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A Declaração Universal de 1948 e a concepção contempo- concepção contempo-rânea dos direitos humanos

No documento ISBN 978-85-61990-37-4 (páginas 163-168)

9 A contribuição Do D ireito i nternAcionAl Dos

3 A Declaração Universal de 1948 e a concepção contempo- concepção contempo-rânea dos direitos humanos

A Declaração Universal dos Direitos Humanos13, ponto de partida do Sis-tema Global de Proteção dos Direitos Humanos, ao acolher a concepção de que

12 O Brasil deve levar a sério seus compromissos internacionalmente assumidos, dando cumpri-mento aos tratados de proteção dos direitos humanos, celebrados por ato de soberania. Não é possível aceitar o desrespeito aos direitos humanos e a impunidade sob a justificativa da prevalência da soberania nacional em detrimento da proteção da pessoa humana. É preciso reconhecer que os compromissos assumidos pelo Brasil em relação aos direitos humanos, tendo sido firmados no livre gozo de sua soberania, não podem deixar de ser cumpridos justamente sob a justificativa da prevalência da soberania nacional.

13 A Declaração Universal foi aprovada pela Resolução nº 217 A (III), da Assembleia Geral da ONU, em 10 de dezembro de 1948, contando com aprovação unânime de 48 dos então 58 Estados membros da ONU (note-se que nenhum Estado votou contra, oito se abstiveram e dois estavam ausentes na ocasião). Sobre a Declaração, ver os comentários de PIOVESAN, Flávia C. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 2006. p. 142 e ss; STEINER, Henry; ALSTON, Philip. International human rights in context,

law, politics and morals. New York: Oxford University Press, 1996. p. 119 et seq.; TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O legado da Declaração Universal e o futuro da proteção inter-nacional dos direitos humanos. In: AMARAL JÚNIOR, Alberto do; PERRONE-MOISÉS, Cláudia (Orgs.). O cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. São Paulo: EDUSP, 1999. p. 13-51.

esses direitos são inerentes à pessoa humana, reconhece, além do princípio de sua universalidade, o fato de que estes são logicamente anteriores a toda e qual-quer forma de organização política ou social, não podendo sua proteção ficar restrita à ação do Estado14.

A consequência dessa nova concepção é a flexibilização do próprio conceito de soberania nacional. Abandona-se a ideia de que a forma pela qual o Estado trata seus nacionais constitui assunto de interesse e jurisdição estritamente nacionais15. Com o reconhecimento de sua universalidade, os direitos humanos passam a ser concebidos como tema de legítimo interesse internacional16, importante passo em direção ao reforço da proteção dos direitos humanos, já que, muitas vezes, são os Estados seus principais violadores. A ausência de proteção internacional deve ser rechaçada por representar aumento da vulnerabilidade da pessoa humana.

Além da universalidade, a Declaração de 1948 prevê, em um único docu-mento, direitos civis e políticos (arts. 3º a 21) e direitos econômicos, sociais e cultu-rais (arts. 22 a 28)17 até então objetos de dois discursos que não se integravam

ple-14 Cf. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O legado da Declaração Universal e o futuro da proteção internacional dos direitos humanos. In: AMARAL JÚNIOR, Alberto do; PER-RONE-MOISÉS, Cláudia (Orgs.). O cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. São Paulo: EDUSP, 1999. p. 15-16.

15 Sobre a flexibilização do conceito de soberania, são esclarecedores os comentários de Lind-gren Alves: "Ao subscrever uma convenção internacional sobre direitos humanos, ao partic-ipar de organizações regionais sobre o assunto, ou, conforme é hoje interpretação corrente, pelo simples fato de integrar-se às Nações Unidas (...), os Estados abdicam soberanamente de uma parcela da soberania, em sentido tradicional, obrigando-se a reconhecer o direito da comunidade internacional de observar e, consequentemente, opinar sobre sua atuação inter-na, sem contrapartida de vantagens concretas" (ALVES, Lindgren. Os direitos humanos como tema global. São Paulo: Perspectiva, 1994. p. 5).

16 Cf. PIOVESAN, Flávia C. Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 78. O valor jurídico dos tratados e seu impacto na ordem internacional.

17 Sobre os direitos elencados na Declaração, observa Dalmo Dallari: “Indo muito além da simples preocupação com a conservação de direitos, a Declaração faz a enumeração dos direitos fun-damentais e, no art. 22, proclama que todo homem tem direito à segurança social e à realização de direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvi-mento de sua personalidade. O exame dos artigos da Declaração revela que ela consagrou três objetivos fundamentais: a certeza dos direitos, exigindo que haja uma fixação prévia e clara dos direitos e deveres, para que os indivíduos possam gozar dos direitos ou sofrer imposições; a segurança dos direitos, impondo uma série de normas tendentes a garantir que, em qualquer circunstância, os direitos fundamentais serão respeitados; a possibilidade dos direitos, exigindo que se procure assegurar a todos os indivíduos os meios necessários à fruição dos direitos, não se permanecendo no formalismo cínico e mentiroso da afirmação de igualdade de direitos onde grande parte do povo vive em condições sub-humanas”. (DALLARI, Dalmo de Abreu. Elemen-tos de teoria geral do Estado. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 179).

namente, e introduz a ideia da indivisibilidade e interdependência entre essas duas categorias18. Afinal, sem condições de vida digna, os direitos de liberdade tornam-se meramente formais. Por outro lado, a satisfação dos direitos sociais sem a liberdade, tende ao sufocamento do indivíduo pela sociedade e pelo Estado, limitando o espaço conferido ao desenvolvimento de suas potencialidades e interesses19.

Dessa forma, não se pode afirmar ser mais importante proteger os direitos civis e políticos do que os direitos sociais, considerando que Até porque, um não se realiza sem o outro. Isso quer dizer que, à luz da concepção contemporânea dos direitos humanos, não há como hierarquizar direitos individuais (civis e po-líticos) e direitos econômicos, sociais e culturais.20

Do que foi exposto, pode-se perceber que, hoje, prevalece, no âmbito in-ternacional, o entendimento de que, se os direitos humanos não abrangem ape-nas direitos individuais, mas também direitos de grupos sociais, organizações, associações21, as teorias liberal e social devem ser conjugadas para dar conta de sua extensão. Há que se ressaltar, portanto, a complementaridade entre as dis-tintas categorias de direitos e rechaçar as concepções que procuram estabelecer uma relação de antinomia entre ambas.

18 Na visão de Fábio Konder Comparato, os direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais constituem um conjunto uno e indissociável. Isso quer dizer que "a liber-dade individual é ilusória sem um mínimo de igualliber-dade social; e a igualliber-dade social imposta com o sacrifício dos direitos civis e políticos acaba engendrando, rapidamente, novos privilé-gios econômicos e sociais". (COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo, Saraiva, 1999.p. 305).

19 Sobre a concepção dos direitos humanos como um todo indivisível, assevera Flávia Piovesan, "Além da universalidade dos direitos humanos, a Declaração de 1948 ainda introduz a indi-visibilidade desses direitos ao ineditamente conjugar o catálogo dos direitos civis e políticos com o dos direitos econômicos, sociais e culturais". (PIOVESAN, Flávia C. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 2006. p. 131).

20 "Em perspectiva histórica, é altamente significativo que a Declaração Universal de 1948 tenha propugnado uma concepção necessariamente integral ou holística de todos os direitos hu-manos. Transcendendo as divisões ideológicas do mundo de seu próprio tempo, situou assim no mesmo plano todas as 'categorias' de direitos - civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. Esse enfoque seria retomado duas décadas depois, na I Conferência Mundial de Direitos manos (1968), e nele se insistiria mais recentemente na II Conferência Mundial de Direitos Hu-manos (1993)", cf. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O legado da Declaração Universal e o futuro da proteção internacional dos direitos humanos. In: AMARAL JÚNIOR, Alberto do; PERRONE-MOISÉS, Cláudia (Orgs.). O cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. São Paulo: EDUSP, 1999. p. 18.

21 O processo de expansão da titularidade dos direitos humanos representa uma linha ascen-dente, tendo evoluído para abranger os direitos dos povos, os direitos da humanidade e até mesmo os direitos das futuras gerações.

Nesse sentido, vale um comentário sobre a teoria da sucessão geracional dos direitos humanos, com base na qual o conjunto desses direitos foi dividido em três gerações distintas (para alguns autores, seria possível distinguir até mes-mo quatro gerações22). De acordo com essa posição, os direitos civis e políticos (liberdades individuais) fariam parte da “primeira geração” de direitos humanos. Os direitos econômicos, sociais e culturais estariam enquadrados na “segunda geração” e a terceira englobaria os direitos coletivos da humanidade (direito ao meio ambiente, à paz, ao desenvolvimento, à autodeterminação dos povos, etc.) Apesar de ter sido aceita por boa parte da doutrina quando do seu surgimento, essa classificação vem sendo duramente criticada.

O ataque à teoria das gerações está intimamente ligado à simbologia que o ter-mo suscita, contribuindo para embasar a tese de que haveria uma relação de hierar-quia entre direitos civis e políticos, de um lado, e econômicos, sociais e culturais, de outro. Isso porque o termo “gerações” pode indicar duas grandezas que se sucedem no tempo, com prevalência de uma – a antecessora – sobre a outra – a sucessora. A metáfora biológica da sucessão em gerações obscureceu a relação de interdependên-cia constante entre essas várias dimensões ou categorias dos direitos humanos.

Ao mencionar o valor da teoria das gerações, Maria Victoria Benevides assinala que a expressão deve ser utilizada em seu sentido de evolução histórica e não no sentido biológico, pois o conjunto dos direitos humanos reconhecidos em uma determinada época não é superado com a chegada de uma nova gera-ção, continua incorporado na geração seguinte23. A autora reconhece, portanto, a complementaridade entre os direitos humanos, característica que deve orien-tar a interpretação a respeito da classificação. O constitucionalista Paulo Bonavi-des também admite a divisão dos direitos humanos em gerações, sem com isso negar a inter-relação entre suas dimensões ou categorias24.

Em recusa mais radical dessa metáfora, Cançado Trindade aponta que

“Os chamados direitos de solidariedade, historicamente

22 São direitos fundamentais de quarta geração o direito à democracia, à informação e ao plural-ismo (cf. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 524 et seq.).

23 SOARES, Maria Victoria de Mesquita Benevides. Cidadania e direitos humanos.Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 104, p. 39-46, jul. 1998. Disponível em: <http://educa.fcc.org.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0100-15741998000200003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 21 out. 2014. p. 45.

mais recentes, em nosso entender interagem com os direitos individuais e sociais, não os ‘substituem’, distintamente do que a invocação inadequada da imagem do suceder de ge-rações pretenderia ou pareceria insinuar”25.

Na visão do autor, os inconvenientes da concepção sugerida pela imagem jus-tificariam sua completa rejeição. De fato, esse raciocínio ressalta apenas o lado negativo da classificação, atribuindo caráter artificial à teoria. Ao justificar sua posição, é interessante notar, ele destaca a relação de interdependência entre os direitos humanos, também reforçada pelos demais autores.

Convém ressaltar, ainda, o questionamento de Cançado Trindade quan-to ao valor da analogia da sucessão geracional de direiquan-tos do ponquan-to de vista da evolução histórica do direito internacional nesta área. No tocante à superveni-ência dos direitos sociais em relação aos direitos civis e políticos, ele assevera: “Tudo indica haver um certo descompasso entre a evolução da matéria no di-reito interno e no didi-reito internacional, evolução essa que aqui não se deu pari passu. Assim, por exemplo, enquanto no direito interno (constitucional) o reco-nhecimento dos direitos sociais foi historicamente posterior aos direitos civis e políticos, no plano internacional ocorreu o contrário, conforme exemplificado pelas sucessivas e numerosas convenções internacionais do trabalho, a partir do estabelecimento da OIT em 1919, muitas das quais precederam a adoção de con-venções internacionais mais recentes voltadas aos direitos civis e políticos”26.

Independentemente da polêmica em torno da teoria das gerações de di-reitos, o importante é que, de acordo com a concepção contemporânea dos direi-tos humanos, uma “geração” de direidirei-tos não vem substituir a outra, mas interagir com ela permanentemente, em relação simétrica. Por isso, embora a teoria das gerações apresente certo valor didático e metodológico, as interpretações equi-vocadas que suscita são suficientes para evitar sua utilização ou, no mínimo, exigir cautela em seu emprego.

25 Cf. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O legado da Declaração Universal e o futuro da proteção internacional dos direitos humanos. In: AMARAL JÚNIOR, Alberto do; PER-RONE-MOISÉS, Cláudia (Orgs.). O cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. São Paulo: EDUSP, 1999. p. 41.

26 Cf. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O legado da Declaração Universal e o futuro da proteção internacional dos direitos humanos. In: AMARAL JÚNIOR, Alberto do; PER-RONE-MOISÉS, Cláudia (Orgs.). O cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. São Paulo: EDUSP, 1999.

Além da concepção contemporânea dos direitos humanos, a Declaração Universal também trouxe importantes diretrizes relativas a direitos específicos. No que diz respeito à proteção do direito à educação, o art. 26 já enunciava im-portantes princípios, tais como o da gratuidade, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. Estabeleceu, também, que a educação deveria ser orientada para o desenvolvimento da personalidade humana e para o fortalecimento do respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, devendo promover a compre-ensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos. Garantiu, ainda, aos pais, o direito de escolher o gênero de educação de seus filhos. Não obstante a importância da Declaração e dos princípios nela previstos, houve muita polêmica em torno da determinação da sua natureza jurídica e do caráter vinculante de seus dispositivos.

O objetivo de oferecer maior concretude jurídica aos direitos nela conti-dos levou à decisão de elaborar um novo documento, cuja natureza jurídica não pudesse ser questionada. A dicotomia então vigente entre dois blocos ideologica-mente opostos - capitalistas e socialistas - fez com que fossem elaborados dois do-cumentos distintos: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 196627.

4 O Pacto Internacional de Proteção dos Direitos Econômicos,

No documento ISBN 978-85-61990-37-4 (páginas 163-168)