, como é o caso no Brasil. A intensidade da liberdade de expressão nos Estados Unidos é uma referência segura para os direitos fundamentais e para a democracia, sendo indispensável conhecer a doutrina e a jurisprudência norte--americanas, o que não significa que seus padrões de tolerância em relação às diversas formas de discurso devam ser adotados universalmente.

Todos os profissionais do Direito devem ter a atenção voltada para o Di-reito estrangeiro e para o DiDi-reito Internacional. Essa não é uma incumbência

12 ARAGON REYES, Manuel. La constitución como paradigma. In: CARBONELL, Miguel (Coord.). Teoría del neoconstitucionalismo: ensayos escogidos. Madrid: Trotta, 2007. p. 38-39. 13 SUNSTEIN, Cass R. A constitution of many minds: why the founding document doesn’t mean

what it meant before. Princeton: Princeton University Press, 2009. p. 188-189.

14 JACKSON, Vicki C. Progressive constitucionalism and transnational legal discourse. In: BALKIN, Jack M.; SIEGEL, Reva B. The constitution in 2020. New York: Oxford University Press, 2009. p. 292.

apenas dos juízes ao decidirem, mas igualmente de advogados privados (quer atuem contenciosa, quer consultivamente) e públicos (procuradores e defenso-res públicos), de membros do Ministério Público, de professodefenso-res...

Algumas áreas do Direito estão mais dispostas a receber a influência es-trangeira, como sempre ocorreu, no campo do Direito Privado, com o Direito Comercial (Societário), por exemplo, e no campo do Direito Público, com o Di-reito Constitucional. Todavia, com a crescente expansão do DiDi-reito Internacio-nal e com as facilidades de informação a respeito do Direito estrangeiro, já não existe ramo jurídico que deixe de sofrer o influxo das fontes externas.

A contribuição que o diálogo entre fontes jurídicas internas e externas ofe-rece dá-se tanto no campo da doutrina, quanto no da prática do Direito. Note-se que essa distinção é muito relativa, pois não existe prática jurídica sem doutrina que a sustente, nem doutrina – neste território de ciência social aplicada que é o Direito – sem a perspectiva da realidade com seus problemas concretos. Ade-mais, a doutrina também é uma prática, que exercitamos e realizamos cotidia-namente. Voltando, contudo, à clássica distinção, verifica-se que a influência da doutrina externa sempre se fez sentir e que a teoria é considerada mais universal e abstrata, portanto menos condicionada às peculiaridades locais. É, assim, no terreno da prática que o diálogo de fontes e a análise das experiências jurídicas alheias vêm acontecendo de modo mais intenso e significativo. Este estudo visa enfatizar a dimensão pragmática da comparação jurídica, que se apresenta como importante ferramenta do profissional do Direito.

Na prática, portanto, o argumento do Direito estrangeiro e do Direito In-ternacional torna-se um importante fator de convencimento, capaz de oferecer dados relevantes para a construção de respostas adequadas. E isso funciona de duas maneiras. A uma, como um método de trabalho jurídico, em que os opera-dores do Direito pesquisam as fontes externas e raciocinam comparativamente. O método comparativo chega a ser alçado à condição de “quinto método de exe-gese depois do cânone interpretativo de Savigny15 – somando-se aos métodos gramatical, sistemático e histórico, aos quais se acrescentou posteriormente o

te-15 LÓPES PINA, Antonio. Prólogo: la vocación cívica universal de Peter Häberle. In: HÄBER-LE, Peter. Libertad, igualdad, fraternidad: 1789 como historia, actualidad y futuro del Estado constitucional. Madrid: Trotta, 1998.p. 23.

leológico (finalístico).16 A duas, como informações materialmente relevantes para o debate e a solução de problemas. Para utilizar uma dicotomia bastante comum no Direito, o diálogo de fontes e a análise das experiências jurídicas alheias têm importância do ponto de vista da forma (melhor dito, do modo) e do ponto de vista do conteúdo.

No documento ISBN 978-85-61990-37-4 (páginas 42-45)