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SUMÁRIO

Capítulo 1 – O comportamento dos bancos em uma economia monetária

1.3. Fundamentação teórica para a abordagem da firma bancária sob uma perspectiva pós-keynesiana

1.3.1. Caracterização de uma economia monetária

Diferentemente da abordagem da teoria clássica, que trata a moeda como um mero meio de troca, que facilita e agiliza as transações econômicas, seja na esfera industrial ou financeira, a moeda em Keynes representa um ativo em si mesmo, que afeta motivos e decisões. Nessa acepção, segundo Carvalho (1992), a moeda deixa de ser percebida como um simples meio de circulação, passando a representar um ativo que carrega poder de compra em sua forma mais pura, o qual pode ser gasto em uma data futura e indeterminada, de acordo com a conveniência de seu detentor, permitindo-lhe postergar as suas decisões de gasto.

De acordo com Davidson (2011), a moeda pode ser definida como o meio que liquida compromissos contratuais à vista e com vencimentos em datas futuras. O autor a denomina de “liquidity time machine”, em razão de a mesma carregar tanto poder de compra à vista, quanto poder de liquidação de contratos com vencimento futuro. Porém, o autor ressalta que, na ausência de incerteza fundamental, a sua função de “transportar” liquidez ao longo do tempo seria supérflua, o que faz sentido, pois, em um ambiente em que não houvesse incerteza, não haveria a necessidade de os agentes econômicos deterem moeda para se precaverem contra imprevistos futuros ou para especularem com a compra e a venda de ativos.

A faculdade que a moeda tem de “transportar” liquidez ao longo do tempo, representando poder de compra em sua forma mais pura, em um ambiente em que prevalece a incerteza fundamental, é o que lhe permite afetar motivos e decisões dos agentes econômicos, sendo essa a base para a concepção de não neutralidade da moeda, uma das principais características de uma economia monetária e aquela que a distingue de uma economia de trocas reais, em que a moeda exerce apenas a função de meio de circulação. Keynes, ao desenvolver o conceito de economia monetária, afirma:

The distinction which is normally made between a barter economy and a monetary economy depends upon the employment of money as a convenient means of effecting exchanges – as an instrument of great convenience, but transitory and neutral in its effect. […] It is not supposed to affect the essential nature of the transaction from being, in the minds of those making it, one between real things, or to modify the motives and decisions of the parties to it. Money, that is to say, is employed, but is treated as being in some sense neutral.

That, however, is not the distinction which I have in mind when I say that we lack a monetary theory of production. An economy, which uses money but uses it merely as a neutral link between transactions in real things and real assets and does not allow it to enter into motives or decisions, might be called – for want of a better name – a real-exchange economy. The theory which I desiderate would deal, in contradistinction to this, with an economy in which money plays a part of its own and affects motives and decisions and is, in short, one of the operative factors in the situation, so that the course of events cannot be predicted, either in the long period or in the short, without a knowledge of the behaviour of money between the first state and the last. And it is this which we ought to mean when we speak of a monetary economy (Keynes, 1933a, pp. 408-409).

Outra característica fundamental de uma economia monetária da produção (ou economia empresarial) é que o processo de produção somente será iniciado se os retornos monetários esperados da venda dos produtos forem no mínimo iguais aos custos monetários necessários para a sua produção (Keynes, 1933b). De fato, o objetivo primordial das firmas é o de obter retornos superiores aos seus custos, com o propósito de produzir lucros e de valorizar o seu capital.

Segundo Carvalho (1992), as firmas em uma economia monetária da produção têm como objetivo a geração de riqueza em termos monetários e não em termos de mais bens, com o propósito de gerar utilidade para os seus proprietários. Isso decorre do fato de a moeda ser a representação da riqueza por excelência, pois o poder de compra que embute pode ser convertido imediatamente em uma infinidade de usos. Sobre a característica essencial de uma economia monetária ou empresarial, Keynes (1933c, p. 89) afirma: “The firm is dealing throughout in terms of

sums of money. It has no object in the world except to end up with more money than it started with. That is the essential characteristic of an entrepreneur economy”.

Outro fator a ser salientado refere-se ao fato de as firmas tomarem as suas decisões de produção e de investimento com base em expectativas de demanda. Assim, esses agentes assumem antecipadamente compromissos com o pagamento dos insumos necessários à produção, incluindo trabalho; ou ainda, compromissos com o pagamento de bens de capital, caso desejem ampliar a sua capacidade produtiva. Todavia, o processo de produção e/ou a maturação de um novo investimento tomam tempo, com a incerteza pairando sobre as decisões de produzir e de investir.

Carvalho (1992) afirma: “Firms operate on their expectations of demand,

not on commitments assumed by the ‘market’”, ou seja, as firmas não têm certeza se

sucedidos, uma vez que suas expectativas podem não ser correspondidas pelo mercado. Nesse sentido, produzir e investir, em uma economia capitalista, são decisões de caráter inevitavelmente especulativo, tomadas em um ambiente de incerteza fundamental.

Além disso, em uma economia empresarial não há qualquer coordenação entre os seus diversos agentes a respeito do que deva ser produzido, a que preços, em que quantidades e em que tempo, uma vez que o processo produtivo é fragmentado em diversas atividades, as quais envolvem desde a produção de matérias primas à de bens finais, passando pela produção de bens intermediários, sendo que as mesmas são executadas por inúmeros produtores independentes em várias localidades.

Com a intenção de se reduzir perdas e riscos decorrentes dessa falta de coordenação entre as decisões dos diversos agentes econômicos, são criadas instituições que lhes possibilitam lidar melhor com a incerteza. A mais importante dessas instituições seria, segundo Davidson, os contratos em moeda, que teriam como propósito tornar os mercados mais estáveis e melhor organizados, ao lhes conferirem algum tipo de coordenação, por meio da definição dos bens a serem produzidos, de seus preços, de suas quantidades e de suas datas de entrega. Segundo Davidson (2003, p. 72): “The sanctity of contracts is the essence of an

entrepreneurial system”.

Nesse sentido, uma economia monetária da produção é caracterizada pela não neutralidade da moeda, que afeta motivos e decisões dos agentes econômicos em um ambiente em que prevalece a incerteza.

1.3.2. Incerteza

Segundo Davidson (2002; 2011), a fim de se construir uma teoria macroeconômica pós-keynesiana lógica e consistente, com base nos fundamentos da Teoria Geral de Keynes, há que se rejeitar três axiomas37 da macroeconomia clássica, subjacentes à Lei de Say38: i) o da neutralidade da moeda; ii) o da

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Um axioma pode ser definido como uma premissa universalmente aceita como evidente e verdadeira, dispensando demonstração, em razão de ser uma verdade óbvia, porém, indemonstrável.

38 Segundo a Lei de Say: “a oferta cria a sua própria demanda”, de tal forma que sempre haverá demanda

substituição bruta (gross substitution axiom); e iii) o da ergodicidade39; os quais vão de encontro, respectivamente, a três conceitos fundamentais da construção teórica de Keynes: i) o da não neutralidade da moeda; ii) o das elasticidades de produção e de substituição da moeda; e iii) o da incerteza.

A divergência entre a neutralidade da moeda para os economistas neoclássicos e a sua não neutralidade para os pós-keynesianos já foi abordada quando da discussão do conceito economia monetária. Nessa subseção, serão tratadas as outras duas divergências, porém, o foco estará voltado à última, a qual confronta o axioma da ergodicidade dos neoclássicos com o conceito de incerteza em Keynes.

De acordo com Davidson (2002, 2011), o axioma da substituição bruta assegura que qualquer bem é passível de substituição por qualquer outro bem. Dessa forma, o autor afirma que o referido axioma é incompatível com as peculiaridades da moeda explicitadas nos conceitos de elasticidades de produção e de substituição da moeda em Keynes.

Para Keynes, a moeda representa um bem único, pois não pode ser produzida através do trabalho, tendo, portanto, elasticidade de produção muito baixa ou nula; e nem é passível de substituição por qualquer outro bem, uma vez que não há bens capazes de exercer ou de assimilar as suas funções, o que caracteriza a sua elasticidade de substituição muito baixa ou nula. A moeda também representa o ativo líquido por excelência, além de possuir custos de carregamento insignificantes, características fundamentais para a conservação e o “transporte” de riqueza ao longo do tempo.

A teoria neoclássica assume que somente produtos e serviços proporcionam utilidade, enquanto a moeda não teria utilidade alguma, servindo apenas como meio de troca. Por outro lado, sob uma perspectiva pós-keynesiana, as características particulares da moeda a transformam em um bem único, tornando- a o ativo ideal40 para a conservação e o “transporte” da riqueza ao longo do tempo. Nesse sentido, pode-se afirmar que os atributos que a tornam atrativa estão

39 A ergodicidade implica a ausência de incerteza. Em um sistema ergódico, não se aceita mudanças estruturais

que possam alterar a “trajetória” dos eventos futuros. Dessa forma, a partir de condições iniciais dadas e conhecendo-se a “lei” que governa o sistema, os eventos futuros são passíveis de previsão.

40 Outros ativos de elevada liquidez, principalmente títulos públicos, também podem ser considerados

diretamente relacionados à sua liquidez e à sua demanda como reserva de valor, principalmente em razão da incerteza típica de economias monetárias.

No que diz respeito à incerteza, Davidson (2002, p. 39), com base no trabalho de Knight (1937)41, faz uma importante distinção entre risco e incerteza. Segundo o autor, se os eventos futuros envolvem apenas riscos são mensuráveis e passíveis de previsão por meio da aplicação de métodos estatísticos ou de cálculos atuariais. Todavia, se os eventos futuros envolvem incerteza não são nem mensuráveis e nem passíveis de previsão, como afirma Keynes (1936). Dessa forma, de acordo com Davidson, o termo incerteza deve ser restrito a eventos futuros cujas probabilidades não são quantificáveis, referindo-se à incerteza Knight- Keynes ou incerteza fundamental, não sujeita ao cálculo de probabilidades.

Por outro lado, o axioma da ergodicidade, adotado pela teoria econômica neoclássica, assegura que o futuro sempre pode ser previsto com segurança, por meio de técnicas estatísticas ou atuariais, uma vez que eventos futuros são passíveis de mensuração e de previsão com base em distribuições de probabilidades geradas por processos ergódicos (DAVIDSON, 2002 e 2011).

Carvalho (1992, p. 92), observa que a ergodicidade exige replicabilidade ao longo do tempo, o que não é possível em um mundo em que decisões ou experimentos cruciais destroem o ambiente em que foram tomadas. O conceito de experimento crucial (“crucial experiment”), desenvolvido por Shackle (1955), sugere uma situação em que uma decisão tomada pode alterar para sempre as condições iniciais em que aquele experimento foi executado.

Nesse sentido, Davidson (2002, p. 57), afirma que, ao se alterar as condições de um ambiente econômico, por meio de uma escolha crucial, torna-se impossível recriar as condições anteriores ao experimento. O autor ainda relaciona o princípio de experimentos cruciais de Shackle à teoria da destruição criativa de Schumpeter (1912), em que um empreendedor introduz uma inovação que altera para sempre o ambiente econômico, além de afetar o futuro de forma imprevisível.

Assim, Davidson (2002) ressalta que um agente econômico, ao tomar uma decisão, deve levar em conta se o evento em questão é governado por processos ergódicos (ao menos no futuro relevante) ou não ergódicos, situação em

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que predomina a incerteza e, destarte, na qual o empreendedorismo, o dinheiro, a liquidez e os contratos têm importantes papéis a serem desempenhados.

Carvalho (1992) destaca que uma das mais importantes inovações da Teoria Geral de Keynes é a distinção entre expectativas de curto e de longo prazo. O autor observa que projeções de curto prazo podem ser realizadas com maior segurança, com base em experiências e em resultados passados, uma vez que as condições econômicas42, de forma geral, continuam basicamente as mesmas em curtos períodos de tempo. Além disso, as previsões de curto prazo são continuamente revisadas, a fim de refletirem os resultados mais recentes e as mudanças do ambiente econômico. Por outro lado, Carvalho lembra que decisões cruciais, como as relacionadas a investimentos, são baseadas em expectativas de longo prazo, as quais envolvem muita incerteza, pois estão sujeitas a um futuro que pode mudar de forma imprevisível, abrupta e violenta.

Dessa forma, dada a incerteza presente em uma economia monetária, principalmente no longo prazo, a posse de ativos líquidos43 pelos detentores de riqueza lhes provê uma conveniência que os bens passíveis de serem produzidos não são capazes de oferecer, aspecto relacionado à preferência pela liquidez.